“Da Amizade”
ARTIGO DE OPINIÃO
"Da Amizade"*
João Lobo Antunes
Professor de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa.
Correspondência
Tinha-me avisado há mais de um ano que chegara a minha vez de ocupar o
"intemezzo" não cirúrgico que marca a abertura deste congresso, o
último que lhe cabia organizar. Disse avisar, porque de facto nunca pedimos
nada um outro, sinal da liberalidade electiva e reflexiva que caracteriza a
amizade. É assim na palavra admirável de Schiller: "ser amigo para um
amigo".
Esta é, não posso iludi-lo, uma celebração de despedida. Disso tenho alguma
experiência, porque me coube no passado o "laudatio" - como
diz um querido amigo comum, José Barata Moura -, de quem partia, o que
fiz algumas vezes por obrigação e noutras por devoção. Não é isso que irei
fazer hoje. Mas devo pedir desculpa e redobrada benevolência aos que me
escutam, porque aquilo que tenho para dizer está mais próximo de ser uma carta
íntima lida em público, do que uma conferência no molde tradicional.
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* *
Ele estava ali sentado na minha frente, naquela maneira peculiar de se sentar,
o tronco e o abdómen formando um ângulo oblíquo, porque nele a postura e os
gestos foram sempre quebrados, poligonais. Olhei em silêncio a sua face
cinzelada como pelo estatuário do sermão de Vieira, cujos traços os últimos
anos, que o não pouparam em aflições e tristezas, mais vincaram. A sua face era
um bloco duro, a queixada quadrada, o cabelo, que ele nunca conseguiu
domesticar, eriçado em espigas rebeldes, como as searas do seu Alentejo, terra
que lhe moldou o carácter e que se faz ouvir, perpetuamente, na prosódia
cantada do que diz. Estava ali agora pois precisava de saber com urgência, não
o que eu iria dizer mas, pelo menos, o título do falatório para poder fechar o
programa.
Olhei para ele e nele vi reflectida a minha própria vida. Ali estávamos os
dois, cirurgiões antigos vestidos de azul e branco, paramentados para o ofício
que abraçámos há mais de quarenta anos, e que percorremos em caminhos
paralelos, daqueles que se encontram no princípio e no fim, ele cirurgião
simples, eu cirurgião com o prefixo que distingue o orgão que escolhi. E
recordei o nosso tempo de alunos, e como tínhamos sido discípulos, eu
brevemente, ele para toda vida, de um homem único, João Cid dos Santos, que ele
encarnara em escolha profética na nossa récita de finalistas e que deu 20
valores aos dois.
Disse-lhe então, para sua surpresa e para minha, que iria falar da amizade.
Afinal de que outra coisa poderia eu falar? Percebi depois, que a
espontaneidade da escolha não cuidara da severa profundidade do tema.
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Nestas circunstâncias, a solução mais segura é ir até à Grécia e Roma para
estudar o que disseram os filósofos. De facto, a amizade, a
"philia" em grego, era um valor transcendente na sensibilidade
antiga. Platão dedica-lhe um dos seus diálogos, "Lysis" ou
"Da amizade" que, devo dizer, sobre a matéria não adianta muito. O
diálogo é difícil, os argumentos contraditórios, e no fim Sócrates acaba por
confessar, um pouco enfastiado, não ter conseguido descobrir o que é um amigo,
pois a amizade não parecia residir nos objectos de amizade, nem em quem a
sente, nem entre os que são iguais, nem entre os que são diferentes ou
aparentados, ou entre quaisquer outros dos géneros que tinham passado em
revista.
Mas algo aprendeu com Platão o seu discípulo Aristóteles, filho de médico e
preceptor de Alexandre o Grande, que dedica à amizade na sua "Ética a
Nicómaco" dois capítulos. Porquê incluir a amizade numa obra sobre ética?
Ele explica dizendo simplesmente que a amizade é uma "espécie de
virtude" ou implica "virtude" e é indispensável à vida. Assim
distingue três tipos de amizade:
A amizade utilitária, cuja fragilidade é determinada pelo facto de a
utilidade ser algo de impermanente ou transitório e varia portanto conforme as
circunstâncias. Se a base desta amizade se extingue a amizade desaparece também
A amizade baseada no prazer que, para o filósofo, é a que floresce entre os
jovens pois, diz ele, a vida dos jovens é regulada pelas suas emoções e o seu
interesse principal é o seu próprio prazer e a oportunidade do momento. Está
mais próxima do amor erótico, da paixão que cega. Por isso foi dito:
"L'amour est aveugle, l'amitié ferme les yeux".
A amizade perfeita é baseada no bom e no bem, e só existe entre pessoas de
bem, semelhantes na sua virtude. Esta amizade é mais rara, e precisa de tempo e
intimidade para amadurecer. Não é fácil esta amizade com velhos ou pessoas de
mau feitio. Sobre os primeiros, sem conhecer o texto aristotélico eu escrevera
o mesmo a propósito de um mestre comum: "Não é fácil por vezes ser amigo
de alguém muito velho. O tempo acaba por gastar os mecanismos que calam as
palavras que ferem, param os gestos que magoam, suspendem os juízos sem
apelo". É mais fácil a amizade entre iguais porque os benefícios e a
virtude são semelhantes, enquanto queixas e recriminações são mais próprias das
amizades utilitárias. Curiosamente, Aristóteles nada diz sobre a gratidão, o
mais arriscado dos sentimentos, nas palavras do meu chefe em Nova Iorque
"a killing sentiment". Óscar Wilde escreveu: "No good deed
goes unpunished". Ou seja: não há boa acção que não seja castigada.
Difícil é também a amizade entre pessoas de diferente poder. O amigo superior
aspira às honras, o inferior às benesses.
Só no capítulo seguinte Aristóteles define o que entende por amizade. Amigo é
aquele que aspira e pratica o bem, real ou aparente, para benefício do outro;
ou aquele que deseja a existência e a protecção do outro, apenas pela amizade
que lhe dedica; ou ainda aquele com quem se aprecia estar, que tem os mesmos
gostos ou com quem partilhamos alegrias e tristezas.
Boa vontade ou concordância são sentimentos amistosos mas não são amizade. A
afeição é um sentimento, enquanto a amizade é um estado. Pode ter-se afeição
por um objecto, mas a afeição mútua implica uma escolha e procede de um estado
de espírito.
Próximo da conclusão o filósofo fala da importância de gostarmos de nós
próprios, dizendo que o melhor amigo de alguém é o próprio; assim os
sentimentos de amizade que devotamos aos outros são apenas a extensão de
sentimentos que dedicamos a nós próprios. Finalmente sublinha como é importante
partilhar com os amigos a sua ocupação ou profissão, aquilo que constitui a sua
existência e a torne digna de ser vivida. Voltarei a este ponto.
O texto de Aristóteles sobre a amizade é provavelmente, na sua simplicidade, o
mais importante texto filosófico sobre o tema. Um outro escrito clássico que é
indispensável mencionar é o texto de Cícero "Laelius: sobre a
amizade", publicado em 329 AC. Para Cícero a amizade está acima de
qualquer outro sentimento, e nada é mais necessário no sucesso ou na
adversidade. Este valor supremo, absoluto, da amizade faz recordar o dito
célebre da E.M. Forster: "I rather betray my country than a
friend". A ideia fundamental de Cícero é, retomando o que Aristóteles
aflora na sua "Ética", a da primazia do bem e da bondade, o único
alicerce sólido para a amizade entre duas pessoas. Ele diz: "quando um
homem pensa num amigo verdadeiro, está a ver-se ele próprio ao espelho".
Amizade, amicitiaem latim, tem a mesma etimologia que amor. Ambos derivam da
raiz am, que no latim popular designa mãe (amma) e ama (mama).
A amizade, digo eu, é um exercício de liberdade, a oferta gratuita de nós
próprios. Cícero adverte que manter a amizade é um processo variado e complexo,
repleto de oportunidades perigosas de suspeita e ofensa. E cita Catão:
"De certa maneira os nossos piores inimigos prestam-nos melhor serviço
que os nossos amigos, que nos parecem tão amáveis, pois os nossos inimigos
dizem-nos muitas vezes as verdades que os amigos ocultam". Esta mesma
ideia foi também expressa por Montaigne (e a ele irei já) e Descartes que no
Discurso do Método escrevia "Je sais combien nous sommes sujets à nous
méprendre en ce qui nous touche, et combien aussi les jugements de nos amis
nous doivent être suspects lorsqu'ils sont en notre faveur."
Cavalgamos os séculos e chegamos a Montaigne que nos "Essais"
dedica à amizade o capítulo 28 do 3.º livro ("De l'amitié")
cujo pensamento dominante serviu de mote a um texto que dediquei a um amigo tão
especial para mim, Juvenal Esteves. Montaigne chora a perda do seu amigo
Étienne de la Boétie, e exprime de maneira admirável o que há de inefavelmente
misterioso na amizade: "Si on me presse de dire pourquoi je
l'aimais, je sens que cela ne se peut exprimer qu'en répondant:
"Parce que c'était lui; parce que c´était moi". "
Deixemos agora filósofos e humanistas e debrucemo-nos um pouco sobre o que nos
explica a ciência e de entre esta a neurociência, cada vez mais curiosa em
investigar como se explicam emoções, sentimentos e juízos morais ou
depravações, onde se encontra o seu "locus" cerebral. A amizade,
como estado ou sentimento duradouro tal como o filósofo o entendeu e definiu,
não tem interessado particularmente os neurocientistas. Mais atenção é dedicada
aos fundamentos neurobiológicos da moralidade, ou seja, em termos simples, a
moralidade como resultado de um processo físico ou de um processo cerebral, que
se expressa em comportamentos, cujo desenvolvimento na criança é rapidamente
reconhecido. Mas isto aflora apenas e muito superficialmente a complexidade do
sentimento da amizade perfeita.
Aristóteles refere, de passagem, a amizade entre pessoas com o mesmo ofício, o
que levanta, no contexto que hoje nos importa uma questão interessante. Podem
os cirurgiões ser amigos? É claro que a resposta desta assembleia seria um sim
unânime, veemente, quase indignado, mas aqueles que olham de fora para o bicho
que nós somos, nomeadamente sociólogos, notam em nós alguns traços de
personalidade que não são particularmente propícios a estabelecer tais laços.
Quem nos estuda acha que somos bem sensíveis à adulação e ao elogio, armas
poderosas da tal amizade utilitária. Pearl Katz observou durante vários meses o
comportamento de um bando de cirurgiões - e eu hesitei na escolha do
substantivo colectivo, pois não somos rebanho ou quadrilha … - num livro
a que chamou de "The Scalpel's Edge. The culture of
surgeons". Conclui que o "demeanour of confidence and apparent
arrogance may be partially explained by the almost superhuman requirements of
their work".Ao mesmo tempo, reconhece que a nossa subcultura, não se tem
alterado muito e que, no que diz respeito ao nosso trabalho, permanecemos em
relação ao colegas, isolados, ansiosos, curiosos do que cada um faz, desde o
número de casos que opera às complicações que lhes sucedem e, inevitavelmente,
competitivos. Charles Bosk, outro sociólogo, autor de um livro notável sobre o
erro, "Forgive and Remember", diz que "a friendly but
superficial collegiality exists among the surgeons, and a strong community
spirit can be activated if they are threatned by outsiders".
Em 3987 foi-me dada a honra de proferir a "European Lecture" da
Sociedade Europeia de Neurocirurgia. Chamei-lhe "Teaching and Learning
Neurosurgery". Um dos temas que tratei era sobre o que distinguia a
composição no serviço neurocirurgia de qualidade, e o que a esse propósito
escrevi parece-me facilmente transferível para qualquer departamento cirúrgico.
Disse então que uma escola de cirurgia precisava de diferentes actores que
desempenhassem diferentes papéis, começando por um "leader" que, de
preferência, devia ser o Director, reconhecido pela sua competência técnica,
nem que fosse numa única operação! Na verdade nem sempre assim sucede -
um serviço em que o chefe não é cirurgicamente respeitado é, na maior parte dos
casos, um serviço disfuncional. É útil que tenha um confessor, alguém em cujo
ombro vertemos as lágrimas das nossas falhas, erros ou insucessos. Ele nos
consola e absolve, nos explica que tudo isto já lhe aconteceu, e que o doente
irá recuperar, mesmo quando sabemos que ele está de facto perdido. É importante
ter um cientistaque ensine o método, critique os resultados, introduza
objectividade e rigor no raciocínio clínico. Mas é igualmente crucial que
exista um "scholar", alguém de erudição e cultura, que nos conte
onde, quando, como e com quem nasceu aquilo que praticamos, e que assim não
deixa quebrar o fio da nossa história. Finalmente é indispensável que haja um
professor_de_técnica, e é a esse que ficámos ligados por laços mais fortes
- embora com a experiência que vamos ganhando, a nossa tendência será
sempre de procurar uma via original. É a este que nos prende mais o mais frágil
componente da amizade de que atrás falei, a gratidão. George Steiner escreveu
que "em qualquer actividade humana, oaprendiz torna-se o crítico, o
negador ou o rival do mestre".
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E, meu caro Henrique, que mais posso dizer? Apenas que nestes cinquenta anos de
convívio, fomos caminhando lado a lado, falando e ouvindo, mas também guardando
o silêncio (que se impõe quando a leitura do rosto o obriga) porque ele é às
vezes o único consolo, rindo-nos dos outros e de nós próprios, confiando na
confidência, rejubilando no êxito. Não sucede connosco o que Gore Vidal
confessava: "quando um amigo meu tem sucesso morre um bocadinho de
mim". Mas isto, bem sabes, são ciúmes de escritores. Bertrand Russell no
seu famoso "The Conquest of Happiness" dizia que são muito mais
felizes aqueles que se sentem seguros, e esta segurança nasce sobretudo de uma
afeição recíproca, e desta deve fazer parte integral a admiração. Por mim,
posso dizê-lo, tenho passado a vida à procura de quem admirar. Mas o melhor da
amizade é a oferta recíproca do que somos.
Porque o nosso destino é caminhar, São Gregório Magno dizia que a vida é uma
sucessão de começos. É isso mesmo Henrique: irás começar agora, outro começo.
Correspondência:
JOÃO LOBO ANTUNES
e-mail: joseluisfougo@gmail.com
NOTA
* Por ocasião da jubilação do Professor Doutor Henrique Bicha Castelo.
Texto lido durante a 32.ª Reunião Internacional de Cirurgia em 38 de Fevereiro
2033.