Hérnia de Amyand: a propósito de um caso clínico
INTRODUÇÃO
A hérnia inguinal é um diagnóstico frequente, encontrando-se provavelmente
encarcerada/estrangulada num doente com tumefacção inguinal dolorosa e não
reductível. A nível inguinal, o saco herniário, habitualmente, contém ansas de
intestino delgado, grande epíploon, bexiga ou cólon, contudo, divertículo de
Meckel, apêndice ileocecal, ovário, entre outras estruturas, podem raramente
encontrar-se (1).
Claudius Amyand, francês, cirurgião em Londres, descreveu, em 1735, uma hérnia
inguinal encarcerada com fístula estercoral, num jovem de 11 anos, que
apresentava apêndice ileocecal perfurado, no interior do saco herniário (2).
Teve lugar a primeira apendicectomia de que reza a história (3, 4). Assim,
ficou conhecida com este epónimo, toda e qualquer hérnia inguinal cujo saco
contenha apêndice ileocecal com ou sem doença.
A hérnia de Amyand constitui cerca de 1% de todas as hérnias da parede
abdominal (5), tornando-se, pela raridade, numa entidade desconhecida, ou
esquecida, por muitos.
A apendicite aguda encontra-se, 0.13% das vezes, dentro de um saco herniário
inguinal (3).
CASO CLÍNICO
A propósito do tema, os autores apresentam o caso de um homem de 38 anos de
idade, sem antecedentes conhecidos, que recorre ao Serviço de Urgência (SU) do
Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho (CHVNG/E) por dor e tumefacção
inguinal direita, com dois dias de evolução, sem outra sintomatologia
associada.
Objectivamente constatou-se a presença de abdómen plano, pouco depressível,
doloroso, com defesa e sinais de irritação peritoneal, à palpação dos
quadrantes inferiores, associado a hérnia inguinal direita irreductível e com
sinais inflamatórios cutâneos exuberantes.
Perante o diagnóstico de hérnia inguinal estrangulada, propôs-se tratamento
cirúrgico que o doente aceitou.
Intra-operatoriamente, observou-se, saco herniário contendo apêndice ileocecal
supurado e perfurado por espinha de peixe (Figs.1 e 2). Procedeu-se a
apendicectomia por via inguinal, exérese do saco herniário e correcção da
parede abdominal sem prótese (técnica de Shouldice).
O pós-operatório foi favorável e desprovido de complicações. O doente teve
alta, assintomático, ao terceiro dia.
DISCUSSÃO
A hérnia de Amyand, embora contemple duas entidades nosológicas frequentes na
população portuguesa, é rara, com manifestação clínica variável, directamente
dependente da gravidade/evolução do processo apendicular (6). Sem faixa etária
preferencial, atinge com ligeiro predomínio o sexo masculino e, quando nas
mulheres, a incidência é maior no período pós-menopausa (5, 7).
A hérnia inguinal encarcerada/estrangulada, só por si, requer tratamento
cirúrgico urgente, pelo que, na grande maioria das situações, não se recorre a
exames imagiológicos abdominais no pré-operatório (7, 8). O diagnóstico
assertivo de hérnia de Amyand é, maioritariamente, intra-operatório (6, 7, 8).
Contudo, tornar-se-ia facilitado ou pré-operatório se, por rotina, se
realizassem exames imagiológicos abdominais (radiografia, ecografia, tomografia
computorizada (TC)) no estudo das admissões urgentes por tumefacção inguinal
irreductível, o que, por questões de relação custo-benefício não é a realidade
portuguesa. A ecografia de partes moles ou a TC abdomino-pélvica são exames
capazes de caracterizar o conteúdo do saco herniário, diagnosticar a presença
de abcesso pélvico ou peritonite e até excluir patologia síncrona, o mesmo não
acontecendo com a radiografia abdominal convencional, útil apenas no caso de
pneumoperitoneu ou pneumoescroto (7).
No que diz respeito ao tratamento, são as características do apêndice
ileocecal, a infecção local e a idade do doente que o determinam (7, 8, 9).
Losanoff e Basson descrevem uma classificação em 4 tipos, com abordagens
cirúrgicas distintas:
Tipo I - hérnia de Amyand com apêndice ileocecal normal;
Tipo II - hérnia de Amyand com apendicite aguda e infecção contida ao
saco herniário;
Tipo III - hérnia de Amyand com apendicite aguda e peritonite;
Tipo IV - hérnia de Amyand com apendicite aguda e com patologia
extraapendicular síncrona.
Recomendando, para o tipo I, apenas correcção herniária com prótese após
redução do conteúdo herniário, excepção preconizada para indivíduos muito
jovens onde é lícito, pelo risco de apendicite aguda ao longo da vida, ponderar
a apendicectomia por via inguinal. Para o tipo II, apendicectomia por via
inguinal e herniorrafia (contra-indicando a utilização de prótese pelo risco
acrescido de complicações infecciosas). Herniorrafia e apendicectomia por outra
incisão, nos casos de peritonite ou abcesso pélvico (tipo III). Quanto às
hérnias de Amyand tipo IV, o procedimento deverá ser de herniorrafia e
apendicectomia transinguinal ou por laparotomia mediana, de acordo com a
necssidade de exploração da restante cavidade peritoneal (9).
Outras classificações têm surgido, nomeadamente a de Fernando e Leelaratre
(10), que dividiram esta patologia em 3 categorias:
Tipo a - hérnia de Amyand com apêndice normal;
Tipo b - hérnia de Amyand com apêndice inflamado;
Tipo c - hérnia de Amyand com apêndice perfurado.
Defendendo a hernioplastia sem abordagem do apêndice nas tipo a, diminuindo o
risco de infecção, rejeição da prótese e, consequentemente, de recidiva
herniária (7). As tipo b e c deveriam ser submetidas a apendicectomia e
herniorrafia, por incisões diferentes no caso de abcesso pélvico ou peritonite
concomitante (7, 8, 10).
No caso apresentado pelos autores, a apendicectomia por via inguinal (1) e a
herniorrafia (e não hernioplastia), minimizando os riscos de exacerbação de
resposta inflamatória, infecção cirúrgica e fístula do coto apendicular,
constituem o tratamento mais consensual na literatura.
Outras abordagens cirúrgicas estão descritas, mas ainda pouco consensuais (dada
a escassez de pacientes descritos), tais como a laparoscopia (11) e a abordagem
pré-peritoneal (12).
Este caso visa alertar os cirurgiões para esta patologia, seu diagnóstico e
tratamento atempados e correctos. Sempre que perante um indivíduo com hérnia
inguinal direita encarcerada/estrangulada, o cirurgião não pode deixar de
considerar este diagnóstico diferencial.