Modernização da Cirurgia Torácica em Portugal: Contributo da Cirurgia Geral
CARTA AO EDITOR
Modernização da Cirurgia Torácica em Portugal: Contributo da Cirurgia Geral
Carlos Janelas
Chefe de Serviço de Cirurgia Geral do CHUC - Hospital Geral
Correspondência
A "cirurgia", por oposição a "medicina", desenvolveu-se
a par desta, sendo durante muito tempo menos elaborada e elegante, quando se
resumia a extirpar, ressecar ou amputar o que não se conseguia tratar doutro
modo. Sempre, por isso, menos conceituada e "intelectual" do que a
medicina, mesmo quando, na realidade, conseguia manter vivos doentes que de
outro estavam condenados. Embora se continue, obviamente a admitir que o futuro
da medicina está nos tratamentos médicos, globalmente na bioquímica, englobando
nesta designação também a biologia molecular, a engenharia genética e tantas
outras coisas que a realidade actual já nos faz imaginar sem ser em sonhos
utópicos, a verdade é que a cirurgia evoluiu para uma modalidade mais
elaborada, do ponto de vista técnico e também de concepção.
Muitas das grandes intervenções ainda hoje praticadas já o eram no fim do
século XIX, e à entrada no século XX eram apanágio duma especialidade, a
cirurgia geral. Com o advento de novos conhecimentos, algumas áreas de
patologia foram-se diferenciando no seu tratamento cirúrgico, muitas vezes
tornando-se médico-cirúrgico, o que levou a que passasse a haver especialistas
apenas nessas áreas. Assim apareceram as várias sub-especialidades cirúrgicas,
que acabaram por ganhar asas e independência em relação à mãe.
A especialidade base manteve-se, sendo muito importante no manuseio de doentes
cirúrgicos englobando várias patologias ou de patologia menos definida, e
permitindo que o mesmo médico possa tratar vários tipos de doentes, com ganhos
de eficácia e económicos para as instituições. Sem pôr em causa, naturalmente,
a super-especialização, o treino cirúrgico global e eclético continua a ser
altamente desejável, servindo para fornecer a cada cirurgião os recursos
técnicos que pode depois aplicar nas várias situações clínicas, mais ou menos
especializadas.
A aplicação translacional de um treino cirúrgico completo e variado pode ser
muito vantajosa e não deve ser ignorada, num momento em que, muito por
comodidade de quem se tem de preparar, se procura cingir o treino ao
estritamente necessário. É, pois, ainda da cirurgia geral que tem surgido uma
grande ajuda para as várias subespecialidades cirúrgicas. Ela tem funcionado
muitas vezes como um elo de transmissão, aplicando nalgumas áreas o que se
desenvolveu especificamente noutras, e nestas ficaria enquistado não fôra a
prática global de alguém menos limitado a um tipo exclusivo de cirurgia. É
disto que se trata quando se fala do contributo da cirurgia geral para a
modernização da cirurgia torácica.
A organização da cirurgia torácica no Centro Hospitalar de Coimbra (Hospital
dos Covões) teve o seu embrião na necessidade sentida pelo Serviço de
Pneumologia de dispor de apoio cirúrgico específico para avaliação e tratamento
dos seus doentes.
A visão e persistência do Dr. Abreu Barreto, que fundou e dirigiu o Serviço de
Pneumologia do Hospital dos Covões até Agosto de 1993, data em que se
aposentou, foram determinantes e marcaram tudo o que viria a acontecer.
No segundo semestre de 1987, um Cirurgião Geral do Serviço de Cirurgia II do
Hospital dos Covões, do então Centro Hospitalar de Coimbra, fez formação em
Cirurgia Torácica.
Em Janeiro de 1988, já com envolvimento multidisciplinar, teve início uma
actividade de estreito convívio com o Serviço de Pneumologia, fundamental para
integração na clínica pneumológica e formação de raciocínio cirúrgico adequado
a estas patologias.
Os resultados foram encorajadores, a Direcção do Hospital acreditou que era
importante continuar, que havia espaço e oportunidade de desenvolvimento e que
os doentes, os Serviços e o Hospital iriam beneficiar desse investimento.
Este projecto foi sendo desenvolvido por uma Equipa de Cirurgia Geral, com
actividade concomitante de Cirurgia Geral.
Em Abril de 1992 foi precisamente esta Equipa que operou as primeiras
colecistectomias endoscópicas no nosso Hospital, e no dia 16 de Junho do mesmo
ano, beneficiando da sinergia proporcionada pela experiência de cirurgia
abdominal e cirurgia torácica, iniciámos no nosso Serviço a VATS (Video
Assisted Thoracic Surgery), quando esta técnica estava a dar os primeiros
passos em todo o Mundo.
Durante 25 anos foram operados doentes com todo o tipo de patologia torácica
não cardíaca, mas foi com a tecnologia de vídeo que se inovou e alterou a
abordagem de algumas patologias.
A partir de 1992 os doentes com pneumotórax passaram a ser operados por VATS.
Passaram também a ser operados doentes bilateralmente, na mesma sessão
anestésica, e realizaram-se reoperações por VATS quer em doentes operados
anteriormente pelo mesmo processo quer por cirurgia clássica.
Os doentes com patologia do interstício de etiologia não esclarecida em que a
última oportunidade de diagnóstico era biópsia pulmonar, até aí realizada por
toracotomia, passaram a ser intervencionados por VATS, com todas as vantagens,
incluindo melhor avaliação de toda a cavidade pleural. Outras lesões do tórax e
mediastino tornaram-se também objecto de VATS, com propósito diagnóstico,
terapêutico curativo ou paliativo. Tudo isto obtido de forma mais rápida e
menos traumatizante.
Os derrames pleurais e toda a patologia pleural de etiologia não esclarecida
passaram a ser abordados mais precocemente por VATS, uma vez esgotados os meios
ao dispor ou quando o objectivo era terapêutico. Nos doentes com hemotórax pós-
operatório ou pós-traumático, a VATS passou a ser uma nova oportunidade quando
foi necessário fazer uma adequada limpeza pleural ou descorticação nos casos de
evolução mais arrastada, já com espessamento pleural. Nos pacientes com derrame
pleural septado ou empiemas septados passámos a propor indicação cirúrgica por
VATS, representando nesta opção uma inovação e um enorme benefício para os
doentes, com recuperação mais rápida, menor sofrimento e menos complicações.
Hoje esta opção é consensual na literatura internacional.
Em doentes idosos, em cuidados continuados, doentes com vários tipos de
patologias associadas e risco cirúrgico elevado, a VATS surgiu como uma
oportunidade da qual usufruiram muitos a quem a cirurgia convencional tinha
sido recusada em grandes centros.
Enquanto cirurgiões gerais, adaptámos aparelhos cirúrgicos que nos permitiram
realizar descorticações pulmonares em doentes com empiemas em estádio III
(crónicos) quando a VATS ainda era internacionalmente considerada ineficaz
neste tipo de empiemas.
Depois de conhecida a técnica e reconhecidos os resultados que com ela
obtínhamos, passámos a receber doentes referenciados de todo o país e até do
estrangeiro, alguns após terem passado por grandes centros de cirurgia
torácica, onde a técnica não era usada. Fomos assim construindo, com segurança,
uma casuística de cirurgia torácica vídeoassistida sem paralelo em Portugal.
Os gráficos que se apresentam a seguir pretendem traduzir a nossa experiência e
de alguma forma tornar mais compreensível a nossa mensagem.
A VATS passou a ser a técnica de eleição em muitas patologias, como se pode
inferir da figura_1.
Como se pode verificar pela figura seguinte, foi realizado por VATS, durante 20
anos, um elevado número de Intervenções Cirúrgicas.
Sendo a VATS menos traumatizante que a cirurgia aberta, a sua indicação foi
alargada a doentes clinicamente mais graves e mais idosos.
A figura_3 mostra, em percentagem, a distribuição etária dos doentes operados,
sendo que o mais novo tinha 10 anos e o mais velho 96 anos.
Esta experiência só foi possível graças à aceitação que esta técnica teve junto
dos doentes e especialistas de Pneumologia, Medicina Interna, Cirurgia Geral e
Cuidados Intensivos de vários Hospitais, como o mapa que apresentamos
demonstra.
A actividade de cirurgia torácica, incluindo esta videoassistida, no Hospital
Geral (Hospital dos Covões), cessou em Julho de 2012, por circunstâncias que
nos são alheias e não conseguimos ultrapassar. A primeira intervenção por VATS
no CHC foi realizada no dia 18 de Junho de 1992, a última, no CHUC, no dia 28
de Junho de 2012.
Temos consciência de só ter podido enveredar por este caminho pela experiência
que já tínhamos como cirurgião geral, transpondo os respectivos conhecimentos e
gestos técnicos, nomeadamente de laparoscopia, para esta nova aplicação. E foi
deste modo que a cirurgia torácica pôde ser modernizada recorrendo-se à
cirurgia geral, no nosso país e no nosso hospital, com benefício claro dos
doentes que a nós recorreram ou foram referenciados. Temos também de enaltecer
a colaboração, entusiástica até, com muitos médicos de vários Hospitais, que
nos estimularam e ajudaram a continuar, tendo agora a consciência de termos
prestado, enquanto cirurgião geral dedicado à cirurgia torácica, no então CHC,
um bom serviço a muitos doentes do nosso País.
Correspondência:
CARLOS JANELAS
e-mail: carlos@janelas.org
Data de recepção do artigo:
29-1-2013
Data de aceitação do artigo:
28-4-2013