Tratamento pré-operatório do carcinoma do recto localmente avançado:
Capecitabina versus Capox
INTRODUÇÃO
O cancro colo-rectal (CCR) é, mundialmente, o terceiro tumor mais frequente nos
homens e o segundo nas mulheres, com uma incidência estimada em Portugal de
2000 novos casos por ano1,2. Cerca de um terço correspondem a tumores do
recto3.
O tratamento dos doentes com cancro do recto localmente avançado (CRLA), isto
é, T3, T4 e/ou N+ é multimodal e geralmente consiste em cirurgia, radioterapia
e quimioterapia4,5,6. Nos últimos anos, o aperfeiçoamento das técnicas de
estadiamento e de cirurgia, como a excisão total do mesorecto (quando
aplicável), e o aperfeiçoamento das técnicas de radioterapia levaram a uma
diminuição significativa nas recidivas locais da doença4, para menos de 3%,
mesmo em doentes com estadio clínico III5,7,8.
Estudos recentes, que culminaram no protocolo do grupo de estudos germânico
colo-rectal (CAO/ARO/AIO-94), mostram que o tratamento pré-operatório com
quimioterapia e radioterapia concomitante é significativamente superior ao
tratamento adjuvante no que diz respeito a controlo local da doença, toxicidade
aguda e tardia9,10,11. A quimioterapia e radioterapia, quando aplicadas antes
da cirurgia, diminuem o estadio patológico T e N. Tal é conseguido pela redução
da profundidade de invasão parietal pelo tumor e, numa percentagem variável,
pode provocar o total desaparecimento de células neoplásicas viáveis, tanto na
parede do recto como nos gânglios linfáticos peri-rectais. Estes efeitos de
regressão histológica comparativamente aos estádios clínicos pré-tratamento têm
sido usados na medição da resposta tumoral12,13,14. A regressão tumoral pode
variar desde a não existência de evidência de efeito do tratamento até ao
desaparecimento completo do tumor. O impacto que o grau de regressão
histológica (GRH) tem no prognóstico dos doentes não está ainda totalmente
esclarecido9,15. Das várias escalas de avaliação do GRH, uma das mais
frequentemente utilizadas, foi descrita inicialmente por Dworak et al16 e
consiste numa classificação em 5 pontos, em que o grau 0= sem regressão, grau
1= regressão mínima (tumor dominante com fibrose em 25% ou menos da massa
tumoral), grau 2= regressão moderada (tumor dominante com fibrose em 26 a 50%
da massa tumoral), grau 3= regressão boa (tumor com fibrose em mais de 50% da
massa tumoral) e o grau 4= regressão completa (fibrose em 100% da massa
tumoral, sem tumor viável). Na literatura internacional, o grau de resposta
histológica completa (hRC) varia entre 4 e 38% nas diferentes séries17. Na
análise comparativa dos ensaios clínicos fase II/III feita por Hartley et alem
2005, parece existir uma relação com a utilização de 2 agentes citostáticos
(p=0.02) e com a dose de radioterapia utilizada (superior a 45 Gy, p=0.02) (8).
Os esquemas de QNA actuais assentam na combinação de 5-fluoruracilo (5-FU)
associado a leucovorina concomitante com a radioterapia18. São vários os
métodos de administração de 5-FU endovenoso (bólus, intermitente, contínuo) e a
utilização do análogo oral - capecitabina - reporta igual validade19,20,21. Não
existe evidência que suporte a escolha de um segundo agente citostático a
utilizar, todavia, a oxaliplatina é um bom candidato pelas suas capacidades de
radiossensibilizante e sinergia com fluorpirimidinas17,21. A combinação
oxaliplatina com capecitabina e radioterapia tem sido testada nos últimos anos
em diferentes regimes, designadamente: administração contínua de capecitabina
(7 dias por semana) e oxaliplatina (dias 1 e 29)4; administração contínua de
capecitabina (5 dias por semana) e oxaliplatina semanal (dias 1, 8, 22 e
29)22,23; administração descontínua de capecitabina (dias 1 a 14 e 22 a 35) e
oxaliplatina semanal (dias 1, 8, 22 e 29)24,25.
O objectivo do presente estudo é o de estudar comparativamente a eficácia, o
perfil de segurança e toxicidade de dois esquemas alternativos de QNA em
combinação com radioterapia: capecitabina versuscapecitabina em associação com
oxaliplatina.
MATERIAL E MÉTODOS
Características do estudo, selecção de doentes e recolha de dados
Retrospectivamente, entre Janeiro de 2007 e Janeiro de 2011, foram analisados
os processos clínicos de 76 doentes do Centro Hospitalar Lisboa Central com o
diagnóstico histológico de adenocarcinoma do recto. A avaliação pré-tratamento
incluiu avaliação laboratorial e imagiológica com tomografia computorizada (TC)
tóraco-abdomino-pélvica. A extensão loco-regional da doença foi determinada por
ressonância magnética (RM) e/ou ecoendoscopia transrectal (EE), em cada doente.
Foi discutida a indicação de tratamento neo-adjuvante caso a caso, em Unidade
de patologia colo-rectal, composta pelas especialidades de Cirurgia Geral,
Gastroenterologia, Imagiologia, Oncologia Médica, Radioterapia e Anatomia
Patológica. Foi proposto tratamento neoadjuvante aos doentes com adenocarcinoma
do recto com estadio clínico II/III5; performance status(Eastern Cooperative
Oncology Group) ⤠2; idade â¥18 anos; adequada função hematológica, renal,
hepática e cardíaca (sem história significativa de doença cardiovascular).
Foram excluídos os doentes com evidência de neoplasia prévia nos últimos 5
anos, doença psiquiátrica ou co-morbilidade clinicamente significativa ou
história pessoal de radioterapia pélvica.
O tratamento neoadjuvante consistiu em 5 semanas de Radioterapia na dose de
50.4/54 Gy em 25 ou 30 fracções concomitante com: (i) administração contínua de
capecitabina (850 mg/m2 bi-diário, 5 dias por semana) (esquema CAP); ou (ii)
administração contínua de capecitabina (850 mg/m2 bi-diário, 5 dias por semana)
e oxaliplatina semanal (50 mg/m2, dias 1, 8, 15, 22 e 29) (esquema CAPOX). A
cirurgia foi programada para 6-8 semanas após o fim do tratamento neo-
adjuvante. A eficácia foi definida como a resposta do tumor ao tratamento neo-
adjuvante, isto é pelo GRH. Por sua vez, o GRH das peças operatórias foi
determinado pela percentagem de tumor viável versusfibrose, de acordo com a
classificação de Dworak et al16. A toxicidade foi registada e classificada de
acordo com os critérios de toxicidade do Instituto Nacional de Cancro (CT-INC)
versão 4.0.
Análise estatística
A análise estatística foi realizada com o software SPSS® (SPSS Inc, Chicago
IL) e incluiu análise demográfica e análise univariada, com o recurso aos
testes estatísticos Qui-quadrado e teste exacto de Fisher. O nível de
significância abaixo de 0.05 foi considerado estatisticamente significativo.
RESULTADOS
Foram incluídos 76 doentes, 67.1% do sexo masculino, com mediana de 69 anos
(min=45; max=88) (tabela_1). A mediana da distância do tumor à margem anal foi
7cm (min=2; max=13). A localização mais frequente do tumor foi o recto
inferior29 (48,7%). À data do diagnóstico, aproximadamente 2/3 dos doentes
apresentava marcadores tumorais (CEA e CA19.9) dentro dos valores normais. A
ressecção completa do tumor do recto (R0) foi documentada em 97% dos doentes.
O esquema de QRT-PO mais utilizado foi o esquema CAP, em 51 doentes (67,1%). O
esquema CAPOX foi utilizado em 25 doentes (32,9%). A distribuição, em
percentagem, de doentes em estádio clínico II e III foi semelhante nos dois
esquemas de QRT-PO utilizados (p=0,875).
Globalmente, o GRH 4,3,2,1,0 foi alcançado respectivamente em 13.2%, 59.2%,
19.7%, 6.6% e 1.3% dos casos. A tabela_2 apresenta o GRH por cada esquema de
tratamento, não se tendo observado diferença com significado estatístico entre
CAP e CAPOX (p=0,130) (tabela_3). A análise univariada mostrou uma relação do
sexo com o GRH (p=0,055), embora sem significado estatístico: ao avaliar
independentemente os diferentes esquemas de tratamento, os indivíduos do sexo
feminino responderam pior do que os homens ao esquema de tratamento CAP
(p=0,046). Com a adição da oxaliplatina (esquema CAPOX), não se observa
diferença estatisticamente significativa entre o sexo e resposta ao tratamento
(p=0,299).
Na avaliação histopatológica, a caracterização ypTNM documentou em 40 e 50
doentes, um T-downstagingde 52.6% e um N-downstagingde 65.8% dos casos, sem
diferença entre os dois esquemas CAP e CAPOX, respectivamente p=0,291 e
p=0,818. O downstagingglobal (T e/ou N) ocorreu em 61 doentes (80.3%),
A tabela_4 sumariza as toxicidades hematológicas e não hematológicas
relacionadas com cada regime de tratamento (CAP vs CAPOX). Não foram observados
toxicidades grau 4 nesta série. A toxicidade não hematológica grau 3 mais
frequente foi gastro-intestinal com uma frequência global de 7% (3.9% com CAP e
11.5% com CAPOX). A toxicidade hematológica grau 3 mais frequente foi anemia
com uma frequência global de 6%, apenas observada com o esquema CAP. A
suspensão de quimioterapia por toxicidade foi necessária em apenas 8 doentes
(10.4%), com uma mediana de interrupção de 7 dias (4-12 dias). Nenhum doente
suspendeu radioterapia. A análise estatística entre toxicidades e RGH não
evidenciou relação com significado estatístico, embora tenha mostrado uma
tendência entre graus superiores de leucopénia e GRH maiores (p=0.074).
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Actualmente é consensual no tratamento do cancro de recto localmente avançado a
utilização de quimioterapia sistémica baseada em fluoropirimidinas associada a
radioterapia pélvica. O objectivo é atingir a máxima regressão tumoral sem
aumento de toxicidade. Vários esquemas de quimioterapia têm sido utilizados com
este objectivo, embora a controvérsia em torno do esquema ideal se mantenha27.
São recentes os estudos que mostram que a utilização de quimioterapia oral com
capecitabina mimetiza a infusão contínua como radio-sensibilizante, mantendo
resultados semelhantes em termos de regressão tumoral e toxicidades27,28.
Apesar de ser considerada por alguns autores como o candidato ideal pelo efeito
sinérgico que apresenta com as fluoropirimidinas21, nesta revisão, o benefício
da adição da oxaliplatina ficou por demonstrar, indo ao encontro dos resultados
de outros autores.
A administração concomitante de QRT atinge taxas de downstagingda extensão
local do tumor e envolvimento ganglionar em torno dos 65%29. Neste estudo, o
downstagingglobal (T e/ou N) foi de 80.3%, observando-se para T e N, valores de
downstagingde 52,6% e 65,8%. Cinquenta por cento dos doentes atingiram estádios
patológicos localizados (estadio 0-1), o que se compara favoravelmente com os
resultados europeus com esquemas CAPOX, em que se utiliza a capecitabina na
dose de 825mg/m2/bi-diário, superior às doses utilizadas nos estudos
americanos22,23,30.
Interessantemente, apresentamos uma hRC de 13.2%, definida pelo grau 4 de
acordo com a classificação de Dworak, e mais de dois terços dos doentes (72.4%)
tiveram um GRH 3 ou 4, o que representa no seu conjunto um resultado
encorajador, coincidentes com a literatura internacional recente, onde as taxas
de hRC entre 10 e 30% têm sido reportadas com os diferentes esquemas de
tratamento pré-operatório13,14,21-25,27. Embora o atingimento de hRC não seja o
objectivo primário do tratamento neo-adjuvante, tem sido largamente utilizado
nos diferentes ensaios clínicos para avaliar a eficácia do tratamento no cancro
do recto. Apesar disso, a sua relação com a sobrevivência global destes doentes
não está demonstrada21. Observou-se maior proporção de respostas completas com
o esquema CAP, contudo, houve maior proporção de doentes com regressão
histológica com o esquema CAPOX; do ponto de vista estatístico, sem diferença
para nenhum dos esquemas utilizados.
Globalmente, a tolerância dos esquemas terapêuticos foi boa sem necessidade de
interrupção dos mesmos numa percentagem significativa de doentes. Não foi
documentada toxicidade grau 4 e a toxicidade grau 3 teve uma expressão inferior
a 10% em ambos os esquemas de tratamento, em linha com os estudos
internacionais21,24,25. Não foi observada relação estatisticamente
significativa entre a toxicidade aguda e a resposta tumoral ao tratamento com
nenhum tratamento neo-adjuvante. Os doentes que tiveram uma regressão tumoral
graus 3 e 4 apresentaram tendencialmente maior toxicidade hematológica,
particularmente leucopénia, embora também sem significado estatístico. A tese
defendida por alguns autores de que a toxicidade aguda poder ter valor
preditivo de resposta à terapêutica não é confirmada neste estudo
retrospectivo.
Salienta-se uma associação entre o sexo e o grau de regressão histológica.
Tanto quanto é do conhecimento dos autores, não está reportado na literatura
uma associação entre o sexo e a resposta a QRT. Todavia, é conhecida a
resistência de alguns doentes aos fármacos derivados das fluoropirimidinas. A
via da instabilidade micro-satélite (IMS) é uma delas, que consiste numa
perturbação do sistema de reparação de ADN, tornando-se incapaz de reparar
sequências erróneas de nucleótidos na cadeia de ADN31. A consequência desta
incapacidade de função leva a resistência a fármacos específicos, como é o caso
bem documentado do fluoruracilo (5-FU)32,33. Por outro lado está associada a
prognóstico mais favorável, com aumento do tempo de sobrevivência global.
Admitimos que na série de doentes aqui reportada, a IMS possa ter influenciado
os resultados obtidos, podendo ajudar a explicar a taxa de regressão tumoral
nas doentes que fizeram apenas capecitabina. Tendo em conta que o
reconhecimento da possível resistência ao FU pode influenciar as opções
terapêuticas, estudos que avaliem o valor preditivo da IMS na resposta ao
tratamento pré-operatório são oportunos.
Em conclusão, o esquema pré-operatório com RT e capecitabina isoladamente ou
associado a oxaliplatina parece atingir resultados semelhantes em termos de
eficácia e com perfil de segurança e toxicidade favoráveis. Mais importante,
não foi identificado nenhum benefício da adição da oxaliplatina ao esquema já
usado com fluoropirimidina oral e radioterapia em contexto pré-operatório.