Invaginação intestinal idiopática no adulto: a propósito de um caso clínico
INTRODUÇÃO
Descrita pela primeira vez em 1674 por Barbette de Amesterdão, a invaginação
intestinal representa uma forma rara de obstrução intestinal no adulto.
A invaginação intestinal no adulto representa 5% de todos os casos de
invaginação sendo responsável por apenas 1% -5% das obstruções intestinais no
adulto. Esta entidade nosológica difere da vertente pediátrica em vários
aspetos. Nas crianças geralmente é primária e benigna, sendo que a redução por
via pneumática ou hidráulica é suficiente para tratar a doença em 80% dos
pacientes. (1,2)
A invaginação intestinal primária ou idiopática representa 8-20% dos casos.
Contrariamente a este facto, quase 90% dos casos nos adultos são secundárias a
uma condição patológica que serve como ponto de partida, das quais se destacam
os carcinomas, pólipos, divertículo de Meckel, divertículo do cólon, estenoses
ou neoformaçõesbenignas,constatadasgeralmenteintra-operatoriamente. Em virtude
do risco significativo associado de malignidade, aproximadamente de 65% (3), a
descompressão radiológica não está indicada. Por isso, 70 a 90% dos casos de
invaginação intestinal nos adultos exigem tratamento definitivo, sendo a
resseção cirúrgica, na maioria dos casos, o tratamento de escolha.
CASO CLÍNICO
Os autores relatam o caso de um doente de 79 anos, sexo masculino, com
antecedentes de prostatectomia por hiperplasia benigna, hernioplastia inguinal
direita, prótese total da anca (PTA direita) e correção de hidrocelo bilateral
que recorreu ao serviço de urgência por dor abdominal localizada nos andares
superior e médio, com 48 horas de evolução, tipo cólica e posteriormente
contínua, com irradiação dorsal, associada a anorexia, náuseas e diminuição do
trânsito intestinal para fezes, tipo cibalas, com inicio 48 horas antes da
admissão. Ao exame físico apresentava abdómen ligeiramente distendido, com
ruídos intestinais de frequência diminuÃda, mole e depressÃvel, doloroso à
palpação profunda do hipogastro, sem sinais de irritação peritoneal. Toque
retal com ampola livre. Após estudo analítico (apenas a destacar elevação da
ureia) e radiografia abdominal simples de pé (distensão de ansas de delgado com
níveis hidroaéreos - figura_1), optou-se por internamento. No 2º dia de
internamento, por agravamento de dor abdominal, foi efetuada TC (tomografia
computorizada) que revelou: "Marcada distensão das ansas intestinais do
delgado, observando-se imagem em pseudo-rim na região da fossa ilíaca direita
que parece corresponder a invaginação ileocecal, não se excluindo como
condicionante desta alteração uma imagem de massa cólica dado ser evidente uma
área nodular central na invaginação (figura_2)." Submetido a
hemicolectomia direita "ad minimum" por compromisso da viabilidade
vascular do segmento afetado, complicada por infeção do local cirúrgico por
Enterococcus faecalise deiscência superficial, tratada conservadoramente, com
alta após 28 dias (figura_3,_A_e_B). O exame histopatológico revelou "peça
operatória com 7cm de íleo e 35 cm de cólon (figura_3,_C), apresentando áreas
de necrose isquémica transmural da parede cólica a que se associam congestão
vascular, hemorragia intersticial e processo inflamatório agudo, compatíveis
com invaginação ileocecal, sem lesões de displasia ou neoplasia maligna (figura
3,_D)". Os autores descrevem deste modo um caso de invaginação intestinal
idiopática no adulto. No seguimento clínico pós-operatório, não houve registo
de complicações até aos 3 meses.
DISCUSSÃO
Nos adultos, o mecanismo exato de invaginação intestinal é desconhecido em 8% a
20% dos casos (primária ou idiopática) e é mais provável que ocorra no
intestino delgado. (1-4) Todavia, a invaginação dita secundária parece ter como
etiologia qualquer lesão patológica da parede do intestino ou proveniente do
seu lúmen, que de alguma forma altera o movimento peristáltico normal, servindo
como um ponto de partida.(4) Esquematicamente, a invaginação pode ser descrita
como um "prolapso interno" do intestino proximal através da vertente
mesentérica para o interior do lúmen do intestino distal adjacente. Como
consequência, ocorre uma alteração da passagem de conteúdo intestinal, sendo
que, à posteriori, o normal fluxo vascular mesentérico do segmento invaginado
torna-se condicionado. O resultado consiste numa obstrução intestinal com
alterações inflamatórias que podem variar de espessamento a isquemia mural.
Localização e etiologia
Os locais mais frequentes do tubo digestivo passíveis de invaginação intestinal
são as junções entre os segmentos livremente móveis e os segmentos
retroperitoneais ou fixos por aderências. (1)
As invaginações intestinais foram classificadas de acordo com a sua posição em
quatro categorias: (1) entero-entérica, (2) colo-cólica, (3) íleo-cólica,
definida como o prolapso do íleo terminal para o cólon ascendente e (4) íleo-
cecal, onde a válvula íleo-cecal é o ponto que conduz à invaginação, a qual
dificilmente distinguida da variante íleo-cólica. (1,4,5)
As invaginações foram também classificadas de acordo com a etiologia (benigna,
maligna, secundária ou idiopática). No intestino delgado, esta pode ser
secundária à presença de lesões intra ou extra-luminais (lesões inflamatórias,
divertículo de Meckel, aderências pós-operatórias, lipoma, pólipos adenomatosos
linfoma e metástases) ou iatrogénica, por exemplo, devido à presença drenos
abdominais (1), ou mesmo em pacientes com gastrojejunostomia. (2) As
neoformações malignas são responsáveis por cerca de 30% dos casos.(4)
Apresentação clínica
A apresentação clínica da invaginação intestinal no adulto varia
consideravelmente. Os sintomas normalmente são inespecíficos e, na maioria dos
casos dos adultos, têm apresentação crónica, oriunda do quadro de suboclusão.
(1,3) Contrariamente, a apresentação pediátrica clássica de invaginação
intestinal é aguda (quadro composto por tríade de dor abdominal, diarreia com
sangue e massa palpável), a qual é raramente visualizada nos adultos.
Concomitantemente são verificados sinais e sintomas inespecíficos tais como
náuseas, vómitos, hemorragia gastrointestinal, alteração do padrão de trânsito
intestinal ou distensão abdominal. (1-3)
No adulto, a invaginação intestinal pode ainda ser classificada de acordo com a
presença de um ponto de fixação ou não, tendo esta sido descrita em pacientes
com doença celíaca ou doença de Crohn; no entanto é frequentemente idiopática.
(1-4)
Meios complementares de diagnóstico
A variabilidade na apresentação clínica e características imagiológicas
distintas fazem com que o diagnóstico pré-operatório de invaginação intestinal
seja uma tarefa desafiadora e difícil. Reijnen et al. relataram uma taxa de
diagnóstico pré-operatório de 51%, sendo que para Eisen et al. a taxa foi de
40,7%. (1,2)
A apresentação imagiológica de invaginação intestinal é variável descrevendo-se
em seguida os principais aspetos de cada um dos meios complementares de
diagnóstico.
A radiografia abdominal simples de pé constitui normalmente a primeira opção
dentre os meios complementares de diagnóstico, uma vez que na maioria dos casos
os sintomas obstrutivos dominam o quadro clínico. Geralmente demonstram sinais
de obstrução intestinal, podendo inferir-se o local de obstrução. (5) A
radiografia abdominal contrastada pode demonstrar uma imagem compatível com
"moedas empilhadas" ou "mola helicoidal", ao passo que o
clister opaco pode ser útil nos pacientes com neoformação maligna como causa de
invaginação colo-cólica ou íleo-cólica. (2-3)
A ecografia abdominal é considerada uma ferramenta útil para o diagnóstico,
tanto em crianças quanto em adultos. As caraterísticas imagiológicas clássicas
incluem a lesão em "alvo" ou "donut", em visão transversal,
e imagem de "pseudo-rim", em visão longitudinal. (4-5)
Indubitavelmente este procedimento é operador-dependente, sendo as principais
limitações a obesidade e presença de ar intra-abdominal.
A TC é atualmente considerado o método goldstandardpara o diagnóstico
imagiológico de invaginação intestinal com uma sensibilidade de 58%-100%.(5)
As caraterísticas imagiológicas típicas são a imagem em salsicha,
correspondente à massa de tecido mole com vasos mesentéricos dentro do lúmen
intestinal.(5) A TC permite definir a localização, a natureza da massa e a sua
relação com as estruturas adjacentes.(5) Recentemente, Kim et al. (5),
preconizaram que a TC abdominal é capaz de efetuar a distinção entre
invaginação sem causa aparente (ausência de sinais de obstrução intestinal
proximal, como imagem em "alvo", sem identificação de massa) daquelas
com causa identificável (sinais de obstrução intestinal, edema da parede
intestinal com perda do aparecimento das três camadas clássicas em virtude da
alteração da circulação mesentérica e identificação de massa).
A endoscopia flexível do tubo digestivo baixo é considerada desprovida de valor
diagnóstico na avaliação de casos de invaginação intestinal que cursam com
obstrução intestinal subaguda ou crónica.(4)
As principais potencialidades da endoscopia baixa são a confirmação do
diagnóstico de invaginação, a sua localização e a demonstração da lesão
orgânica subjacente que funciona como ponto de partida. Nos indivíduos com
invaginação intestinal crónica, cuja endoscopia baixa ou estudo contrastado
revelaram massa polipóide, a polipetomia está desaconselhada em virtude do
risco elevado de perfuração num terreno tecidular com isquemia crónica e
necrose do segmento invaginado.
No adulto, os sintomas normalmente são inespecíficos e podem assumir uma
apresentação aguda, subaguda ou crónica pelo que o diagnóstico inicial pode ser
atrasado. Em virtude da maioria dos casos apresentar uma causa orgânica
subjacente, que pode passar pela presença de neoformação maligna, parece ser
aceite pela generalidade dos cirurgiões que a invaginação no adulto requer
tratamento cirúrgico, contrariamente à da criança. (1-4) Todavia, a extensão da
resseção deve ser adaptada a cada caso em particular. (4)
Dentre as possíveis complicações na tentativa de redução da invaginação
destacam-se a disseminação intraluminal e venosa do tumor, perfuração com
disseminação de mircroganismos e células tumorais para a cavidade peritoneal e
compromisso da viabilidade anastomótica de um segmento intestinal friável e
edemaciado. (1,4) Perante tais riscos, a redução não deve ser tentada se houver
sinais de inflamação ou isquemia da parede intestinal. (3,4)
Em suma, pacientes com invaginação ileocólica, ileocecal e colocólica,
particularmente com idade acima dos 60 anos (devido à elevada incidência de
processo neoformativo maligno etiológico subjacente), têm indicação formal para
resseção segmentar curativa (R1) e anastomose primária entre tecido saudável e
viável.(1-4) Considera-se resseção curativa do segmento acometido aquela que é
efetuada com margem proximal e distal mínima de 5 cm. Azar et al. (1)
preconizam resseção com anastomose primária, para as invaginações afetando o
cólon direito, mesmo que na ausência de preparação intestinal, ao passo que nas
invaginações afetando o cólon esquerdo ou retossigmóide está preconizada a
resseção tipo Hartmann, com reconstrução do trânsito intestinal numa segunda
fase.
Todavia, perante o diagnóstico pré-operatório seguro de lesão benigna, a
invaginação pode ser reduzida com expressão intestinal, de distal para
proximal, permitindo assim uma resseção limitada. (19) Na presença de múltiplos
pequenos pólipos (como por exemplo, no síndrome de Peutz-Jeghers), e devido ao
risco de síndrome do intestino curto, preconiza-se uma abordagem combinada com
resseção segmentar limitada e polipectomia múltipla. (4)
Nos pacientes com obstrução intestinal pós-operatória devida a invaginação, a
redução também está recomendada, desde que a viabilidade vascular intestinal
esteja assegurada. (1)
A via de abordagem para a intervenção cirúrgica na invaginação intestinal tem
sido alvo de reflexão, sendo que a abordagem por via laparoscópica tem sido
utilizada com sucesso em casos selecionados.
CONCLUSÃO
A invaginação intestinal idiopática do adulto é uma entidade nosológica rara.
Os autores reportaram um caso de invaginação ileocecal idiopática referindo os
principais aspetos para o diagnóstico e tratamento adequados. O diagnóstico
pré-operatório geralmente é desafiador e muitas vezes atrasado, em virtude da
inespecificidade sintomatológica e apresentação normalmente subaguda, ao
contrário do quadro clínico patognomónico de invaginação que decorre na
criança. A tomografia computorizada abdominal é considerada como o
goldstandardpara o diagnóstico imagiológico desta entidade, permitindo
diagnosticar a presença ou ausência de um ponto de partida. Em virtude de a
maioria dos casos apresentarem uma causa orgânica subjacente, frequentemente
maligna, a resseção segmentar curativa está indicada. A redução de uma
invaginação do intestino delgado pode ser tentada, desde que o segmento
envolvido apresente viabilidade vascular e a malignidade seja refutada.