Tratamento de sinus perineal persistente, após amputação abdominoperineal do
recto, com retalho muscular pediculado do recto interno
INTRODUÇÃO
No tratamento dos tumores do recto extra peritoneal, a cirurgia descrita por
Miles há mais de um século[1], foi muito popular até há três décadas atrás,
altura em que progressivamente tem visto as suas indicações cada vez mais
restritas, favorecendo técnicas cirúrgicas que têm por objetivo preservar os
esfíncteres[2], mesmo com tumores muito próximos do canal anal. Contudo,
continua a ser uma alternativa de eleição para patologias com invasão do
aparelho esfincteriano em que não é possível preservar a função.
Após uma amputação abdómino-perineal (AAP) do recto com encerramento perineal
primário, a infeção da loca perineal é uma complicação reportada em 7 a 47% dos
casos nas diferentes series publicadas[3-8], sendo a sua incidência maior
quando se apresenta no contexto do tratamento da doença inflamatória intestinal
(DII)[8], especialmente na doença de Crohn(DC)[9]. Várias medidas têm
contribuído para a diminuição das infeções das feridas perineais, como a menor
perda de sangue durante a cirurgia, a correcta dissecção do mesorrecto,
correctos planos de dissecção perineal com hemóstase imediata, ressecção
interesfincteriana na doença inflamatória, não exteriorização de drenos através
períneo e mesmo menores tempos operatório do que há 15 ou 20 anos. No entanto a
persistência de um sinusapós a infecção continua a ser uma complicação, que em
alguns casos, requere uma atitude interventiva.
A drenagem com desbridamento dos tecidos desvitalizados e remoção de corpos
estranhos constitui a primeira abordagem terapêutica, sendo suficiente em
alguns casos[4, 10, 11]. A tendência para a persistência do sinusapós infeção
da loca perineal observa-se em 3 a 69 % dos casos[4, 7, 12, 13], entendendo-se
como persistência a ausência de cicatrização completa seis meses após a
cirurgia, com consequente drenagem contínua da loca perineal[10, 14].
Alguns estudos têm identificado os principais factores de risco para
desenvolver esta complicação (tabela,_1)[5, 8, 10, 13, 15], sendo os mais
importantes a radioterapia pré-operatória[11, 13] e o tratamento da DII por
AAP, principalmente na DC[10].
Características anatómicas podem concorrer para o não encerramento da loca,
após a remoção do recto. A falta de colapso da loca pode ser explicada por uma
boa fixação dos órgãos urogenitais adjacentes, na parede anterior, assim como
pela estrutura óssea que circunda o recto, impedindo o contacto das paredes do
leito cruento que permita a cicatrização. Outros factores como o encerramento
diferido ou a presença de corpos estranhos (packingde compressas) podem
contribuir para uma cicatrização deficiente[3].
A persistência do sinusconstitui uma fonte de grande desconforto para os
doentes, incidindo negativamente na sua, já diminuída, qualidade de vida[9, 11,
16].
Existem várias opções cirúrgicas no tratamento da ferida perineal crónica[8,
11, 17], mas independentemente da técnica escolhida, deverá excluir-se sempre a
recidiva tumoral como causa do não encerramento, pelo que é aconselhado a
realização de exames complementares de imagem e biopsias em vários locais do
trajecto do sinus.
Os retalhos musculares, ao preencherem o espaço morto da cavidade do sinus,
contribuem para o seu encerramento. Podem ser classificados, de um modo geral,
de acordo com algumas das suas características (tabela_2) e no caso dos
retalhos musculares podem ser agrupados de acordo com a vascularização (tabela
3).
Na literatura encontramos várias técnicas de retalhos musculares que têm sido
utilizadas no tratamento dos sinusperineais persistentes (tabela_4)[2, 4, 8,
11, 18-22]. Uma técnica relativamente simples, com bons resultados e pouca
repercussão funcional é o retalho muscular do recto interno da coxa (gracilis)
[13, 18]. De seguida descreveremos um caso clínico em que esta técnica foi
aplicada com sucesso para o tratamento de um sinuspersistente após AAP.
CASO CLÍNICO
Apresentamos um caso clínico de um doente do sexo masculino, de 66 anos de
idade, com antecedentes pessoais de depressão e de neoplasia do recto com
envolvimento do canal anal até à linha pectínea, Estádio IIA, statuspós rádio e
quimioterapia neo-adjuvante, e amputação abdómino-perineal (AAP) em novembro de
2007. O resultado histológico da peça operatória revelou ADC G2 ypT3N0M0, com
14 gânglios sem metástases e margens negativas. No pós-operatório verificou-se
uma retenção urinária o que motivou algaliação durante 3 semanas e apresentou
um seroma infectado da loca perineal, que foi drenado e tratado com pensos de
hidrofibra e hidrocolóide, não se tendo verificado a completa cicatrização da
ferida perineal. No segundo mês do pós-operatório efectuou-se uma biópsia da
loca perineal que permitiu excluir recidiva tumoral. O não encerramento da
loca, resultou num sinusperineal persistente (Fig._1), que condicionou uma
acentuada degradação da sua qualidade de vida, com agravamento do quadro
depressivo, pelo que lhe foi proposto o encerramento do sinusperineal, com
retalho do m. recto interno, três meses após AAP.
Descrição da técnica cirúrgica:
Com o doente em posição de litotomia, sob anestesia geral, realizámos uma
incisão longitudinal na face interna do terço distal da coxa direita, de
aproximadamente 5 cm de comprimento, utilizando como referência uma linha que
divide antero-posteriormente, a região posteromediana da coxa.
À medida que avançámos na dissecção, encontrámos a aponevrose femoral, a qual
seccionámos no mesmo sentido da incisão cutânea e mais profundamente a porção
distal do m. recto interno, a qual isolámos circunferencialmente (Fig._2).
Prolongámos a incisão até à raiz da coxa, o que permitiu isolar o músculo, por
dissecção romba, em todo o seu trajecto, entre os músculos grande adutor
(posteriormente) e médio adutor (anteriormente) (Fig._3).
Após completa dissecção do músculo, identificámos e preservámos o pedículo
dominante. Este provém da artéria circunflexa média, e habitualmente está
localizado entre 10 a 15 cm da inserção do músculo no púbis, passando por baixo
do médio adutor e alcança o m. recto interno na sua face externa, juntamente
com a sua inervação motora (Fig._4).
Após preservarmos a vascularização dominante que garantia a viabilidade do
retalho fizemos a sua secção, de maneira a permitir a sua rotação e colocação
no interior da loca (Fig._5)
Uma vez pronto o retalho, procedemos à incisão e curetagem do interior do
sinus, removendo o tecido de granulação e preparando a cavidade para receber o
enxerto. Abrimos um trajeto subcutâneo através do qual fizemos passar o
retalho, realizando uma rotação de 180° em sentido anti-horário, e preenchemos
desta forma a loca, de maneira a evitar qualquer compressão ou tensão do
retalho (Fig._6).
Fixámos o músculo ao interior da loca com 3 a 4 pontos de sutura reabsorvível
(Fig._7) e encerrámos a ferida perineal com pontos separados de seda 00. Na
coxa encerrámos a aponevrose femoral com sutura reabsorvível e encerrámos o
plano cutâneo com agrafos. Deixámos um dreno aspirativo no períneo (Fig._8)
O tempo operatório foi de 145 minutos.
Pós-operatório e follow-up
O pós-operatório decorreu sem intercorrências, tendo o doente tido alta ao 3°
dia do pós-operatório, já sem dreno aspirativo. Os pontos da ferida perineal e
os agrafos da ferida da coxa foram removidos ao 13° dia do pós-operatório.
Houve cicatrização completa da ferida perineal (Fig._9).
O doente encontra-se clinicamente bem, após 5 anos e 6 meses de follow-up, sem
evidência de recidiva da doença neoplásica e sem recidiva do sinusperineal.
COMENTÁRIOS
A abordagem inicial do m. recto interno da coxa, é feita na sua porção
tendinosa que está em relação com os tendões do m. costureiro (mais anterior) e
o semitendinoso (mais posterior). Habitualmente é fácil identificar e
individualizar o seu trajecto, mas deve-se ter em conta que mais distalmente,
estes três músculos partilham uma inserção tendinosa comum na tíbia conhecida
como "pata de ganso", pelo que nesta zona estão muito próximos. Outro
aspecto ao qual se deve prestar especial atenção é à vascularização do retalho.
Na maioria dos casos o pedículo dominante divide-se em 3 ou 4 ramos mais
pequenos antes de aceder ao músculo. Estes ramos não devem ser confundidos com
os pedículos acessórios, habitualmente em número de três e que correspondem a
um ramo da artéria dos adutores que passa entre o médio e pequeno adutor e que
se divide em dois ramos (ascendente e descendente), a um ramo colateral da
artéria femoral superficial que nasce inferior ao canal de Huntere que cruza
pela frente o grande adutor, e ao pedículo mais distal de todos, formado por
duas arteríolas que nascem da artéria femoral ao nível do canal de Hunter.
Também se deve ter cuidado para não lesar a veia e o nervo safeno interno,
especialmente nos dois terços distais da coxa, onde se encontram muito próximos
do m. recto interno.
Alguns autores privilegiam a realização da cirurgia em posição
"jackknife"[18]. Nós preferimos a posição de litotomia que, na nossa
opinião torna o procedimento mais simples.
Apesar das múltiplas opções descritas para o tratamento do sinusperineal
persistente após AAP, consideramos que a utilização do retalho muscular
pediculado do recto interno da coxa é uma boa opção terapêutica. Podem ser
realizados por cirurgiões gerais que estejam familiarizados com esta a técnica,
com os princípios gerais que regem a confecção dos retalhos assim como com os
aspectos anatómicos particulares.
Esta solução apresenta como principais vantagens: a fácil execução, a sua
reprodutibilidade, uma rápida curva de aprendizagem para o cirurgião geral, uma
boa capacidade de preenchimento da loca perineal até com a possibilidade de
utilização bilateral do músculo no caso de defeitos maiores, com mínima
repercussão funcional e com efeito cosmético aceitável.