O papel do doseamento da paratormona após tiroidectomia total
EDITORIAL TEMÁTICO
O papel do doseamento da paratormona após tiroidectomia total
Role of parathormon dosage after total thyroidectomy
João Capela da Costa
Coordenador do Capítulo de Cirurgia Endócrina da Sociedade Portuguesa de
Cirurgia
Correspondência
Este número da Revista Portuguesa de Cirurgia publica um artigo sobre o papel
do doseamento perioperatório da paratormona (PTH) na previsão das variações dos
níveis da calcemia após tiroidectomia total, com o intuito de identificar os
doentes que poderiam beneficiar da realização, de forma segura, desta cirurgia
em regime ambulatório.
Nos últimos anos vários factores levaram a uma diminuição das complicações pós-
operatórias graves da cirurgia tiroideia, de que se realçam os avanços na
técnica cirúrgica e a existência de equipas com formação especializada em
unidades funcionais de cirurgia endócrina. Também a realização de doseamentos
peri-operatórios da PTH e a introdução de protocolos para suplementação com
cálcio e vitamina D permitiram a melhoria dos parâmetros pós-operatórios e
possibilitaram a realização de cirurgia com alta precoce ou em regime de
ambulatório / one day surgery[1,2,3,4,5,6,7,8].
O hipoparatiroidismo iatrogénico é a complicação mais frequente da
tireoidectomia total ou da totalização de uma tiroidectomia prévia e resulta da
lesão intra-operatória das paratiróides por traumatismo directo, por
desvascularização ou pela sua exérese acidental. A frequência do
hipoparatiroidismo iatrogénico é proporcional à extensão da tiroidectomia e
inversamente proporcional à experiência do cirurgião. Depende também da idade e
sexo do doente, da presença de hipertiroidismo, bócio mergulhante ou de
malignidade tiroideia, do número de paratiróides identificadas intra-
operatoriamente, do uso de bisturi ultrassónico, de se tratar de uma reoperação
e da eventual realização de esvaziamento ganglionar cervical[1,2,3,4,7,9]. Na
maior parte das vezes é transitório e condiciona o aumento dos custos e do
tempo de internamento hospitalar. Quando é permanente pode afectar seriamente a
qualidade de vida do doente, com necessidade de múltiplas admissões no serviço
de urgência ou mesmo de internamentos hospitalares não programados.
A previsão atempada do hipoparatiroidismo iatrogénico é fundamental para
identificar os doentes que devem ser medicados com cálcio e vitamina D e os que
podem ter alta precoce sem acarretar um aumento da taxa de reinternamentos. O
teste ideal para este rastreio será aquele que identifique com eficácia os
doentes que se irão manter normocalcémicos após tireoidectomia. Nos últimos
anos, vários parâmetros bioquímicos foram avaliados como preditores do
desenvolvimento de hipocalcemia pós-operatória, como a PTH, o cálcio total, o
cálcio ionizado e a vitamina D. A fiabilidade destes doseamentos na
identificação dos casos de hipoparatiroidismo é também decisiva na selecção dos
doentes que podem potencialmente beneficiar de cirurgia em regime de
ambulatório.
O tradicional doseamento isolado da calcemia não tem acuidade suficiente para
poder ser usada como parâmetro de previsão do hipoparatiroidismo. Em primeiro
lugar, porque hipocalcemia (descrita até 60% dos doentes) não significa o mesmo
que hipoparatiroidismo. A diminuição do cálcio sérico pode ter outras causas,
como a hemodiluição, a deficiência associada de vitamina D e o desenvolvimento
pós-operatório de uma síndrome de osso faminto. Também a patologia ósteo-
articular, o hipertiroidismo e a administração de diuréticos podem interferir
com os valores de cálcio e PTH séricos. Por outro lado, a utilização da
calcemia peri-operatória exige uma monitorização rigorosa e seriada dos níveis
de cálcio, o que acarreta um aumento do tempo de internamento e dos custos
associados, sabendo que os valores mínimos apenas surgem, na maioria dos casos,
entre as 24 e as 48 horas após tiroidectomia[1,2,3,4,5,6,7,8,9].
O doseamento da PTH tem sido extensamente avaliado na literatura médica com
excelentes resultados, apesar dos falsos positivos descritos. Na realidade, os
valores baixos da PTH após a cirurgia são frequentemente temporários e podem
não se correlacionar com a presença de sintomas de hipocalcemia. Por outro
lado, não existem normas que definam com precisão o timingdo doseamento pós-
operatório da PTH nem os valores de cut offa utilizar (quadro_1). O que parece
ser consensual, é que valores de PTH pós-operatórios normais praticamente
descartam o aparecimento posterior de hipocalcemia sintomática. Tem sido também
descrita uma diminuição significativa dos custos associados com o uso
protocolado do doseamento de PTH[1,2,3,4,5,6,7,8].
Na Unidade de Cirurgia Endócrina e Cervical do Serviço de Cirurgia Geral do
Hospital de São João foi efectuado um estudo prospectivo entre Agosto 2008 e
Agosto 2010 para avaliação da utilidade dos doseamentos peri-operatórios de
PTH, cálcio total e fósforo em doentes propostos para cirurgia tiroideia (dados
não publicados). Foram avaliados 976 doentes e efectuado um rastreio pré-
operatório de anomalias daqueles parâmetros analíticos. Nos casos em que o
rastreio foi positivo, procedeu-se ao estudo analítico e imagiológico
(ecografia e cintigrafia) para despiste de hipovitaminose D ou de
hiperparatiroidismo primário não suspeitado. Foram assim diagnosticados e
tratados 28 doentes com hiperparatiroidismo primário, concomitantemente à
cirurgia tiroideia. Nos 738 casos com rastreio negativo seguiu-se um protocolo
de determinação de PTH, cálcio total e cálcio ionizado entre as 12 e 24 horas
após tiroidectomia. Os doentes com sinais ou sintomas de hipocalcemia ou
alterações desses valores analíticos, tiveram alta medicados com suplementos de
carbonato de cálcio e de calcitriol. O tempo de internamento médio foi de 3,4
dias nos 129 casos em que a PTH foi menor de 15pg/ml e 1,75 dias nos 609 com
PTH maior de 15pg/ml. Tiveram alta hospitalar 56% dos doentes em menos de 48
horas e a taxa de reinternamento foi < 1% (n=3). Obtivemos 126 casos de
hipoparatiroidismo transitório (17%) e apenas 3 de hipoparatiroidismo
definitivo (0,4%).
Têm sido descritos vários protocolos de suplementação com cálcio e vitamina D,
que não só reduzem a incidência e a gravidade da hipocalcemia, como também
possibilitam a alta precoce com maior segurança. No entanto, os doseamentos
bioquímicos séricos, neste contexto, não podem ser usados com a mesma
fiabilidade diagnóstica, devendo a determinação da PTH anteceder a
administração destes suplementos. Este dado é uma importante limitação do
estudo apresentado no artigo publicado neste número da revista A PTHi PODE
PREVER AS VARIAÇÕES DO CÁLCIO APÓS TIROIDECTOMIA TOTAL?, uma vez que todos os
pacientes estudados foram submetidos a reposição profilática com gluconato de
cálcio endovenoso às 6, 12, 18 e 24h após cirurgia. Por outro lado, a baixa
acuidade da PTH às 12h e 24h após cirurgia, para prever a ocorrência de
hipocalcemia, pode ter sido influenciada por parâmetros potencialmente
causadores de hipocalcemia e que não foram avaliados (ex.: deficiência de
vitamina D, patologia ósteo-articular, hipertiroidismo e administração de
diuréticos).
Por fim, é de realçar neste artigo a realização da tiroidectomia total por uma
equipa dedicada, com formação especializada e técnica cirúrgica padronizada,
certamente responsável pela ausência da influência dos factores técnicos /
operatórios no desenvolvimento de hipocalcemia.
(Este texto não foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico).