Novos anticoagulantes orais no tromboembolismo venoso e fibrilhação auricular
Novos anticoagulantes orais no tromboembolismo venoso e fibrilhação auricular
Luís Silvestre, Augusto Ministro, Ana Evangelista, Luís Mendes Pedro
Centro Hospitalar Lisboa Norte
(Hospital de Santa Maria)
Serviço de Cirurgia Vascular I
(Director. Prof. A. Dinis da Gama)
|RESUMO|
Os antagonistas da vitamina K foram, durante mais de 50 anos, os únicos
anticoagulantes orais disponiveis. A imprevisibilidade da farmacocinética e
farmacodinâmica desta classe de fármacos, responsável pela dificuldade na sua
utilização, conduziu à necessidade do desenvolvimento de novas moléculas
anticoagulantes. Estão actualmente diponíveis os resultados dos estudos de
novos anticoagulantes orais no tromboembolismo venoso e na fibrilhação
auricular, que se revêem neste trabalho.
Palavras-chave: novos anticoagulantes orais, dabigatrano, rivaroxabano,
apixabano
New oral anticoagulants in the treatment of venous thromboembolism and atrial
fibrillation
|ABSTRACT|
For more than 50 years, vitamin K antagonists were the only oral anticoagulants
available. The unpredictability of its pharmacokinetics and pharmacodynamics,
responsible for its difficult clinical management, has raised the need of new
anticoagulants. Results of trials involving the new anticoagulants in venous
thromboembolism and atrial fibrillation are now available and reviewed in this
paper.
Key words: new oral anticoagulants, dabigatran, rivaroxaban, apixaban
INTRODUÇÃO
O tromboembolismo venoso e a fibrilhação auricular são duas patologias bastante
prevalentes nas sociedades desenvolvidas e frequentes na prática clínica dos
cirurgiões vasculares, que partilham entre si a indicação para anticoagulação a
longo prazo.
Até há pouco tempo, os antagonista da vitamina K (varfarina e acenocumarol)
eram os únicos anticoagulantes disponíveis na apresentação oral e, por isso,
amplamente utilizados por todo o mundo.
No entanto, estes fármacos têm numerosas limitações, bem conhecidas de todos,
como uma farmacocinética e farmacodinâmica pouco previsíveis, um início de
acção lento, uma janela terapêutica estreita, múltiplas interacções com outros
fármacos e alimentos e uma considerável variabilidade, quer inter-individual,
quer intra-individual, na relação entre a dose administrada e o respectivo
efeito anticoagulante[1]. Consequentemente, exigem uma monitorização regular da
coagulação, através da determinação do Racio de Normalização Internacional
(INR), e o correspondente ajuste na dose, de forma a evitar os riscos
hemorrágico e trombótico associados à sobre-anticoagulação e sub-
anticoagulação, respectivamente. A estes riscos acresce ainda o dispêndio de
tempo, tanto por parte do doente como do médico, relacionado com a
monitorização da coagulação, que representa custos acrescidos para o sistema de
saúde. Para além disso, mesmo seguindo uma monitorização cuidadosa, o INR
encontra-se frequentemente fora do intervalo terapêutico[2].
Todas estas características dos antagonistas da vitamina K que dificultam o seu
manuseamento contribuem decisivamente para que esta classe de fármacos seja
sub-utilizada mesmo nas situações em que estão formalmente indicados, como é o
caso da fibrilhação auricular[3] e do tromboembolismo venoso.
Assim, a necessidade de anticoagulantes orais igualmente eficazes mas com um
melhor perfil de segurança e facilidade de utilização conduziu ao
desenvolvimento de novas moléculas que têm como mecanismo de acção a inibição
directa da trombina ou do factor Xa.
Depois do primeiro inibidor directo da trombina, o ximelagatrano, não ter sido
aprovado pela Food and Drug Administration por problemas de toxicidade hepática
[3], estão actualmente disponíveis os resultados dos estudos que compararam o
dabigatrano com a varfarina na anticoagulação de doentes com tromboembolismo
venoso[4] e com fibrilhação auricular[5].
No que concerne aos inibidores do factor Xa, foram recentemente publicados os
resultados do rivaroxabano no tromboembolismo venoso[6] e fibrilhação auricular
[7], assim como do apixabano nesta última patologia[8]. Concomitantemente,
encontram-se em curso ensaios de fase III referentes ao apixabano na profilaxia
do tromboembolismo venoso recorrente e do edoxabano na fibrilhação auricular
[9].
DABIGATRANO
O dabigatrano é uma molécula que inibe reversivelmente a trombina.
Após a administração oral, cuja biodisponibilidade é 6%[10], o dabigatrano
atinge o pico plasmático ao fim de 2 horas e tem um tempo de semi-vida de 14 a
17 horas, o que permite a posologia de 1 a 2 vezes por dia[9].
A eliminação deste fármaco ocorre maioritariamente (80%) por via renal, através
de uma bomba de efluxo designada glicoproteína P. Assim, a administração
simultânea de inibidores potentes da glicoproteína P como a quinidina reduz
significativamente a depuração do dabigatrano, aumentando os seus níveis
plasmáticos[11] pelo que está contra-indicada. A amiodarona é um inibidor fraco
da glicoproteína P, que aumenta em cerca de 50% os níveis de dabigatrano[9].
RIVAROXABANO
O rivaroxabano (inibidor directo do factor Xa) tem uma biodisponibilidade oral
de cerca de 80%, atinge a concentração plasmática máxima em 2 a 4 horas e tem
um tempo de semi-vida de de 7 a 11 horas[12].
A sua eliminação ocorre da seguinte forma: 1/3 é excretado pelo rim na sua
forma inalterada; 1/3 tem metabolização hepática a metabolitos inactivos que
são posteriormente eliminados por via renal; e o 1/3 restante tem metabolização
hepática e excreção intestinal dos metabolitos resultantes[9].
Para além da metabolização via citocrómio p450, o rivaroxabano é substrato da
glicoproteína P, pelo que a administração concomitante de inibidores destas
duas proteínas, como é o caso do cetoconazol e do ritonavir, está contra-
indicada, dado o aumento dos níveis plasmáticos de rivaroxabano[10].
APIXABANO
Tal como o rivaroxabano, o apixabano é um inibidor directo do factor Xa que,
após administração oral, atinge a concentração plasmática máxima em cerca de 3
horas[10] e tem um tempo de semi-vida de 8 a 14 horas[9].
A sua excreção faz-se quer por via renal na forma inalterada (25%), quer por
metabolização hepática[9].
TROMBOEMBOLISMO VENOSO
Dabigatrano versus varfarina (Estudo RE-COVER)[4]
No estudo RE-COVER, um estudo randomizado, com dupla ocultação, foi comparada a
eficácia do dabigatrano na dose de 150 mg duas vezes por dia com a varfarina
ajustada a um INR-alvo entre 2,0 e 3,0 após um período inicial de
anticoagulação parentérica. O estudo incluiu 2564 doentes com trombose venosa
profunda ou tromboembolismo pulmonar, durante um período de 6 meses.
O outcome primário, que correspondia à incidência de tromboembolismo venoso
recorrente sintomático ojectivamente confirmado ou morte relacionada, ocorreu
em 2,4% dos doentes no grupo do dabigatrano e 2,1% no grupo da varfarina, o que
traduz a não-inferioridade do dabigatrano relativamente à varfarina (P<0,001).
A incidência de episódios hemorrágicos major foi semelhante nos dois grupos,
1,6% no grupo do dabigatrano e 1,9% no grupo da varfarina, enquanto o
aparecimento de qualquer hemorragia foi ligeiramente superior no grupo da
varfarina (21,9% versus 16,9%).
À excepção da dispepsia, que foi mais frequente no grupo do dabigatrano (2,9%
versus 0,6%), não se observaram diferenças significativas na frequência dos
eventos adversos entre os dois grupos, nomeadamente no que diz respeito à
toxicidade hepática que se verificara com o ximelagatrano.
O autores concluiram que no tratamento do tromboembolismo venoso agudo o
dabigatrano é tão eficaz quanto a varfarina, apresentando um perfil de
segurança semelhante.
Rivaroxabano versus varfarina (Estudo EINSTEIN)[6]
O programa EINSTEIN inclui um cunjunto de 3 estudos randomizados nos quais o
rivaroxabano foi comparado com os antagonistas da vitamina K em três situações
distintas: a trombose venosa profunda aguda dos membros inferiores, o
tromboembolismo pulmonar e o tratamento continuado destas duas situações após o
periodo inicial de 6 a 12 meses de terapêutica.
No estudo da trombose venosa profunda aguda, que envolveu 3449 doentes durante
um período de 3, 6 ou 12 meses, o rivaroxabano (na dose de 15 mg duas vezes/dia
durante 3 semanas seguida de 20 mg/dia) foi comparado com a terapêutica
standard (enoxaparina seguida de varfarina ou acenocumarol ajustada a um INR-
alvo entre 2,0 e 3,0).
O outcome primário, que consistiu na recorrência do tromboembolismo venoso,
ocorreu em 2,1% dos doentes no grupo do rivaroxabano e 3% no grupo da
terapêutica standard, o que traduz uma eficácia semelhante para os dois
esquemas anticoagulantes.
O principal indicador de segurança, a ocorrência de hemorragia major ou
clinicamente relevante, foi idêntica nos dois grupos, 8,1%.
Não se verificaram diferenças entre os grupos em termos de efeitos adversos,
nomeadamente hepáticos.
Os autores concluiram que, na dose utilizada, o rivaroxabano em monoterapia tem
a mesma eficácia e segurança que o esquema anticoagulante standard.
FIBRILHAÇÃO AURICULAR
Neste momento, são conhecidos os resultados de três estudos que comparam os
novos anticoagulantes com a varfarina na prevenção dos eventos tromboembólicos
nos doentes com fibrilhação auricular.
Dabigatrano versus varfarina (Estudo RE-LY)[5]
O estudo RE-LY (Randomized Evaluation of Long-Term Anticoagulation Therapy) é
um estudo randomizado multicêntrico no qual foram incluidos 18.113 com
fibrilhação auricular com o objectivo de comparar o dabigatrano nas doses de
110 mg e 150 mg duas vezes por dia com a varfarina (INR-alvo entre 2,0 e 3,0)
no que diz respeito à prevenção dos eventos tromboembólicos e complicações
hemorrágicas.
O outcome primário (AVC ou embolismo sistémico) ocorreu em 1,53% dos doentes
por ano no grupo do dabigatrano 110 mg, 1,11% no grupo do dabigatrano 150 mg e
1,69% no grupo da varfarina, o que traduz a superioridade do dabigatrano
relativamente à varfarina na dose de 150 mg e a não inferioridade na dose de
110 mg. Estes resultados devem-se em grande parte à menor taxa de AVC
hemorrágico nos grupos do dabigatrano (0,12%/ano na dose de 110 mg e 0,10%/ano
na dose de 150 mg) comparativamente com a varfarina (0,38%/ano) o que equivale
a uma redução do risco relativo desta complicação devastadora para menos de 1/
3 com o dabigatrano.
Relativamente à prevenção do AVC isquémico, comparativamente com a varfarina em
cujo grupo a incidência foi 1,20%/ano, o dabigatrano mostrou uma eficácia
semelhante na dose de 110 mg (1,34%/ano, P=0,34) e foi mesmo mais eficaz na
dose de 150 mg (0,92 /ano, P=0,03).
A taxa de hemorragia major, quando comparada com o grupo da varfarina (3,34%/
ano) foi mais baixa no grupo do dabigatrano 110 mg (2,71%/ano, P=0,003) e
semelhante no grupo do dabigatrano 150 mg (3,11%/ano, P=0,31). Não obstante, a
taxa de hemorragia intracraniana foi mais baixa com o dabigatrano (0,23%/ano na
dose de 110 mg e 0,30%/ano na dose de 150 mg) do que com a varfarina (0,74%/
ano)(P<0,05).
A dispepsia foi o único efeito adverso que ocorreu com maior frequência nos
doentes medicados com o dabigatrano (11,8% na dose de 150 mg, 11,3% na dose de
110 mg e 5,8% no grupo da varfarina). Além disso, a incidência de hemorrafia
digestiva tambem foi significativamente mais elevada no grupo do dabigatrano
150 mg (1,51%/ano versus 1,02%/ano, P<0,001). Estes efeitos podem ser
explicados pela presença de ácido tartárico na composição dos comprimidos, cujo
objectivo é a criação de pH baixo, indispensável à correcta absorção das
moléculas de dabigatrano.
Em conclusão, na dose de 110 mg o dabigatrano teve uma taxa de AVC e embolismo
sistémico semelhante ao da varfarina, com uma incidência mais baixa de
hemorragia major. Pelo contrário, na dose de 150 mg o dabigatrano mostrou uma
taxa de AVC e embolismo sistémico mais baixa que a varfarina, com uma
incidência de hemorragia major semelhante.
Rivaroxabano versus varfarina (Estudo ROCKET AF)[7]
O estudo ROCKET AF (Rivaroxaban Once Daily Oral Direct Factor Xa Inhibition
Compared with Vitamin K Antagonism for Prevention of Stroke em Embolism trial
in Atrial Fibrillation) é um estudo multicêntrico randomizado, com dupla
ocultação, que envolveu 14.264 doentes com fibrilhação auricular e um risco
elevado de AVC, comparando o rivaroxabano com a varfarina na prevenção do AVC
ou embolismo sistémico. O rivaroxabano foi usado na dose de 20 mg/dia nos
doentes com depuração de creatinina ≥50 ml/minuto e 15 mg/dia a nos doentes com
depuração de creatinina entre 30 e 49 ml/minuto. A varfarina foi usada de
acordo com um INR-alvo entre 2,0 e 3,0.
O outcome primário, que consistia na ocorrência de AVC ou embolismo sistémico
verificou-se em 1,2% por ano no grupo do rivaroxabano e 2,2% por ano no grupo
da varfarina (P<0,001 para a não-inferioridade do rivaroxabano).
A taxa de hemorragia major e não-major clinicamente relevante foi semelhante
nos dois grupos: 14,9%/ano no grupo do rivaroxabano e 14,5%/ano no grupo da
varfarina (P=0,44). No entanto, no grupo do rivaroxabano constatou-se uma
redução significativa quer na taxa de hemorragia intracraniana (0,5% versus
0,7%, P=0,02), quer na taxa de hemorragia fatal (0,2% versus 0,5%, P=0,003).
Pelo contrário, a taxa a hemorragia digestiva major foi mais frequente com o
rivaroxabano (3,2% versus 2,2%, P<0,001).
Os autores concluiram que o rivaroxabano se mostrou não-inferior à varfarina na
prevenção do AVC e embolismo sistémico nos doentes com fibrilhação auricular. O
risco global de hemorragia é semelhante mas a incidência de hemorragia
intracraniana e hemorragia fatal são mais baixas com o rivaroxabano.
Apixabano versus varfarina(Estudo ARISTOTLE)[8]
No estudo ARISTOTLE (Apixaban for Reduction in Stroke and other Thromboembolic
Events in Atrial Fibrillation), um estudo randomizado com ocultação dupla, foi
comparado o apixabano na dose de 5 mg duas vezes por dia com a varfarina (INR-
alvo entre 2,0 e 3,0) em 18.201 doentes com fibrilação auricular e um factor de
risco adicional para AVC.
O outcome primário que correspondia à ocorrência de AVC isquémico ou
hemorrágico ou embolismo sistémico, foi de 1,27%/ano no grupo do do apixabano e
1,60%/ano no grupo da varfarina, demonstrando a superioridade do apixabano
(P=0,01).
A taxa de hemorragia major e de AVC hemorrágico foi significativamente mais
baixa no grupo do apixabano, 2,13% versus 3,09% por ano e 0,24% versus 0,48%,
respectivamente (P<0,001).
A taxa de mortalidade por qualquer causa foi inferior no grupo do apixabano
(3,52% versus 3,94% por ano, P=0,047) e a ocorrência de outros efeito adversos
foi semelhante nos dois grupos.
Os autores concluiram que o apixabano foi superior à varfarina na prevenção do
AVC isquémico e embolismo sistémico e teve menos complicações hemorrágicos,
resultando numa morbilidade mais baixa.
CONCLUSÃO
Durante mais de 50 anos, os antagonistas da vitamina K foram os únicos fármacos
disponíveis para a anticoagulação a longo prazo dos doentes com fibrilhação
auricular e tromboembolismo venoso. Actualmente são conhecidos os resultados
dos estudos de vários dos novos anticoagulantes orais nestas duas situações.
Na profilaxia do tromboembolismo venoso tanto o dabigatrano como o rivaroxabano
mostraram um perfil de eficácia e de segurança não inferior ao da varfina.
Na fibrilhação auricular, em comparação com a varfarina, todos os novos
anticoagulantes (dabigatrano, rivaroxabano e apixabano) reduziram
significativamente quer o risco de AVC e eventos tromboembólicos (muito à custa
da redução da ocorrência de AVC hemorrágico), quer a ocorrência de hemorragias
graves. A redução do risco de AVC hemorrágico por parte destes novos fármacos
sugere a existência de um risco específico associado à varfarina, possivelmente
relacionado com a inibição simultânea de vários factores de coagulação ou com a
interacção entre a varfarina e os complexos de factor VIIa no cérebro[8].
Apesar das semelhanças entre os diversos estudos apresentados, existem várias
diferenças estruturais no seu desenho que impedem a comparação directa dos
novos anticoagulantes ente si[13].
Apesar de todas as vantagens enumeradas, os novos anticoagulantes orais têm
também dois inconvenientes. O primeiro é o preço, muito superior ao da
varfarina, mesmo depois de contabilizados os custos da monitorização do INR. O
segundo é a inexistência de antídotos que revertam o seu efeito anticoagulante
[13].
Assim, embora estes novos fármacos sejam alternativas atractivas aos
antagonistas da vitamina K, o seu elevado custo constitui um entrave à sua
utilização generalizada, pelo que no imediato devem ser reservados para os
casos de difícil controlo de INR[13].
Depois de muitas décadas, estão finalmente disponíveis alternativas aos
anticoagulantes tradicionais que certamente irão revolucionar o paradigma da
anticoagulação oral, com uma utilização crescente nos próximos anos.