Úlcera crónica do membro inferior: experiência com cinquenta doentes
Introdução
Define-se úlcera crónica dos membros inferiores como uma ferida que não
cicatriza num período de 6 semanas, apesar do tratamento adequado1.
Trata-se de uma entidade comum, envolvendo 1 a 1,5% da população mundial, que
consome recursos, causando frustração nos profissionais de saúde e nos doentes,
condicionando degradação da sua qualidade de vida e dias de trabalho perdidos2.
São múltiplas as causas de úlceras crónicas, incluin do vasculares,
neuropáticas, linfedema, artrite reumatoide, traumáticas, osteomielite crónica,
anemia falciforme, vasculites, tumores cutâneos (basocelulares e
espinocelulares), doenças infecciosas crónicas (lepra, tuberculose,
leishmaniose), entre outras1-3. Em aproximadamente 3,5% dos doentes, a causa da
úlcera não é identificada2.
A etiologia vascular predomina, sendo que a hipertensão venosa é responsável
por 60 a 70% das úlceras e 10 a 25% por insuficiência arterial, que pode
coexistir com a doença venosa (úlcera mista). Esta situação requer uma
abordagem mais complexa e reveste-se de maior gravidade4.
Neste estudo abordámos as úlceras de etiologia vascular, procurando traçar o
perfil deste doente e qual a resposta à terapêutica otimizada integrada,
adaptada ao status vascular do doente. Avaliámos também os fatores que poderão
contribuir para o atraso de cicatrização, realçando o papel da infeção.
Material e métodos
Realizámos um estudo retrospetivo e descritivo, de 50 doentes consecutivos
documentados, com o primeiro episódio de consulta de Cirurgia Vascular entre
2000 a 2010.
Como critério de inclusão, selecionaram doentes com úlcera localizada na perna
ou pé, que não cicatrizou por um período superior a 6 semanas. Foram excluídos
doentes sem capacidade de deambulação.
Por consulta do processo clínico foram recolhidos os dados epidemiológicos
respeitantes à idade, sexo, raça, diabetes, hipertensão arterial, obesidade
(considerado o índice de massa corporal superior a 35), antecedentes de
insuficiência cardíaca congestiva, evidência de trombose venosa profunda e
episódios de úlcera homolateral no passado.
Todos os doentes efetuaram Eco-doppler arterial e venoso dos membros
inferiores, pelo mesmo operador, com aparelho Vivid 7, sonda 7.5mHz. Para o
estudo arterial, foi efetuada abordagem femoral, popliteia, tibial posterior
retromaleolar e pediosa. Nos doentes em que era possível, pelas dimensões da
úlcera, foi determinado o índice tornozelo braço (Pressão Arterial Sistólica
Membro inferior/Pressão Arterial Sistólica do Membro Superior). Foi considerada
obstrução arterial significativa a perda do caráter trifásico da curva de
velocidade e/ou índice tornozelo braço inferior a 0,9.
O eco-doppler venoso foi efetuado com o doente em pé e em decúbito, avaliando-
se a permeabilidade e competência do sistema profundo a nível femoral e
poplíteo. O sistema venoso superficial foi estudado quanto à competência
valvular a nível de toda a veia safena interna, externa e perfurantes. Foi
considerada segmento com refluxo quando havia fluxo retrógrado com tempo
superior a 0,5 segundos e velocidade maior que 30 cm/segundos.
Foram registadas as análises bacteriológicas das úlceras, se efetuadas, com
respetiva sensibilidade antibiótica.
Foram ainda discriminadas as modalidades terapêuticas utilizadas e respetivo
resultado.
Resultados
A idade média dos doentes foi 69,16 anos e verificou-se uma ligeira prevalência
do sexo masculino (56%).
Relativamente às comorbilidades, verificou-se em uma maior percentagem de
doentes a presença de HTA (80%), e com menor frequência, a obesidade e a
diabetes. Em 42% dos doentes já existiam antecedentes de úlcera de perna
(tabela_1).
A dimensão média da úlcera foi de 17,8 cm2 e cerca de 70% dos doentes
apresentavam úlcera ativa com mais de 6 meses de evolução (tabela_2).
Ao comparar as dimensões das úlceras com o tempo de cicatrização, verificou-se
que, quanto maior o tamanho inicial da úlcera, mais prolongado é o tempo de
cicatrização (tabela_3).
Ao caraterizar os grupos, de acordo com o tempo de cicatrização, e investigar a
presença de fatores adversos na cicatrização como as comorbilidades bem como a
presença de infeção, verificamos que, no grupo com tempo de cicatrização
superior a 18 meses, 63% dos doentes tinha Diabetes Mellitus e 45% eram obesos.
A presença de infeção foi maior no grupo com úlcera de duração 6-18 meses
(tabela_4).
Em relação à etiologia 56% eram venosas, e destas, 71,4% tinham envolvimento do
sistema venoso superficial apenas e 21,4% com envolvimento do sistema venoso
profundo e superficial. 26% das úlceras tinham etiologia mista e 18%
apresentavam etiologia arterial (tabela_5).
Relativamente à insuficiência venosa pelo sistema venoso superficial, os
doentes apresentavam diferentes distribuições pela veia safena interna, externa
e/ou perfurantes (fig._1).
Quanto à terapêutica, esta foi diversificada já que o padrão de patologia
também abrangia várias patologias.
A Cirurgia foi realizada essencialmente para a insuficiência venosa superficial
isolada (53,1% dos doentes) e na úlcera com componente arterial (77% dos
doentes com úlceras isquémicas). Foram ainda utilizados procedimentos
cirúrgicos isolados de intervenção direta, como os enxertos de pele em 11,7% ou
como forma de terapêutica associada em 23,5% (tabela_6).
A terapia compressiva foi aplicada tanto nos doentes submetidos a cirurgia bem
como nos 47% dos doentes que não foram operados, por apresentarem insuficiência
do sistema venoso profundo isolada (20%), comorbilidades significativas (60%) e
ainda em doentes que estavam a aguardar cirurgia na altura da realização do
estudo (20%).
O tipo de contenção elástica usada foi a meia elástica em 71% e a ligadura
elástica em 24%. O grau de adesão à contenção elástica foi de 75%, não havendo
dados em 3,5% doentes.
A percentagem de doentes que apresentaram melhoria ou mesmo a cicatrização da
úlcera com o tratamento compressivo foi 66%.
Discussão
A úlcera crónica dos membros inferiores está associada um elevado tempo de
cicatrização e frequente recorrência, consumindo recursos e tempo aos
cuidadores, ao doente e à sua família.
O nosso estudo pretende conhecer melhor esta população e os fatores envolvidos
no desenvolvimento e manutenção da úlcera, de modo a abordar os doentes de
forma mais eficaz com vista à cicatrização das lesões e à prevenção das
recorrências. Para tal, a partilha de cuidados e conhecimentos com os cuidados
de saúde primários é fundamental, numa visão holística e integrada da saúde.
No estudo que efetuámos com esse fim, a população estudada apresentou uma média
de idade de 69 anos, que está de acordo com a literatura, que refere maior
prevalência de úlcera com a idade, que é de 1-2% na população global,
aumentando para 3 a 5% na população com idade superior a 65 anos5.
Em relação à etiologia, o nosso estudo incidiu num subgrupo populacional
orientado especificamente para a consulta de Cirurgia Vascular, pelo que foi
detetada etiologia vascular em 100% dos doentes. Verificou-se que a etiologia
venosa foi predominante estando envolvida de forma isolada em 56% dos casos,
associada à insuficiência arterial em 26% (úlceras de etiologia mista) e
unicamente relacionadas com doença arterial em 18% dos doentes. Os dados
referentes ao número de úlceras mistas e arteriais são superiores aos descritos
na literatura, sendo provavelmente enviesados por ser uma consulta altamente
especializada6.
Nos doentes com úlceras de etiologia venosa, a alteração fisiopatológica
responsável pela manutenção da úlcera é a hipertensão venosa. Esta é mais
frequentemente causada por insuficiência do sistema venoso superficial,
constituindo a causa mais simples de abordar de forma curativa com cirurgia
(vulgo Úlcera varicosa). Também a oclusão ou insuficiência do sistema venoso
profundo, secundária a tromboses venosas, condicionam hipertensão venosa, que é
uma situação mais grave e com uma abordagem terapêutica mais difícil e
refratária. As cirurgias do sistema venoso profundo são muito invasivas e com
resultados pouco promissores quando comparado com a terapia compressiva bem
aplicada. Importa assim distinguir estas duas alterações do sistema venoso, com
o mesmo defeito fisiopatológico (hipertensão venosa), mas de abordagem
terapêutica distinta.
Também pelo mecanismo da hipertensão venosa, as situações de bloqueio da
articulação tibiotársica ou imobilidade, ao interromper o efeito da bomba
muscular, poderá condicionar úlceras de perna, mesmo sem alterações da
circulação arterial ou venosa.
No nosso estudo a insuficiência venosa superficial isolada foi responsável por
71% das úlceras de etiologia venosa e o sistema venoso profundo isolada em
7,2%, sendo que em 21,4% estavam envolvidos os dois.
No nosso estudo, verificou-se ainda que em 44% dos doentes existia compromisso
da circulação arterial, e em 18% como único fator vascular responsável pela
úlcera, distribuindo pelos vários territórios: 11% do setor aorto-ilíaco, 55%
do sector femoro-popliteo e 33% do setor tibio-peroneal.
Nos doentes com compromisso arterial e venoso, a abordagem é particularmente
difícil, pois a existência de alteração da perfusão arterial contra-indica o
uso de compressão elástica, já que pode compromoter ainda mais a perfusão,
levando ao agravamento da isquémia.
Deste modo, apesar do aspeto da úlcera ser um precioso indicador da etiologia
arterial ou venosa da úlcera (tabela_7), o sistema arterial deve ser avaliado
sistematicamente ao selecionar a terapêutica compressiva7.
Uma revisão Cochrane concluiu que a compressão venosa promove a cicatrização da
úlcera nos doentes cuja etiologia da mesma era a hipertensão venosa, sobretudo
se utilizada a alta compressão, estando assim recomendada uma pressão de 40
mmHg8.
Utilizámos essencialmente para terapia compressiva o kit de úlcera, que
constitui atualmente um auxiliar muito útil na abordagem dos doentes com
hipertensão venosa. É muito superior a bandagem com ligaduras pois é mais
consistente, não variando com o operador e permitindo ao doente a sua remoção e
colocação para a higiene. Este kit é constituído por duas meias de compressão
sobrepostas de 20 mmHg de pressão a nível do tornozelo (baixa pressão). A meia
a usar diretamente sobre o penso é constituída por 71% poliamina, 28% elastano
e 1% prata, com propriedades antimicrobianas e deve ser usado dia e noite. A
segunda meia é composta de 75% poliamina e 25% de elastano e é usado apenas
durante o dia, quando há deambulação e aumento da hipertensão venosa.
Esta sobreposição de meias para alcançar a pressão eficaz torna também a
utilização mais fácil, sobretudo nos doentes idosos e com grandes pensos,
simplificando colocar duas meias de mais baixa pressão em alternativa a apenas
uma mais forte.
Esta eficácia de terapia compressiva foi ainda demonstrada no nosso estudo ao
conseguirmos obter uma cicatrização da úlcera em 66% dos doentes quem que esta
foi a única modalidade terapêutica utilizada (doentes com patologia do sistema
venoso profundo, comorbilidades que impediram a cirurgia ou doentes que se
encontravam a aguardar cirurgia).
Nos doentes com etiologia arterial e mista da úlcera, verificou-se taxas mais
baixas de cicatrização, verificando-se no grupo de doentes unicamente
arteriais, que cerca de metade sofreram amputação, o que realça o mau
prognóstico destes casos e a necessidade de abordagem precoce, evitando rotular
todas as úlceras de varicóticas, sendo de suma importância o despiste de
doença arterial.
Além da idade e da patologia de base na etiologia da úlcera, foram estudados
outros fatores que poderiam comprometer a cicatrização da úlcera, verificando-
se que a diabetes mellitus estava presente em igual percentagem nos doentes que
cicatrizaram e nos que não cicatrizaram, contribuindo a hipertensão arterial
para a não cicatrização. A obesidade esteve presente em 46% dos doentes com
úlcera.
As úlceras estão frequentemente colonizadas por flora mista que não deve ser
confundida com infeção secundária. São sinais que fazem suspeitar da infeção o
aparecimento de dor, aumento de exsudação, aumento das dimensões da úlcera ou
aparecimento de odor. Nestes casos é fundamental efetuar zaragatoa e valorizar
úlceras colonizadas por mais de 105 microrganismos por grama de tecido9. Nestes
casos deve ser instituída antibioterapia dirigida pelo teste de sensibilidade
antibiótica. Não deve ser realizado o despiste sistemático de infeção se não
houverem sinais concretos que esta poderá estar presente de modo a evitar a
antibioterapia desnecessária e dispendiosa, associada ao desenvolvimento de
resistências bacterianas.
Na nossa série isolado agente infeccioso em 30% das úlceras, estando 50% destas
com valores patológicos de MRSA. A presença de infeção documentada esteve
também associada a maior dificuldade de cicatrização, observando-se uma duração
média de úlcera ativa de 21,6 meses nos doentes infetados e 80% destes
mantiveram úlcera ativa mais de 18 meses.
A recorrência também é frequente, descrevendo-se na literatura 30% de
recorrência no primeiro ano e de 78% aos dois anos10. No nosso estudo 42% dos
dentes já tinham tido episódio prévio de úlcera homolateral. A adesão à
contenção elástica, mesmo após a cirurgia de varizes, e a cicatrização da
úlcera é incontornável nestes doentes para prevenir a recorrência (recomendação
com nível de evidência C)11.
Como se pode observar no nosso estudo, a intervenção para a terapêutica destes
doentes com úlceras extensas (média de dimensões de 17,8 cm2) e de longa
evolução, requereram tratamentos complementares além do dirigido à etiologia
vascular da úlcera. Foi necessário em 44% dos doentes com úlceras de etiologia
arterial efetuar terapia hiperbárica e em 23,5% dos doentes com cirurgia de
varizes proceder a enxerto de pele. Esta abordagem integrada, complexa, foi
essencial para a cicatrização da úlcera e não deve ser perdido o timing ideal,
com altas precoces sem o doentes estar curado, facilitando a sobreinfeção e
consequente agravamento da lesão deitando a perder o que já tinha sido
investido.
E finalmente, não devem ser esquecidos o despiste e a correção de fatores
gerais do doente que possam contribuir para o atraso da cicatrização como o
estado nutricional, equilíbrio da diabetes e tensão arterial, controlo de
fatores de risco para aterosclerose e o acompanhamento do doente ao longo do
seu tratamento reforçando a adesão à terapêutica, nomeadamente a contenção
elástica.
Conclusão
O conhecimento da realidade desta doença e das necessidades dos doentes
permitem a elaboração de estratégias de intervenção de modo a poder melhorar a
prestação de cuidados aos doentes com úlceras de perna no sentido de reduzir o
tempo de cicatrização, prevenir a reincidência e promover a racionalização de
recursos da saúde e melhoria da qualidade de vida.
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*Autor_para_correspondência:
Correio eletrónico: ana.raquel.22@gmail.com (A. Afonso).
Notas
*
Trabalho apresentado no XI congresso da Sociedade Portuguesa de Angiologia e
Cirurgia Vascular, 23 a 25 de Junho 2011 em Viseu.