Tratamento cirúrgico de malformação digital congénita do membro superior
Introdução
As malformações arteriovenosas (MAV) podem ter uma apresentação clínica e
evolução imprevisíveis1. Presentes desde o nascimento, podem ser totalmente
assintomáticas ou permanecer clinicamente quiescentes sob a forma de uma marca
de nascimento ou de uma massa palpável. Alguns estímulos podem desencadear um
crescimento repentino da MAV, nomeadamente o trauma, hormonas ou ainda a
ressecção incompleta do nidus de uma MAV1.
A sua classificação tem sofrido transformações ao longo do tempo sendo que é
actualmente aceite a Classificação da International Society of Study of
Vascular Anomaly ' ISSVA acordada em Hamburgo em 19882. Esta classificação
diferencia as diferentes MAV de acordo com diversos critérios, nomeadamente o
defeito vascular predominante; o estadio de desenvolvimento embrionário em que
se verificou a interrupção da diferenciação celular e ainda de acordo com a
apresentação clínica. Mulliken incorporou características hemodinâmicas das MAV
na sua classificação, distinguindo-as em lesões de alto ou de baixo débito3. A
classificação das MAV, ao incorporar em si aspectos etiológicos, anatómicos,
fisiopatológicos e hemodinâmicos permite uma abordagem clínica esclarecida das
MAV4(tabela_1)5.
A abordagem diagnóstica e terapêutica das MAV permanece um desafio4. As
intervenções endovasculares e a cirurgia convencional têm um papel complementar
no tratamento das MAV6. Contudo, nas MAV digitais o risco de complicações
associadas à emboloterapia não são menosprezíveis, podendo aquela estar
contraindicada7. Os autores apresentam um caso clínico de uma malformação
arteriovenosa congénita digital do membro superior que foi abordado
exclusivamente por cirurgia convencional.
Caso clínico
Mulher de 27 anos sem antecedentes pessoais relevantes, com dominância dextra
para as actividades de vida diária, já seguida em consulta por malformação
congénita do 5º dedo apresentou queixas de aumento da massa, com dor e
impotência funcional associadas a um impacto cosmético significativo de
agravamento progressivo após traumatismo do dedo. Ao exame objectivo,
salientava-se a presença de uma massa pulsátil, eritematosa, com um
envolvimento semi-circunferencial da falange proximal do 5º dedo da mão direita
(fig._1). Não se objectivaram alterações de pulsos periféricos, de diâmetro
braquial ou antebraquial nem se identificavam lesões significativas no restante
exame objectivo da pele.
A investigação etiológica contemplou a realização de um ecodoppler que
confirmou a presença de um ninho hipervascular no 5ºdedo da mão direita, sendo
detectada uma elevação na velocidade do fluxo sanguíneo ao nível da veia
digital própria lateral do 5º dedo.
A avaliação pré-operatória incluiu a realização de uma arteriografia do membro
superior direito após selectivação da artéria subclávia direita e
posteriormente da umeral direita (fig._2). Não foram encontrados outras
malformações arteriovenosas no membro superior direito.
A doente foi submetida sob anestesia geral a ressecção da malformação
arteriovenosa e laqueação da artéria palmar digital própria medial do 5º dedo
(fig._3). O exame histopatológico confirmou a presença de uma malformação
predominantemente arteriovenosa, localizada.
Após um seguimento de 8 meses, a doente apresenta a ferida cirúrgica
cicatrizada, sem impotência funcional do dedo e sem evidência clínica de
recidiva (fig._4).
Comentários
As indicações para o tratamento das malformações congénitas encontram-se
sumarizadas na tabela_2.
A correcta classificação do tipo de malformação no que respeita às suas
características hemodinâmicas é fulcral para a correcta elaboração de uma
estratégia terapêutica tendencialmente multidisciplinar4,8. Assim, em lesões
com fluxo de baixo débito prevalece a utilização de escleroterapia enquanto nas
lesões com alto débito são frequentemente conjugadas a emboloterapia e a
cirurgia7.
Embora a história clínica dirigida e um exame físico minucioso sejam essenciais
para o diagnóstico clínico, a confirmação do diagnóstico requer a utilização de
diversos meios complementares de diagnóstico. Contudo, entre estes, os exames
invasivos permanecem ainda como referência para a sua abordagem4.
A angiografia tem ainda um papel importante na investigação das MAV,
caracterizando a sua anatomia e seus principais ramos aferentes e determinando
a elegibilidade da lesão para emboloterapia7. Alguns autores preconizam a
arteriografia com suspensão de fluxo na MAV, obtida com a utilização de um cuff
insuflado a uma pressão acima da pressão arterial sistémica durante uma curta
duração9. As vantagens apontadas por alguns autores para este método são a
melhor discriminação dos vasos aferentes da MAV. Contudo, esta opção não é
consensual, sendo que imagens igualmente discriminativas podem ser obtidas sem
recurso a esta técnica7.
O tratamento cirúrgico das MAV contemplava no passado a laqueação cirúrgica
isolada de ramos aferentes. No entanto, as evidências demonstraram que na
maioria dos casos este tipo de intervenção era responsável pelo desenvolvimento
rápido de novas colaterais com consequente crescimento da MAV, tornando os
tratamentos subsequentes mais difíceis6, devendo por isso ser evitado9.
Actualmente, a excisão completa da lesão ou a destruição do seu nidus são a
estratégia cirúrgica mais eficaz no seu tratamento. Alguns doentes com ameaça
de vida/membro nos quais não é possível realizar a excisão podem beneficiar de
cirurgia com redução de massa ou de uma compartimentalização da MAV para o
controlo sintomático.
Nas MAV da extremidade superior, a emboloterapia é durável quando utilizada de
forma isolada ou combinada com a cirurgia convencional9. Contudo, a embolização
de uma MAV digital cujo ninho é vascularizado a partir de colaterais na
dependência directa das artérias digitais tem um elevado risco de isquémia do
dedo7, como no caso aqui apresentado. Tan et al.7 reportaram entre a sua coorte
15 doentes com MAV dos membros superiores (MS), dos quais 3 envolviam os dedos.
Destes, em 2 não foi realizada qualquer intervenção tendo ocorrido agravamento
da sintomatologia, e em 1 foi realizada injecção directa de cola, tendo esta
MAV recidivado após 4 anos. Já White et al.9 apresentaram 11 MAV dos MS, 3 dos
quais com atingimento digital. Destes, 2 doentes foram submetidos a uma
amputação de dedo.
Em conclusão, o tratamento das malformações arteriovenosas digitais do membro
superior quando indicado, pode ser realizado de forma curativa com conservação
do dedo, com resultados estéticos e funcionais favoráveis.