Ainda há lugar para a revascularização ultradistal na era endovascular?: A
propósito de 2 casos clínicos
Introdução
A isquemia crÃtica (IC) por doença oclusiva que envolve o sector tÃbio-
peroneal, muito comum nos doentes diabéticos, apresenta diï¬culdades
acrescidas na obtenção de revascularização convencional ou endovascular
eï¬caz.
O padrão da doença oclusiva na diabetes cursa habitualmente com compromisso
importante das artérias crurais, mas com permeabilidade mantida nas artérias
do pé a artéria pediosa e as artérias plantares.
Na década de 90 foram desenvolvidos procedimentos cirúrgicos convencionais de
revascularização destas artérias que ï¬caram conhecidos como cirurgias de
bypassultradistal, com boas taxas de permeabilidade e de salvação de membro1-
3.
A era endovascular revolucionou o tratamento da IC e a cirurgia endovascular é
atualmente a primeira opção terapêutica para muitos autores4,5.
No sector crural permite a obtenção de revascularização eï¬caz de forma
menos invasiva e obter ï¬uxo direto no angiossoma que apresenta a lesão
tróï¬ca6,7.
No entanto, a durabilidade destes procedimentos parece ser ainda inferior à da
cirurgia convencional e frequentes reintervenções são necessárias para
obter eï¬cácia clÃnica semelhante8.
No tratamento contemporâneo da IC a estratégia de revascularização é
individualizada a cada doente segundo o padrão de distribuição da doença
oclusiva e a extensão das lesões tróï¬cas. Frequentemente a cirurgia
convencional e endovascular apresentam-se como armas terapêuticas
complementares, que podem ser utilizadas simultaneamente em procedimentos
hÃbridos ou de forma diferida para assegurar permeabilidade secundária.
Os autores apresentam 2 casos de IC em que, pela ineï¬cácia e pela falência
do tratamento endovascular, foi efetuada revascularização ultradistal para a
salvação do membro.
Casos clÃnicos
Caso clÃnico 1
Um doente do sexo masculino de 79 anos com diabetes não-insulinotratada,
hipertensão e tabagismo inativo, foi admitido por IC, por doença oclusiva de
predomÃnio crural e necrose seca de D2 e D3 do pé direito.
A angiograï¬a pré-operatória mostrou: ausência de doença signiï¬cativa
dos sectores aorto-ilÃaco e fémoro-poplÃteo; artéria poplÃtea distal e
tronco tÃbio-peroneal semlesões; artéria tibial anterior permeável na
origem, mas com oclusão extensa sem reabitação da artéria pediosa; artéria
peroneal com oclusão extensa e sem reabitação distal; artéria tibial
posterior permeável no segmento inicial com oclusão extensa e reabitação
distal da artéria plantar externa e a arcada plantar.
O doente foi submetido a procedimento endovascular, sob sedo-analgesia e por
acesso femoral ipsilateral percutâneo, tendo sido efetuada a recanalização
da artéria tibial posterior com ï¬o-guia seguida de angioplastia com balão
(Cook®-2 à 200 + 2,5 à 200+3 à 200), com recuperação da permeabilidade da
artéria tibial posterior até à arcada plantar, sem reestenoses residuais
relevantes e com recuperação de pulso tibial posterior. No mesmo procedimento
foi realizada a desarticulação dos 2.â¦e 3.â¦dedos do pé direito (ï¬g.
1).
O pós-operatório imediato evoluiu com bom efeito de revascularização do
pé, conï¬rmando-se ï¬uxo trifásico na artéria tibial posterior no exame
eco-Doppler de controlo. Duas semanas após a cirurgia o doente referiu o
reaparecimento de dor em repouso, que se associou ao inÃcio de má evolução
cicatricial. Realizou-se nova angiograï¬a que mostrou a reoclusão da artéria
tibial posterior em toda a sua extensão, persistindo a permeabilidade da
artéria plantar externa com boa continuidade para a arcada plantar.
Atendendo à extensão da reobstrução, optou-se por efetuar um bypassvenoso
poplÃtea distal-plantar externa com veia grande safena (VGS) homolateral
invertida e revisão da loca de amputação.
A evolução clÃnica foi favorável, tendo o doente alta no vigésimo dia de
pós-operatório sob anticoagulação oral. A ferida evoluiu para uma
cicatrização completa ao ï¬m de 2 meses e meio (ï¬g._2).
Atualmente, um ano e meio após a cirurgia, o doente mantém a cicatrização
das lesões, ausência de dor, permeabilidade do enxerto e encontra-se em
programa de vigilância clÃnica e com eco-Doppler.
Caso clÃnico 2
Um doente de 70 anos com hipertensão arterial, ï¬brilhação auricular sob
anticoagulação oral, tabagismo e etilismo recorreu ao serviço de urgência
no contexto de uma gangrena húmida de D4 do pé direito com 3 semanas de
evolução. Referia aparecimento de dor no pé há poucos meses, que agravava
durante a noite e aliviava com o membro pendente.
Nos exames angio-TC e angiograï¬a observou-se um padrão de doença
multisegmentar com doença estenosante importante no sector iliofemoral,
oclusão da artéria femoral superï¬cial, reabitação da artéria poplÃtea
supragenicular, oclusão das artérias tibial anterior e peroneal no seu terço
inicial e permeabilidade da artéria tibial posterior até ao pé. A artéria
plantar externa e a arcada plantar estavam permeáveis e aparentemente
Ãntegras.
Por apresentar doença predominantemente proximal, o doente foi inicialmente
submetido a kissing stentingda bifurcação ilÃaca com stents 9 à 40 mm
expansÃveis por balão associado a endarterectomia da bifurcação femoral e
desarticulação de D4.
Por má evolução clÃnica, foi necessário proceder, uma semana depois, Ã
desarticulação de D3 e D5 associada a bypassvenoso fémoro-poplÃteo
infragenicular com VGS invertida ipsilateral e a angioplastia com balão (3 Ã
80 mm) da artéria tibial posterior, a qual se revelou extremamente
calciï¬cada.
Apesar de se ter conï¬rmado por angio-TC a permeabilidade da artéria tibial
posterior (ï¬g._3), a loca de amputação manteve má evolução cicatricial
e, por se constatar a permeabilidade da artéria plantar e respetiva arcada,
efetuou-se, 3 semanas após o segundo procedimento, jumping graft venoso com
VGS contra-lateral à artéria plantar externa, obtendo-se um bom resultado
angiográï¬co e clÃnico.
A evolução no pós-operatório foi boa. Iniciou vacuoterapia no 6.â¦dia de
pós-operatório, que manteve durante 7 semanas. Atualmente, 2 meses e meio
após a ultima intervenção cirúrgica, a ferida encontra-se praticamente
cicatrizada, o doente não tem dor e o enxerto mantém-se normalmente
permeável (ï¬g._4).
Discussão
A expansão das técnicas endovasculares permitiu alterar o paradigma de
tratamento da doença oclusiva infrapoplÃtea. Enquanto no passado a
angioplastia se reservava a doentes com estenoses curtas ou que não tinham
indicação para bypass, hoje muitos autores proclamam uma estratégia de
«endovascular-ï¬rst»4,5.
As recomendações da European Society for Vascular Surgery (ESVS)9referem que
«o tratamento endovascular das artérias infrageniculares tem o potencial de
atingir nÃveis de salvação de membro semelhantes, com menor morbilidade e
mortalidade perioperatória. A angioplastia na IC com lesões infrageniculares
é uma boa opção na maioria dos casos, desde que o procedimento não
impossibilite intervenções futuras» (nÃvel 4, grau C). Estas
recomendações são apoiadas por recentes meta-análises sobre a eï¬cácia da
angioplastia crural na IC que determinaram que, a médio prazo (36 meses),
apesar de o grau de permeabilidade ser inferior com a angioplastia, o resultado
clÃnico salvação de membro era de 82%, um valor semelhante ao da
revascularização convencional10.
No entanto, o único estudo randomizado que compara uma estratégia inicial de
angioplastia versus cirurgia convencional para a doença arterial periférica,
o «Bypass versus Angioplasty in Severe Ischaemia of the Leg» (BASIL)11,
inclui doentes com doença infrainguinal e não com doença infrapoplÃtea
isolada, sendo que no estudo não há referência ao padrão de doença
oclusiva tratada e respetivos resultados. Esta realidade impossibilita
quaisquer conclusões deï¬nitivas, sobre qual a melhor abordagem inicial em
doentes com doença infrapoplÃtea.
Os 2 casos clÃnicos aqui apresentados são exemplo das limitações das
técnicas endovasculares. Uma reoclusão precoce da única artéria crural
permeável e a insuï¬ciência do ï¬uxo sanguÃneo necessário para a
cicatrização criaram a necessidade de uma intervenção alternativa.
Segundo as recomendações da ESVS «o tratamento cirúrgico deve ser a
primeira opção para lesões mais complexas dos vasos infrageniculares ou em
caso de falência da técnica endovascular e persistência dos sintomas de IC»
(nÃvel 4, grau C)9.
Assim sendo, a técnica de bypassultradistal, há muito reconhecida como uma
hipótese viável no tratamento dos doentes com IC com doença crural,
apresentou-se nestes 2 casos como uma boa opção terapêutica perante a
falência das abordagens endovasculares iniciais.
Na primeira série de doentes tratados com bypassàs artérias do pé, por
Ascer et al., em 1988, foi demonstrada uma taxa de salvação de membro de 78%
aos 5 anos1e num vasto estudo retrospetivo desenvolvido ao longo de 10 anos por
Pomposelli et al., onde foram efetuados 1.032 procedimentos à artéria
pediosa, obteve-se uma taxa de salvação de membro aos 5 anos também de 78%2.
Outra questão pertinente e atualmente discutida é o impacto da falência das
técnicas endovasculares nos resultados de uma alternativa cirúrgica
convencional posterior.
No estudo BASIL os doentes submetidos a bypassapós falência da via
endovascular apresentaram piores taxas de salvação de membro em comparação
com os que foram submetidos a bypassprimário12. Nolan et al. reportaram que
uma intervenção endovascular prévia é um fator de mau prognóstico nos
doentes com IC submetidos a cirurgia de bypass, levando a taxas de trombose do
enxerto e de amputação mais elevadas13. Foram propostas algumas explicações
para este fenómeno e que são as seguintes:
- a falência da angioplastia inicial pode ser indicativa de fatores de risco
especÃï¬cos do doente, como estados de hipercoagulabilidade, com o potencial
de comprometer igualmente qualquer intervenção futura13.
- a técnica endovascular pode comprometer o runoffpara uma futura
intervenção por embolização ou trombose do leito arterial13,14.
- uma má qualidade da veia que ditou a opção por uma via endovascular
inicial, ao ser utilizada na intervenção subsequente, inï¬uencia
negativamente o resultado do bypass13.
No entanto, mais uma vez, estes estudos incluem doentes com doença
infrainguinal e não são relativos a doença predominante do sector tÃbio-
peroneal.
O único estudo publicado sobre este aspeto é da auto-ria de Christian et
al15e nele foi avaliado o impacto de uma intervenção endovascular prévia dos
vasos crurais em doentes submetidos a bypassultradistal. Os resultados não
comprovaram diferenças signiï¬cativas na taxa de permeabilidade primária,
secundária, de salvação de membro e na sobrevivência15.
A técnica de bypass ultradistal apresentou-se nestes 2 doentes como a melhor
opção terapêutica. Depois de assegurado um bom inï¬ow e uma artéria
plantar externa permeável com continuidade para a arcada plantar, ambos
tiveram uma boa evolução clÃnica, com controlo da dor e uma rápida
cicatrização com salvação do membro, objetivos primordiais do tratamento da
IC.
Conclusão
Os procedimentos de revascularização ultradistais são seguros, duradouros e
eï¬cazes em doentes com IC, desde que se observe um padrão apropriado de
permeabilidade da artéria recetora com continuidade para a arcada plantar.
Os casos apresentados ilustram a sua importância nos casos de falência ou
ineï¬cácia das técnicas endovasculares e sugerem que nestes casos se deve
investir na avaliação dos critérios de exequibilidade de cirurgia aberta, a
qual parece ter um lugar relevante na salvação do membro.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta
investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Conï¬dencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os autores declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conï¬ito de interesses
Os autores declaram não haver conï¬ito de interesses.
Bibliograï¬a
1. Ascer E, Veith FJ, Gupta SK. Bypasses to plantar arteries and other tibial
branches: An extended approach to limb salvage. J Vasc Surg. 1988;8:434-41.
2. Pomposelli FB, Kansal N, Hamdan AD, et al. A decade of experience with
dorsalis pedis artery bypass: Analysis of outcome in more than 1000 cases. J
Vasc Surg. 2003;37:307-14.
3. Fernandes e Fernandes J, Nunes JS, Damião A, et al. Revascularização
pediosa e plantar na diabetes. Ãltimo recurso para a preservação dos membros
inferiores. Revista Portuguesa de ClÃnica e Terapêutica. 1991;13:135-43.
4. Kudo T, Chandra FA, Ahn SS. The effectiveness of percutaneous transluminal
angioplasty for the treatment of critical limb ischemia: A 10-year experience.
J Vasc Surg. 2005;41: 423-35.
5. Bosiers M, Hart JP, Deloose K, et al. Endovascular therapy as the primary
approach for limb salvage in patients with critical limb ischemia: Experience
with 443 infrapopliteal procedures. Vascular. 2006;14:63-9.
6. Kudo T, Chandra FA, Kwun WH, et al. Changing pattern of surgical
revascularization for critical limb ischemia over 12 years: Endovascular vs
open bypass surgery. J Vasc Surg. 2006;44(2):304-13.
7. Iida O, Soga Y, Hirano K, et al. Long-term results of direct and indirect
endovascular revascularization based on the angiosome concept in patients with
critical limb ischemia presenting with isolated below-the-knee lesions. J Vasc
Surg. 2012;55(2):363-70, e5.
8. Bradbury AW, Adam DJ, Bell J, et al. Bypass versus Angioplasty in Severe
Ischaemia of the Leg (BASIL) trial: An intention-to-treat analysis of
amputation-free and overall survival in patients randomized to a bypass
surgery-ï¬rst or a balloon angioplasty-ï¬rst revascularization strategy. J
Vasc Surg. 2010;51 5 Suppl:5S-17S.
9. Setacci C, Donato G, Teraa M, et al. Chapter IV: Treatment of critical limb
ischaemia. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2011;42(S2):S43-59.
10. Romiti M, Albers M, Brochado-Neto FC, et al. Meta-analysis of
infrapopliteal angioplasty for chronic critical limb ischemia. J Vasc Surg.
2008;47:975-81.
11. Adam DJ, Beard JD, Cleveland T, et al. Bypass versus angioplasty in severe
ischaemia of the leg (BASIL): Multicentre, randomised controlled trial. Lancet.
2005;366:1925-34.
12. Bradbury AW, Adam DJ, Bell J, et al. Bypass versus angioplasty in severe
ischaemia of the leg (BASIL) trial: Analysis of amputation free and overall
survival by treatment received. J Vasc Surg. 2010;51:18S-31S.
13. Brian W, Nolan MS, Randall R, et al. Prior failed ipsilateral percutaneous
endovascular intervention in patients with critical limb ischemia predicts poor
outcome after lower extremity bypass. J Vasc Surg. 2011;54:730-6.
14. Joels CS, York JW, Kalbaugh CA, et al. Surgical implications of early
failed endovascular intervention of the superï¬cial femoral artery. J Vasc
Surg. 2008;47:562-5.
15. Christian U, Carolin H, Thomas B, et al. Pedal bypass surgery after crural
endovascular intervention. J Vasc Surg. 2014;59:1583-7.
*Autor_para_correspondência:
Correio eletrónico:pedrogarrido85@gmail.com (P. Garrido).
Recebido a 26 de julho de 2014;
Aceite a 23 de setembro de 2014
DisponÃvel na Internet a 17 de janeiro de 2015