Tratamento cirúrgico de um leiomiossarcoma do membro inferior
Introdução
Os tumores do tecido conjuntivo são um grupo muito heterogéneo de neoplasias,
com diferentes classificações histológicas, onde estão incluídos os sarcomas.
Estes são tumores malignos não só pelo seu poder de crescimento localmente
agressivo e destrutivo, como também pela possibilidade de metastização à
distância. São classificados em 2 tipos, segundo a classificação TNM, tumores
mais agressivos (alto grau, com baixo grau de diferenciação) ou menos
agressivos (baixo grau, bem diferenciados) e em 3 graus, segundo um
scorehistológico (grau 1, 2 e 3). Os sarcomas são uma doença rara com uma
incidência de cerca de 1:100.000 nos adultos, correspondendo a 1-2% das doenças
malignas. Não existe predisposição por um género e a idade média é entre os 50
e os 60 anos1.
Apesar da maioria dos sarcomas do tecido conjuntivo serem esporádicos, existem
alguns fatores considerados de risco para este tipo de tumores, nomeadamente a
mutação do gene de supressão tumoral p53 síndrome de Li-Fraumeni, a exposição a
radiação e a neurofibromatose tipo I. O traumatismo, contudo, não é considerado
um fator de risco comprovado, ainda que os doentes tendam a associar muitas
vezes o surgimento da tumefação tumoral com um episódio de trauma.
A metastização hematogénica é a mais comum nestes tumores, sendo o pulmão o
órgão mais frequentemente atingido. A metastização através dos gânglios
linfáticos está presente em menos de 5% dos sarcomas2.
A ressonância magnética (RMN) é o exame complementar de diagnóstico mais
adequado numa avaliação inicial deste tumores uma vez que nos permite avaliar a
localização exata do tumor, as suas relações com estruturas neurovasculares e
musculares adjacentes, a homogeneidade, integridade e vascularização tumoral3.
A tomografia computorizada (TC) torácica é essencial para o estadiamento dos
sarcomas enquanto a tomografia por emissão de positrões (PET) pode ser utilizada
na recidiva de doença, apesar de não ser a modalidade standardaceite para o
estadiamento destes tumores.
Até ao momento atual o único tratamento com potencial curativo e de primeira
linha é o tratamento cirúrgico, enquanto a radioterapia e, menos
frequentemente, a quimioterapia, são usadas como modalidades terapêuticas
adjuvantes1. Enquanto antigamente as amputações eram a terapêutica de eleição,
atualmente são apenas de última linha. Mais de 95% dos membros podem ser salvos
após uma excisão radical tumoral com ou sem reconstrução neurovascular e,
aliás, é hoje sabido que a amputação não se associa nem a melhor prognóstico
nem a melhor qualidade de vida. Assim, a amputação primária no tratamento dos
sarcomas dos membros inferiores é necessária em menos de 5% de todos os casos e
em menos de 15% nas recorrências, existindo, inclusive, alguns critérios para a
sua realização como, por exemplo, tumores com crescimento transmetatársico,
tumores ulcerados, extensos ou circulares, recorrência após todas as opções
terapêuticas aplicadas e/ou outra neoplasia do membro ipsilateral1.
O objetivo da cirurgia reconstrutiva no sarcoma dos membros inferiores depende
do perfil do doente. Assim, antes do planeamento da cirurgia existem vários
fatores que devem ser tidos em consideração idade, comorbilidades associadas,
cirurgias prévias, extensão e tipo de tecidos afetados. Independente de todos
os fatores condicionantes, quer do doente quer das próprias características
tumorais, o objetivo é uma ressecção R0, isto é, ressecção com margens
microscopicamente livres de doença. Caso não seja possível, o recomendado é
ressecar a maior parte da massa tumoral (R1/R2) seguida de radioterapia
adjuvante e menos frequentemente quimioterapia. No que diz respeito às
estruturas vasculares relevantes que não estão diretamente infiltradas ou
encapsuladas no tumor, pode ser realizada uma ressecção da adventícia em bloco
com a massa tumoral. Apenas as artérias principais que têm de ser ressecadas
juntamente com o tumor são reconstruídas imediatamente e de preferência com
interposição de enxerto de veia4.
Se o sistema venoso superficial não estiver envolvido pelo sarcoma deve ser
preservado, assim como as suas tributárias subcutâneas, proporcionando uma
melhor recuperação, especialmente se o sistema venoso profundo esteja afetado.
Apesar de alguns autores considerarem que a reconstrução do sistema venoso
profundo secundária a neoplasia tem um maior grau de obstrução/trombose versus
reconstrucções por traumatismo, outros estudos não verificam diferenças
significativas no edema pós-cirurgia a longo prazo, podendo no entanto melhorar
a reabilitação no pós-operatório imediato. Se o sistema venoso superficial não
estiver envolvido pelo sarcoma deve ser preservado, assim como as suas
tributárias subcutâneas, proporcionando uma melhor recuperação, caso o sistema
venoso profundo esteja afetado. Apesar de alguns autores considerarem que a
reconstrução do sistema venoso profundo secundária a neoplasia tem um maior
grau de obstrução/trombose versus reconstruções por traumatismo1, outros
estudos não verificam diferenças significativas no edema pós-cirurgia a longo
prazo5, podendo mesmo melhorar a reabilitação no pós-operatório imediato.
A sobrevida aos 5 anos é de cerca de 85% na maioria dos estudos1.
Através deste trabalho temos como objetivo demonstrar que o tratamento
cirúrgico dos leiomiossarcomas, mesmo que agressivo, permite a preservação e
funcionalidade dos membros.
Caso clínico
Doente do sexo feminino, 59 anos de idade, caucasiana, auxiliar de ação médica,
encaminhada da consulta de cirurgia geral à consulta de cirurgia plástica por
apresentar uma tumefação sólida na face medial do 1/3 médio da coxa esquerda,
indolor, com cerca de um ano de evolução. Negava pulsatilidade, flutuação,
hemorragia, ulceração ou sinais inflamatórios localizados. Negava impotência
funcional, parestesias ou disestesias, claudicação, arrefecimento, edema ou
cianose do membro. Sem eventos trombóticos arteriais ou venosos pregressos,
emagrecimento, astenia, febre ou anorexia. Sem tosse, dispneia ou hemoptises.
Como antecedentes pessoais de realçar uma dislipidemia controlada com
sinvastatina, sem outra medicação habitual. Antecedentes familiares
irrelevantes.
Objetivamente a doente apresentava uma tumefação dura na face medial do 1/
3 médio da coxa esquerda, ovalada, com cerca de 10 cm de maior diâmetro, sem
mobilidade em relação aos planos superficiais ou profundos, sem pulsatilidade,
sem sinais inflamatórios associados. Sem adenopatias. Sem outros nódulos
cutâneos. Pulsos femoral, poplíteo, tibial posterior e pedioso palpáveis,
amplos e simétricos (fig._1).
Realizou uma ecografia de partes moles do membro inferior esquerdo (MIE) para
esclarecimento do quadro que revelou uma volumosa formação nodular sólida em
plano intermuscular projetada ao longo do pedículo femoral vasculo-nervoso (com
moldagem das respetivas estruturas vasculares), de limite bem definido e
lobulado, hipoecogénea e heterogénea medindo cerca de 9 × 7 x 4,7 cm (de
maiores eixos ecográficos longitudinal, transversal e ântero-posterior)
traduzindo uma neoformação, sem características ecográficas específicas. Não
foram identificadas adenopatias, com tradução ecográfica, na região inguinal
homolateral.
Para melhor caracterização da massa foi feita uma RMN que revelou uma volumosa
formação sólida centrada à vertente ântero-medial do terço médio da coxa
esquerda, estendendo-se em plano intermuscular entre o costureiro, adutor longo
(com perda de plano de clivagem com os mesmos) e vasto medial ao longo do
trajeto do feixe vasculo-nervoso femoral superficial (com perda de plano de
clivagem com as respetivas estruturas vasculares). Tratava-se de uma formação
de limites bem definidos, com captação de contraste medindo cerca de 9,2 × 5,4 ×
6 cm (de maiores eixos ecográficos longitudinal oblíquo, transversal e ântero-
posterior oblíquo) (fig._2).
Neste contexto foi realizada uma biópsia incisional que foi compatível com um
leiomiossarcoma da coxa esquerda. O estadiamento através de uma TC torácica não
revelou evidência de metástases à distância.
O caso foi desta forma discutido com oncologia e cirurgia vascular tendo-se
optado pela realização de tratamento cirúrgico com intuito curativo, sem
radioterapia neoadjuvante.
A doente foi submetida a cirurgia no dia 7 de janeiro de 2014, tendo sido
realizada uma ressecção alargada do leiomiossarcoma (em bloco com sartório,
vasto medial, adutor longo, AFS e VF) sob a técnica no touch no see, assim como
reconstrução da AFS e VF com interposição de veia grande safena (VGS)
contralateral em posição femoro-femoral. Foi preservada a VGS esquerda e feito
o encerramento direto e por planos da ferida operatória (fig._3).
O peri e pós-operatório imediato decorreram sem intercorrências, mantendo a
doente com elevação dos membros e em repouso durante os primeiros 3 dias.
Iniciou fisioterapia de reabilitaçãoao6.◦dia tendo tido alta ao 9.◦dia com o
ligeiro edema do MIE do pé à raiz da coxa, sem deficit motor ou sensitivo, sem
parestesias e sob uso de meia elástica que mantém até à data.
O resultado histológico revelou um tumor ovoide, bem delimitado, com 7 × 6x8cm
compatível com um leiomiossarcoma grau II, estando envolvido por músculo na
zona mais profunda e por tecido adiposo na zona mais superficial, o tumor
distava 2 cm da margem súpero-lateral que era a mais próxima. Apresentava
pleomorfismo que variava de ligeiro a intenso, áreas de necrose em menos de 50%
do volume da peça e 15 mitoses/campo. No estudo imuno-histoquímico observou-se
imunorreatividade intensa para actina do músculo liso, desmina e H-caldesmona.
A veia e artérias femorais encontravam-se sem neoplasia. Trata-se desta forma
de um tumor T2bN0M0.
A doente realizou 33 semanas de radioterapia com início no dia 10 de março de
2014 tendo desenvolvido, como complicação, uma toxicidade aguda cutânea grau 2
dermatite rádica. Foi constatado um agravamento do edema do membro inferior com
trombose do enxerto venoso documentada por eco-Doppler neste mesmo período.
Aos 5 meses de pós-operatório a doente encontra-se com pulso pedioso esquerdo
amplo e com trombose da reconstrução venosa, estando o edema do MIE em
regressão com uma boa funcionalidade do mesmo. A doente continua a ser seguida
em consulta de Cirurgia Vascular, Cirurgia Plástica e Oncologia no Hospital
Santa Maria, encontrando-se sem evidência clínica de recorrência local e sem
evidência radiológica de metastização à distância (tem TC toraco-abdomino-
pélvica de controle sem evidência de lesões metastáticas). Aguarda realização
de RMN de controlo do MIE.
Discussão e conclusão
Os tumores do tecido conjuntivo são um grupo muito heterogéneo de neoplasias,
sendo os sarcomas os tumores malignos mais temidos. Contudo, trata-se de uma
neoplasia rara representando apenas 1-2% de todas as neoplasias1. São tumores
insidiosos que podem levar vários meses desde as primeiras queixas até serem
diagnosticados, quer por negligência do próprio doente quer pela falta de
suspeição dos profissionais de saúde6. O membro inferior é a localização
preferencial destes tumores, correspondendo a 45% de todos os sarcomas1. No
presente caso não foi possível identificar qualquer fator de risco para o
surgimento deste tumor, sendo, por isso, considerado um tumor esporádico.
Os exames complementares mais usados nestes tumores são a RMN, para estudo
tumoral (sua localização exata e relações com as estruturas neurovasculares e
compartimentos musculares, determinação da homogeneidade, integridade e
vascularização) e a TC torácica, para estadiamento tumoral. Não foi realizada
PET neste caso por não haver evidência de benefício para o estadiamento destes
tumores e por não se tratar de uma recidiva tumoral. Contudo, a biópsia, quer
excisional, para tumores com menos de 5 cm, quer incisional, para tumores com
mais de 5 cm, tem um papel importante na orientação diagnóstica uma vez que os
exames de imagem por si só não nos conseguem guiar para uma classificação e
prognóstico que são essencialmente dependentes da histologia. O facto de termos
um diagnóstico específico é fundamental para decisão da agressividade da
cirurgia a realizar e respetiva reconstrução. No caso descrito, a doente não
apresentava metastização à distância nem atingimento ganglionar aparente tendo
realizado uma biópsia incisional devido ao tamanho tumoral.
Estatisticamente a única modalidade terapêutica que mostrou ter resultados
curativos e com aumento documentado da esperança média de vida é a excisão
tumoral cirúrgica com margens livres de doença, ressecção R0. Até hoje nenhuma
outra terapêutica neoadjuvante ou pós-operatória pode substituir esta
intervenção1. A nossa opção terapêutica baseou-se nestes princípios e, tal como
referido na literatura, foi feito o planeamento cirúrgico tendo em conta a
idade da doente, ausência de comorbilidades major (isto é, doente com bom risco
cirúrgico), o seu envolvimento com feixe vasculonervoso, a ausência de
cirurgias prévias no MIE, assim como o facto de se tratar de um tumor não
ulcerado, circular ou recidivado. A doente foi proposta para tratamento
cirúrgico (ressecção tumoral e reconstrução do membro) com intuito curativo.
A complexidade da ressecção cirúrgica e subsequente reconstrução difere
consideravelmente com a localização do tumor. Devido à elevada funcionalidade
anatómica dos membros com vasos, nervos, tendões, ossos e músculos com grande
proximidade anatómica, mesmo pequenos tumores podem-se relevar verdadeiros
desafios tanto para a ressecção tumoral como para a própria reconstrução do
membro.
Qualquer cápsula ou pseudocápsula palpável pertence ao tumor e deve ser
ressecada junto com ele sem criar zonas de descontinuidade procedimento no
touch no see, aplicado nesta doente. As artérias principais que têm
envolvimento tumoral ou estão encapsuladas pelo mesmo devem ser ressecadas
juntamente com o tumor e devem ser reconstruídas imediatamente,
preferencialmente utilizando uma veia do membro contralateral1. Apesar de
controverso, alguns estudos demonstram que a curto prazo a reconstrução venosa
profunda parece ajudar na redução do edema no pós-operatório imediato, contudo,
a longo prazo as diferenças não são significativas entre a reconstrução versus
não reconstrução venosa profunda1,5,4. Neste caso, com o objetivo de preservar
património venoso e melhorar a drenagem venosa naquele membro uma vez que o
sistema venoso profundo estava afetado, foi preservada a VGS homolateral e
realizada a reconstrução do sistema venoso profundo com VGS contralateral.
Quanto ao componente nervoso ressecado incluiu sobretudo ramos do nervoso
femoral para o músculo vasto interno, sendo os ramos para o restante
quadricípide poupados assim como os nervos ciáticos, apresentando-se a doente
assintomática deste ponto de vista.
Depois da ressecção R0 o segundo grande objetivo é a integração do doente na
sua vida social, permitindo-o usar roupas usuais e manter a máxima
funcionalidade quanto possível do membro operado. No caso apresentado isto foi
conseguido muito pelo envolvimento multidisciplinar requerido e precoce,
salientando-se a vital importância da medicina física e de reabilitação e da
psicoterapia2.A doente encontra-se com pulso pedioso mantido, a deambular com o
membro inferior funcional.
Este caso é um exemplo de que, na atualidade, praticamente todos os membros
afetados por tumores como o leimiossarcoma podem ser salvos numa primeira fase,
deixando a amputação como terapêutica de última linha.
A radioterapia adjuvante é o único tratamento complementar eficaz, que teve
indicação nesta doente devido ao tamanho tumoral (> 5 cm).
Em conclusão, os leiomiossarcomas são tumores malignos, localmente agressivos,
sendo o tratamento cirúrgico com ressecção alargada a melhor possibilidade de
cura. Neste contexto torna-se indispensável uma abordagem multidisciplinar
entre oncologistas, cirurgiões plásticos, ortopédicos e vasculares
proporcionando a preservação e funcionalidade do membro mesmo com ressecções
radicais.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados.Os autores declaram ter seguido os protocolos do seu
centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.