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EuPTCVHe1647-21602013000100006

EuPTCVHe1647-21602013000100006

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN1647-2160
Year2013
Issue0001
Article number00006

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Saúde Mental em Grupos Étnicos Minoritários: Representações sobre Saúde Mental em Adultos e Crianças de Comunidades Ciganas Residentes na Região Centro de Portugal Saúde Mental em Grupos Étnicos Minoritários: Representações sobre Saúde Mental em Adultos e Crianças de Comunidades Ciganas Residentes na Região Centro de Portugal INTRODUÇÃO Os Ciganos estão em Portugal 500 anos. Oriundos do Nordeste da Índia, iniciaram os seus movimentos migratórios por volta do séc. III. A discriminação e marginalização de que cedo foram alvo, obrigaram a um grande isolamento, tendo criado à sua volta uma barreira que, se por um lado lhes permitiu conservar a sua identidade e cultura, por outro remeteu-os/as ao esquecimento, à desconfiança da sociedade maioritária e à sua própria exclusão (Portugal, 2011).

Embora não existam dados demográficos rigorosos, estima-se que residam em Portugal cerca de 30 000 a 90 000 cidadãos portugueses de etnia cigana, dispersos em grupos de maior ou menor dimensão pelo país, na sua grande maioria sedentarizados numa organização social estruturada em torno da família, encontrando-se as comunidades concentradas no litoral e zonas de fronteiras (Silva, 2005; Fundação Secretariado Gitano, 2007). Em Portugal e, de um modo geral, na Europa (de Ocidente e de Leste) os ciganos têm sido impedidos de se integrar na sociedade global com o fundamento das particularidades de vida nómada, de resistência à escolarização e à profissionalização e da forte solidariedade interna (Silva, 2005: 15).

Na perspetiva identitária mais comum, o "outro" é o nosso "contrário", e, em Portugal, "os ciganos", tomados de forma estereotipada como uma globalidade, competem com os "pretos" na ocupação da posição de máxima distância social, "tendo sido empurrados para o lugar de outsiders de referência, tolerados apenas, por muitos, na medida em que possibilitam aos identitariamente dominantes ganhos identitários relevantes" (Bastos, Correia & Rodrigues, 2007).

À vivência concreta da exclusão social identitária, acrescem situações de pobreza e exclusão social. Face a essa exclusão efetiva, que integra elementos de autoexclusão por parte dos ciganos (quer como afirmação de cultura própria que não se pretende diluir na cultura dominante, quer como reação à exclusão de que são alvo), a sociedade portuguesa auto-justifica, ativa ou passivamente, atitudes de discriminação que constituem outros tantos fatores de exclusão. Em Portugal, as comunidades ciganas são um dos grupos mais afetados por fenómenos de pobreza e de exclusão social. As condições precárias de habitação, as baixas qualificações académicas e profissionais, com níveis elevados de desemprego ou trabalho nas raias da marginalidade, a dificuldade no acesso a prestações sociais bens e serviços de saúde, marcam a vida nestas comunidades (Silva, 2005; Fundação Secretariado Gitano, 2007).

Um estudo recente, realizado pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA, 2012), que entrevistou mais de 22.200 pessoas ciganas e não ciganas a residir em vários países europeus, (Bulgária, Eslováquia, Espanha, França, Grécia, Hungria, Itália, Polónia, Portugal, República Checa e Roménia) conclui que, no espaço europeu, a situação de pobreza extrema e os processos de discriminação são os elementos prevalentes nas comunidades ciganas, atingindo níveis dramáticos. Esta pesquisa revela que, em média, cerca de 90% dos Ciganos entrevistados vive em agregados familiares com um rendimento equivalente abaixo do limiar de pobreza nacional; em média, cerca de 40% dos Ciganos entrevistados vive em agregados familiares onde alguém foi para a cama com fome pelo menos uma vez no último mês por não ter dinheiro para comprar alimentos (FRA ' Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2012).

A pobreza extrema, o desemprego, o racismo, a discriminação e estigmatização constituem fatores extremos de vulnerabilidade e estão associados a um elevado risco de doença mental e morte prematura (OMS, 2001; Wilkinson & Marmot, 2010). No entanto, em Portugal não existem pesquisas epidemiológicas nem indicadores de saúde mental sobre as efetivas condições de saúde mental destas populações.

Algumas intervenções pontuais com esta população, realizadas em escolas do Ensino Básico na cidade de Coimbra, num contexto de promoção de Saúde Mental Comunitária, permitiram identificar algumas questões fulcrais: a inexistência de um diagnóstico aprofundado de necessidades específicas de grupos étnicos minoritários, a fragilidade de modelos de intervenção construídos sem ter em conta as especificidades multiculturais, a falta de sensibilidade cultural das equipas de saúde que intervêm em contextos comunitários, o fraco envolvimento dos atores-chave destes processos na construção de modelos e alternativas.

Por outro lado, diversas investigações realçam a importância do contexto cultural na emergência e manifestação da doença mental enquanto fenómeno socialmente circunscrito. De acordo com este modelo, são as dimensões socioculturais, numa perspetiva sistémica, que explicam as variações de padrões de saúde e morbilidade psiquiátrica em grupos étnicos minoritários ou populações imigrantes. As especificidades culturais são determinantes na forma como estas variações se manifestam ou são percecionadas e interpretadas pelos próprios sujeitos que as vivenciam (Devereux, 1970). Ou seja, a experiência subjetiva e social da doença mental expressa-se num diálogo incessante entre o corpo e a cultura, em que os "idiomas culturais de sofrimento" podem originar desencontros entre utentes e técnicos de saúde (Helman, 2001, 2003; Kleinmam,1980, 1988). Os próprios itinerários de busca de ajuda para o sofrimento emocional ou para a disfunção, estão imbrincados de metáforas culturais que é preciso compreender "a partir de dentro" (Quartilho, 2001; Kirmayer et al, 2003, Monteiro, 2011).

Conhecer as representações sociais compartilhadas pelos participantes de um grupo é uma forma de penetrar nos significados elaborados por eles, sobre o mundo e sobre eles próprios e de compreender este mundo a partir das perspetivas dos que o elaboram. De facto, a elaboração de programas de promoção de saúde mental em grupos étnicos minoritários, implica um conhecimento prévio dos conceitos e representações socialmente dominantes nestes grupos específicos, sobre saúde mental e bem-estar subjetivo.

O estudo das representações sociais consiste na análise dos processos pelos quais os indivíduos, em interação social, constroem teorias sobre os objetos sociais, que tornam viável a comunicação e organização dos comportamentos. A teoria das representações sociais apresenta-se, portanto, como um enquadramento teórico adequado para estudar discursos simbólicos, mentalidades, ideias e/ou imagens coletivas (Moscovici, 1978; Vala, 1993). As representações sociais ou "imagens de referência'" coletivas sobre o que é saúde ou o que é doença e sobre a medicina, refletem a cultura específica de um determinado grupo, com os seus valores, os seus ideais e as suas crenças (Silva, 2005). Apesar de serem uma modalidade de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, as representações sociais não são meros enunciados cognitivos sobre a realidade, mas teorias sociais práticas sobre objetos relevantes na vida dos grupos, enquanto organizadoras de comportamentos (Jodelet,1989). Por outro lado, as representações sociais balizam a construção de categorias identitárias, permitindo a produção de sentido(s) decorrentes das interações no interior de grupos e da lógica das relações intergrupais (Vala, 1997). Daí que a sua análise seja particularmente relevante em populações que constituem grupos minoritários.

MÉTODOS E PROCEDIMENTOS Esta investigação teve como objetivo identificar e compreender as representações sociais sobre saúde mental em indivíduos de etnia cigana, de nacionalidade portuguesa, a residir na região centro de Portugal (Coimbra).

As intervenções de campo realizadas e a acessibilidade à população foram precedidas por contactos institucionais e pedidos de autorizações no âmbito de projetos de intervenção em saúde mental comunitária em meio escolar em curso, em articulação com o Centro de Saúde Fernão de Magalhães, agrupamento de escolas e Câmara Municipal de Coimbra. Foram salvaguardados os princípios éticos inerentes à investigação, nomeadamente o respeito pela privacidade e identidade dos participantes e o consentimento informado.

O estudo exploratório, de natureza qualitativa, decorreu entre 30 de Abril e 30 de Junho de 2012 e foi desenvolvido num contexto de ensino clínico de Enfermagem de Saúde Mental Comunitária e de Reabilitação, envolvendo estudantes do ano da licenciatura em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Foram utilizadas metodologias qualitativas variadas de recolha de dados: pesquisa bibliográfica e documental para a compreensão do contexto, entrevistas a informantes privilegiados e técnicas de Focus Group. Quer o Focus Group quer as entrevistas foram estruturados tendo como eixo questões centrais, com um guião semiestruturado, focando a exploração de conceitos como felicidade, bem-estar, autorrealização e saúde, numa tentativa de compreender representações sociais do conceito de saúde mental na comunidade cigana.

Relativamente às representações sociais sobre saúde mental em crianças de etnia cigana, os dados foram colhidos no âmbito de uma atividade de Focus Group com a duração de 45-60 minutos, que envolveu a visualização de curtos filmes de desenhos animados, jogos em grupo, exploração de conceitos/palavras incidindo sobre as mesmas questões centrais e análise de desenhos temáticos desenvolvidos pelas crianças. O Focus Group, integrado em atividades de promoção da saúde em curso como projeto escolar, foi orientado por três membros da equipa de investigação e contou com a colaboração e presença dos professores das crianças, como agentes facilitadores, tendo em conta a salvaguarda da confidencialidade dos dados. A metodologia de Focus Group tem sido amplamente utilizada em jovens e adolescentes e a sua utilização em crianças a partir e sete anos é eticamente aceitável (Morgan et al, 2002), revelando-se o meio mais adequado para colher dados neste contexto.

Foram ainda realizadas reuniões e contactos informais com professores da Escola Básica do Ciclo alvo do estudo, com a equipa técnica multidisciplinar do Parque Habitacional Nómada e uma entrevista estruturada a um mediador sociocultural de etnia cigana. Os dados colhidos foram analisados recorrendo a análise de conteúdo num processo de busca e de organização sistemática analítica de transcrições de entrevistas, notas de campo e outros materiais que foram sendo acumulados". (Bardin,1995; Gabriel, 2007:184).

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Este estudo abrangeu cerca de trinta crianças entre os 6-11 anos, predominantemente de etnia cigana numa escola de Ensino Básico situado num bairro residencial problemático e um grupo de adultos e famílias de etnia cigana residentes em Coimbra (5 indivíduos de etnia cigana, 3 do sexo feminino e 2 do sexo masculino com idades de 19 e 30 anos).

No grupo das crianças, o conceito de saúde mental surgiu fortemente associado à ideia de felicidade e bem-estar, relacionados com vivências concretas do quotidiano, interações grupais positivas, contactos familiares e atividade física: "Andar de bicicleta", "jogar futebol", "andar de trotinete", "andar de mota com o tio", "andar de skate", "o professor a dizer piadas", "brincar", "amigos", "família".

A afetividade e as manifestações de envolvimento emocional surgiram como relevantes neste contexto: "Estar apaixonado faz-nos felizes", "felicidade é receber prendas", "dar beijinhos",  De igual forma, emergiram neste grupo relatos de vivências concretas do quotidiano percecionadas como tristeza e sofrimento emocional, expresso em experiências de exclusão social, solidão ou a presença mais ou menos indelével do estigma e discriminação.

"A minha mãe está presa", "Não consigo fazer como os outros", "Não tenho ninguém para brincar", "Os meus pais estão presos", "Eu às vezes sinto-me sozinha", "Ninguém quer brincar comigo, ando de bicicleta sozinho", "Quando estou triste vou para o quarto e fico sozinho".

Por outro lado, em termos comportamentais e de expressão de emoções, os dados da atividade de Focus Group com crianças em idade escolar indiciam que o modelo de resolução e conflitos entre pares passa mais pelo confronto físico do que pelo diálogo ou busca de mediadores adultos. Algumas expressões apontam mesmo a violência como uma "normalidade existencial": "Isto aqui, a gente chega e pum pum pum ' murros", "Se nos baterem temos que nos defender", "Apetece bater quando estamos irritados", "Se bater sinto-me melhor", "Estão dois a bater-se, depois vêm os amigos, família e fica muita gente".

Da análise de dados do Focus Group com adultos e famílias de etnia cigana emergiu a noção de que a saúde mental surge como uma noção de ausência de doença mas numa perspetiva holística e global, "Não é físico, são também os problemas".

Parece existir uma diferenciação entre a saúde física e a saúde mental, associada a sintomatologia de tristeza ou ansiedade: " fui operada e fiquei melhor a nível físico, mas não me sinto com saúde porque estou triste, é a cabeça".

A tristeza é o principal referente como sintomatologia de ausência de saúde mental, havendo implícita, recorrentemente, a ideia que os aspetos psicológicos e emocionais têm repercussões no "corpo": "Sempre ouvi dizer que a tristeza mata" ; " a minha avó dizia que estar bem é alegria e saúde".

A ideia de bem-estar emocional e saúde mental surgiu sempre associada a um conceito mais alargada e integrador - não apenas o bem-estar subjetivo ou auto- referencial mas um bem-estar emocional alargado ao grupo de pertença, às constelações familiares e comunitárias. A principal fonte de autorrealização, energia vital e apoio emocional radica na família mais próxima, com uma grande centralidade na vinculação e no cuidado às crianças. Ouvir música constitui outra atividade que proporciona felicidade, assim como cantar.

Um dos principais fatores referidos como fonte de sofrimento emocional e/ou doença ou perturbação surgiu associado a lutos e perdas ou conflitos familiares: "Morrer alguém da nossa família" ; "Perder alguém"; "os filhos estarem doentes", "No dia-a-dia, sinto-me mal disposta (triste) porque penso nos meus filhos.

Queria estar bem com os meus filhos e não posso estar" Quanto à procura de recursos e/ou, cuidados de saúde mental e respetiva acessibilidade por parte da comunidade cigana, parece não existir a perceção dessa necessidade ou a crença de que os cuidados médicos convencionais possam resolver perturbações de foro mental. Também no Focus Group com grupo de crianças em idade escolar este dado foi evidente: "O médico não controla os nossos sentimentos".

CONCLUSÕES Os resultados do trabalho de campo junto de população de etnia cigana residentes em Coimbra (crianças em idade escolar e famílias) sugerem que, nos participantes do estudo, a conceção culturalmente demarcada de saúde mental e bem-estar emocional tem uma componente holística, sem existir uma clivagem demarcada entre o conceito de "saúde física" e "saúde mental". No entanto, enquanto que para a "saúde física", a noção de saúde remete quase sempre para a noção de não-doença (nesta visão da doença, ou se está doente, com sintomas, ou não se tem sintomas e se está não-doente), o conceito de saúde mental surge associado à noção de bem-estar global, integrador das relações familiares e identitárias.

Neste estudo, a noção de saúde mental e bem-estar emocional aparecem fortemente associados ao bem-estar da família, incluindo família alargada. Também os motivos de tristeza ou sofrimento emocional aparecem relacionados com questões familiares, como processos de morte ou de luto, separação ou problemas com pessoas significativas.

As relações familiares de parentesco parecem constituir um elemento organizador e aglutinador dos aspetos psicológicos e emocionais essenciais do quotidiano, com um forte sentimento comunitário e de identidade ao grupo de pertença. É também na família que se busca apoio e suporte social em situações de tristeza, dificuldades do quotidiano ou nos processos de luto. Estes achados vão ao encontro de outros estudos sobre alguns marcadores culturais específicos das comunidades ciganas, fortemente estruturadas em volta da família e valores familiares (Cunha, 2001; Silva, 2005;Fonseca et al, 2005;  Bastos, Correia & Rodrigues, 2007).

Os dados colhidos permitiram também identificar o impacto negativo de alguns contextos de exclusão social, violência ou criminalidade no bem-estar psicológico, sobretudo das crianças. Nas crianças, a situação de ter familiares diretos a cumprirem penas de prisão como resultado de comportamentos criminais, parece ter um forte impacto emocional. Fatores socioeconómicos como baixo poder de compra, dificuldades habitacionais, poucas perspetivas de futuro, surgiram como elementos associados a experiencia subjetiva de sofrimento psicológico. Os projetos de inclusão social em curso junto da comunidade cigana desenvolvidos pela autarquia de Coimbra parecem estar a ter impactos muito positivos, quer na integração social destas comunidades, quer na acessibilidade aos cuidados de saúde.

Os dados deste estudo exploratório podem ser aprofundados em investigações posteriores e servir de partida à construção de abordagens mais estruturadas e promoção de saúde mental neste grupo específico.


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