Desinstitucionalização de seniores com doença mental: A implementação de um
modelo de transição e integração na comunidade
Introdução
A desinstitucionalização das pessoas com doença mental enquadra-se no movimento
dos direitos civis e políticos advogando uma perspetiva humanista e focalizada
nas condições objetivas de vida das pessoas com doenças mentais, sobretudo as
que se encontravam em instituições psiquiátricas, independentemente da
gravidade das suas problemáticas (Rappaport, 1977). Esta perspetiva implica a
adoção de novos paradigmas envolvendo a comunidade mais alargada e não apenas o
indivíduo e a sua família (Ornelas, 2008).
No decurso dos anos 60, os trabalhos de Fairweather (1964), foram pioneiros ao
desenvolverem o paradigma da vida autónoma na comunidade para as pessoas com
doença mental e a relevância das suas interações com a comunidade no seu
conjunto como inovação social na área da saúde mental. Nessa altura, ainda era
prevalente e expectável que as pessoas internadas num hospital psiquiátrico
permanecem por longo-períodos, antes que pudessem regressar à comunidade
(Fairweather, Sanders & Tornatzky,1974).
Fairweather, Sanders, Maynard & Cressler (1969) demonstraram, através de um
processo cuidado de transição para espaços de grupo na comunidade, que as
pessoas com doença mental, quando integradas em pequenos grupos na comunidade
demonstravam uma boa capacidade de se ajudar mutuamente, de tomar decisões
adequadas e viver de forma ajustada fora das instituições psiquiátricas.
O autor centra o paradigma de inovação social na redescoberta de um estatuto
social significativo para as pessoas com doença mental no contexto da
comunidade, passando de doentes a cidadãos, proporcionando oportunidades para
que participassem mais ativamente na vida da sua comunidade. O seu objectivo
era criar uma alternativa ao hospital psiquiátrico, demonstrando como a vida na
comunidade poderia ter resultados positivos. O autor (1967), refere ainda que
as situações de internamento de longo prazo, poderiam ter impactos na vivência
futura na comunidade, essencialmente decorrentes do estatuto prolongado de
doente no processo de hospitalização e de doente crónico, com o internamento
por largos períodos, assumido a pessoa um perfil que Goffman (1962) intitulou
como sendo de requalificação. Neste percurso, a pessoa passava a ser
perspetivada como tendo poucas ou nenhumas possibilidades de recuperação,
corporizando a perspectiva prevalente nos profissionais, centrada nas
dificuldades e nos aspectos de vulnerabilidade e incapacidade que, por sua vez,
justificavam os longos períodos de institucionalização, por se constituírem num
problema social persistente e com necessidade de controlo social.
No percurso de transição para a comunidade as pessoas com doença mental vêem
alterado o seu estatuto de doentes ou pacientes crónicos para um estatuto de
cidadãos pelo simples facto de passarem a residir na comunidade. Os grupos,
inicialmente constituídos no contexto hospitalar, organizam-se através de
reuniões individuais e de grupo para abordar as características e
responsabilidades no âmbito do novo espaço habitacional. Os eventos individuais
e de grupo aumentam de intensidade à medida que se aproxima o momento de saída
do hospital. Fairweather et al. (1969), descrevem detalhadamente os princípios
de funcionamento dos espaços na comunidade o processo de transição para a
comunidade através de um conjunto de reuniões e encontros preparatórios, onde
se aborda a relevância dos residentes ganharem autonomia face aos
profissionais, considerando-se que os seus contributos serão fundamentais para
o bom funcionamento do espaço habitacional na comunidade; valoriza-se muito o
facto de cada residente assumir o máximo de responsabilidade por si próprio(a).
Considera-se que o bem-estar do espaço habitacional depende de todos(as)
(incluindo as atividades de limpeza e manutenção da qualidade do espaço
físico), residentes e equipa de apoio que devem procurar a excelência e
investir constantemente na promoção do bem-estar global no espaço habitacional.
Parte integrante dos princípios de funcionamento da alternativa que veio a ser
conhecida como Fairweather Lodge, são também a acessibilidade dos residentes à
equipa de apoio habitacional, sempre que necessitem de acompanhamento para
concretizar as suas responsabilidades ou na sua vida pessoal e o pressuposto de
que deve ser garantida a representatividade dos residentes nas decisões acerca
do espaço habitacional (Fairweather & Davidson, 1986).
Ainda hoje, o movimento da desinstitucionalização das pessoas com doença mental
continua a ser relevante para o panorama da saúde mental no contexto europeu e
em Portugal (Ornelas, 2005) e, apesar das experiências e políticas públicas
adotadas em alguns países, como por exemplo, Itália (Mosher & Burti, 1989)
na Inglaterra (Leff, 1997), ou ainda na Suécia (Arvidsson, 2003), entre outros,
há ainda a necessidade de dar continuidade à transição de um grande número de
pessoas dos hospitais psiquiátricos para as comunidades (Ornelas, 2008;
Towsend, 2011).
Enquadramento do Programa
Considerando que no panorama contemporâneo a desinstitucionalização assume
ainda grande pertinência, pois as situações de internamento de longo-prazo
ainda são uma realidade na maioria dos países da Europa, incluindo Portugal,
têm sido organizados em diversos países planos nacionais de reforma (e.g.,
Irlanda, Reino Unido). No âmbito do Plano Nacional produzido pela Comissão
Nacional para a Reforma dos Serviços de Saúde Mental (2006), foi definido o
encerramento de várias Unidades e Instituições de internamento psiquiátrico em
todo o território nacional, nomeadamente o Hospital Miguel Bombarda. Esta
instituição psiquiátrica foi instituída em 1848, assumindo a designação de
Hospital de Alienados de Rilhafoles em 1948 e na comemoração do seu 1ª
Centenário (Hospital Miguel Bombarda, 1949) dando origem ao Hospital Miguel
Bombarda que encerrou definitivamente os seus serviços em Julho de 2011, com a
transição do último grupo de seniores para a comunidade.
A concretização desta iniciativa partiu de uma proposta de colaboração do
Ministério da Saúde a uma organização da sociedade civil, a Associação para o
Estudo e Integração Psicossocial (AEIPS), através de um processo de preparação
e percurso de transição para a comunidade de um grupo de 24 pessoas com doença
mental e internamento de longo prazo. Todo o processo teve a duração global de
seis meses e foi estruturada a partir de um plano sistemático de encontros,
reuniões individuais e de grupo, bem como visitas, envolvendo os participantes,
as equipas técnicas, com particular incidência na troca de informações entre as
equipas de enfermagem hospitalar e comunitária de ambas as instituições,
incluindo também reuniões e visitas com os familiares dos participantes
envolvidos. Neste percurso foram também incluídas as atividades relacionadas
com a seleção e adaptação (abrangendo obras de renovação e instalação de
equipamento específico) do espaço na comunidade para acolher os futuros
residentes.
Método
Considerou-se como pertinente para documentar este processo de transição do
grupo de seniores para a comunidade uma estratégia eminentemente qualitativa,
ainda que com componentes quantitativos, mas de carácter descritivo, por
permitir o estudo detalhado do contexto de estudo e das pessoas envolvidas
nesse mesmo contexto (Schensul, 2012). A seleção deste método implica a
observação direta e a recolha de informação em profundidade acerca das pessoas
com experiências relevantes para o objeto de estudo selecionado (idem, 2012).
Para além disso, os desenhos de investigação eminentemente qualitativos são
considerados como pertinentes considerando o tipo de população em estudo
(ibidem, 2012; Bernard & Ryan, 2010; Padgett, 2012), que neste caso são
seniores, com uma idade média de 71 anos, logo mais enriquecedora a recolha de
informação relatada do que outras estratégias de recolhas de informação fechada
ou através de questionários pré-formatados. Considerou-se também relevante
preservar os relatos dos participantes para memória futura, por se tratar de
uma estratégia inovadora em termos de intervenção comunitária e de parceria
entre o Estado e uma Organização da Sociedade Civil na área da saúde mental em
Portugal. A dimensão da amostra (N= 24), foi também um critério relevante,
sendo de dimensão restrita e se encontrarem todos os seus participantes numa
situação idêntica: transitaram de um contexto hospitalar onde viveram
institucionalizados e passaram a partilhar o mesmo contexto habitacional na
comunidade.
As questões de investigação formuladas estão, também, ancoradas nos paradigmas
propostos pela investigação qualitativa, porque se procurou perscrutar o
significado pessoal para cada um dos residentes na sua transição para a
comunidade, mesmo os que apresentam maiores dificuldades de comunicação.
A estratégia de recolha de dados estruturada procura responder a um duplo
desafio, por um lado agregar dados numa perspetiva multinível, abrangendo um
nível individual, organizacional e comunitário de acordo com modelo formativo
que se apresenta no quadro_1 e, por outro procurando obter de fontes de
informação diversificadas dados que pudessem corroborar as mudanças
percecionadas e observadas no contexto habitacional e na comunidade.
A partir deste modelo formativo foi possível construir um conjunto de questões
de investigação centradas na adaptação ao novo contexto habitacional na
comunidade, na visibilidade de alterações nos padrões de atividade diária nos
residentes: a) como é que novas oportunidades e acesso a atividades no espaço
habitacional e na comunidade tiveram repercussão na vida dos residentes?; b)
que dimensões de co-morbilidade tiveram impacto na qualidade de vida dos
residentes? e, finalmente, c) que alterações são mais observáveis no conjunto
dos participantes?
Resultados
Os resultados foram estruturados por forma a proporcionar uma descrição da
população em estudo e procurar responder às questões de investigação
formuladas. Em termos de caracterização dos participantes apresenta-se o quadro
2 que permite visualizar aspetos demográficos, diagnósticos em saúde mental e
de co-morbilidade dos participantes deste programa.
A Transição para a Comunidade
No seu conjunto, o processo de transição para a comunidade foi composto por
três etapas, a primeira que decorreu no contexto hospitalar, a segunda fase a
transição e a terceira fase a integração progressiva no contexto habitacional e
na comunidade circundante.
A primeira etapa destinou-se a conhecer o grupo de futuros residentes e
proporcionar a a oportunidade para o grupo conhecer os membros da equipa
comunitária. As visitas da equipa comunitária, incluindo um enfermeiro,
permitiram a observação e acompanhamento das rotinas associadas às refeições e
foi proporcionada informação sobre os hábitos e envolvimento pessoal nas
rotinas de higiene e cuidado pessoal.
Na segunda etapa, dedicada à organização da transição, realizaram-se visitas
dos participantes, familiares e equipa hospitalar para facilitar a
familiarização com o espaço, proporcionando oportunidades de escolha do quarto
onde iriam ficar os residentes, considerando aspetos de mobilidade e locomoção,
procurando manter os residentes com os mesmos companheiros de quarto que no
contexto hospitalar. Os residentes transitaram em pequenos grupos distribuídos
por dias subsequentes para haver uma atenção mais personalizada e acompanhada
no processo de transição.
A terceira etapa constituiu-se num processo de adaptação exigente para
residentes e equipa comunitária, com um acompanhamento intensivo no contexto
habitacional para um conhecimento detalhado do espaço, na localização do seu
novo quarto, localização de instalações sanitárias e a possibilidade de
circulação em todo o espaço habitacional e jardins sem quaisquer limitações.
Para os residentes com hábitos de circulação no espaço circundante ao contexto
hospitalar, houve lugar a um acompanhamento intensivo para se apreenderem novos
percursos e para que fossem mantidos todos os contactos que existiam na
comunidade.
O Percurso de Adaptação entre T0 (Alta Hospitalar) e T1 (1 Ano na Comunidade)
No primeiro ano de funcionamento do espaço habitacional houve lugar a muitos
processos adaptativos e à introdução ou adaptação de novas rotinas. A nível
individual, introduziram-se novos hábitos de autonomização a nível de higiene
pessoal, redução da dependência dos profissionais para o banho ou no uso de
resguardos noturnos com utilização mais assídua de instalações sanitárias;
foram introduzidos hábitos de higiene oral com e sem utilização de escova; ao
nível do vestuário e sobretudo para as senhoras foram adquiridos novas
indumentárias, de acordo com os gostos pessoais e promovida a utilização de
calçado confortável, mas que permitisse a circulação no espaço exterior da casa
e na via pública. No espaço habitacional, proporcionadas oportunidades de
participação ativa, no início apenas dois residentes participavam regularmente
no apoio às refeições e eram frequentes os comentários "Não estou aqui para
trabalhar!" (C.A./E.M./E.G, 2011) ou "Não gosto de limpar cinzeiros!" (A.F.,
2011). As novas propostas de atividades no contexto habitacional de ginástica e
utilização da piscina, música ou a participação em reuniões comunitárias não
tiveram inicialmente grande adesão, constatando-se por vezes alguma
resistência. Em T1 (1 ano na comunidade), verificou-se um aumento muito
significativo no envolvimento nas atividades relacionadas com a higiene
pessoal, as senhoras passaram a ter mais cuidados com a sua higiene e imagem
pessoais (e.g., utilização diária de perfume, brincos ou outros adereços), a
higiene oral passou a fazer parte do quotidiano. Na colaboração em tarefas
concretas no espaço habitacional colaboram e/ou dirigem a organização do seu
roupeiro, responsabilizaram-se pelo transporte da sua roupa utilizada para o
espaço de lavandaria, colaboram de forma muito mais ativa nas refeições ou
outras tarefas relevantes na logística da casa como a gestão de roupas e dos
bens de utilização corrente (ex.: toalhas, materiais de higiene nas instalações
sanitárias, etc.). Os residentes assumiram maior responsabilidade na
dinamização de pequenos grupos para ir para o exterior (ao café ou outro
passeio na zona habitacional), aumentaram significativamente a sua comunicação
com os membros da equipa e passaram a participar mais ativamente nas atividades
para a manutenção física e postura corporal (e.g., E.M, desde 2012 frequenta
aulas de natação semanalmente). Os residentes participaram em eventos culturais
e sociais no âmbito da Associação, foram inscritos na Unidade de Cuidados de
Saúde Primários da área de residência e mantiveram rotinas de acompanhamento
médico em diversas especialidades, dando origem ao despiste de problemáticas
visuais (e.g., cataratas), iniciado processo de cirurgia à anca. Privilegiou-se
sempre que possível a utilização de transportes públicos para passeios pessoais
e/ou em grupo.
Balanço em T2 (2 Anos na Comunidade)
No período de dois anos na comunidade, os relatos individuais e as mudanças
observadas, são apresentadas sob a forma de balanço e reflexão crítica por
parte dos residentes e dos familiares. No período entre Julho de 2011 e Julho
de 2013 registaram-se quatro óbitos, decorrentes de situações de co-morbilidade
com idades de 89 em duas situações, 93 e 58 anos. No que concerne a comparação
entre a vida no contexto hospitalar e agora a sua vida na residência os relatos
recolhidos em entrevistas individuais remetem para conteúdos como: "lá era
muita confusão, aqui é mais calmo!" ou "somos tratados como pessoas, lá éramos
tratados como doentes.", ou ainda, "lá não tínhamos muitos contactos com os
homens, estava tudo mais separado."
No balanço sobre a experiência no espaço habitacional, alguns residentes
referem que "a comida aqui é melhor!", que "gosto dos passeios e da piscina.",
"agora vivo numa casa grande com jardim.", "fazemos muita ginástica.", ou ainda
"gosto dos filmes na parede." (E.G./E.M./H.O., 2012). Outros comentários
remetem para o facto de se sentirem melhor "Aqui estou mais calmo!" ou
realçando que "trabalho muito!"
Atualmente três residentes participam regularmente em aulas de natação em
locais diferentes da cidade, um residente frequenta um curso de informática na
comunidade e no programa de verão participaram em atividades promovidas pela
Junta de Freguesia da área de residência e no programa de verão promovido pela
Associação.
No que concerne os relatos dos familiares, selecionaram-se afirmações como
"está mais tranquilo"; "está mais ativo", "está mais falador", "está com melhor
aspeto e mais bem vestido", ou ainda, "está a interagir mais com os colegas";
"desde que entrou para cá está mais comunicativa (...) há mais de 20 anos que
não a via tão faladora e agora lembra-se do nome das filhas".
A partir destes relatos, considera-se que apesar da sua idade avançada e das
situações de co-morbilidade que têm vindo a revelar-se como limitadoras do bem-
estar e da mobilidade individuais, se constatam ganhos significativos em termos
de envolvimento nos cuidados pessoais, no contexto habitacional e em atividades
na comunidade.
Discussão e Conclusões
Retomando a proposta de inovação social inspirada nos trabalhos de Fairweather
(1964) e Fairweather e Davidson (1986) ou ainda Ornelas, Vargas-Moniz e Duarte
(2010), importa realçar a noção de mudança social que este programa implica,
por se focalizar na concretização do percurso de desinstitucionalização, mesmo
para um dos grupos considerados como tendo menores probabilidades de sucesso
nos seus processos de integração comunitária em consequência da
institucionalização de longo-prazo (média de 40 anos). Neste percurso
constatou-se que, como afirma Shinn (2007), as ideias e os contextos fazem a
diferença, isto é, porque havia um modelo de partida que proporcionou a
evidência científica que inspirou a organização criteriosa das etapas de
transição para a comunidade, porque a equipa está focalizada na autonomização e
na criação das condições para proporcionar o desenvolvimento individual, os
resultados observados foram graduais, mas consistentes em termos de adesão e
envolvimento em atividades e ações de desenvolvimento pessoal e de participação
individual. A seleção de um contexto na comunidade com padrões elevados de
qualidade e conforto para os residentes, também se tem revelado como relevante
para que os resultados globais sejam significativamente positivos, apesar da
idade avançada e das limitações iniciais decorrentes dos longos períodos de
institucionalização psiquiátrica. A inovação centra-se assim na exequibilidade
de resolução de um problema social persistente, a institucionalização de longo-
prazo não decorrente das problemáticas de saúde mental, mas por inexistência de
respostas em termos de cuidados continuados de base comunitária. Daqui decorre
a relevância da disseminação dos resultados da permanência na comunidade de
modo a promover a sua adoção como prática corrente em Portugal e noutros
contextos, onde a institucionalização sem limitação de tempo de estada em
pavilhões psiquiátricos ainda seja prática comum, sendo este um paradigma que
Fairweather (1986), designou de promotor de benefício e que segundo Nelson,
Kloos & Ornelas (in press), se pode considerar de paradigma transformador
em termos de saúde mental comunitária. Segundo estes autores, transitar para a
comunidade não é per si sinónimo de integração, é relevante a construção de um
modelo transformador saúde mental comunitária, ecologicamente ancorado e
coerente em termos de presença, acessibilidade e participação em esferas
sociais diversificadas.