Investigação em enfermagem de saúde mental e psiquiatria: Uma análise
documental
Introdução
Os cuidados prestados por enfermeiros devem basear-se em evidências
científicas. A investigação em Enfermagem constitui um meio poderoso para
responder a questões sobre as intervenções dos cuidados de saúde e de encontrar
melhores formas de promover a saúde, prevenir a doença e prestar cuidados e
serviços de reabilitação à pessoa e família ao longo do ciclo vital e em
diferentes contextos.
À semelhança de outras realidades internacionais, a Saúde Mental representa uma
área emergente pela complexidade de áreas de intervenção. Certos de que um
problema de investigação surge de uma inquietação, o desiderato dos enfermeiros
em geral, e em particular dos enfermeiros da área de Saúde Mental e
Psiquiátrica, deverá assentar na procura de uma melhor adequação entre o que se
investigação e o que se prática. Significa que a prática de cuidados pressupõe
um questionamento constante, que poderá ser compreendido através da
investigação e, por seu turno, implementada na prática clínica a melhor
evidência.
São inquestionáveis os avanços no domínio da investigação em Enfermagem na
última década. Uma grande parte através de trabalhos académicos de Mestrado e
Doutoramento, e outra através de esforços coletivos dos enfermeiros, que nos
diferentes contextos de Saúde Mental, fizeram com que a investigação se
tornasse parte do quotidiano na prática de cuidados. Sem este questionamento
constante, não será possível pôr em prática a melhor evidência, nem acrescentar
conhecimento a uma disciplina e profissão que queremos ver advogada e
reconhecida como tal.
A investigação em Enfermagem de Saúde Mental tem a vindo a projetar-se e
afirmar-se enquanto dispositivo de produção de conhecimento e desenvolvimento
de competências profissionais. Por conseguinte, e alicerçados no paradigma de
procura da melhor investigação para uma melhor praxis tivemos como desafio,
conhecer o tipo de investigação e as diferentes áreas temáticas neste domínio.
Metodologia
De modo a perceber quais as tendências da investigação em Enfermagem de Saúde
Mental e Psiquiatria (ESMP) ao longo dos últimos anos, no contexto português,
foi desenhado um trabalho de análise documental dos títulos e abstracts de
artigos publicados na Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental (RPESM)
entre os anos 2009 e 2013 (inclusive), ou seja, num horizonte temporal de cinco
anos.
Para a definição dos artigos a analisar foram delineados os seguintes critérios
de inclusão: a) ser um artigo de investigação (incluindo-se neste grupo
trabalhos de revisão sistemática ' com ou sem meta-análise ou meta-síntese ' e
integrativa da literatura); b) ser um artigo publicado numa fonte com peer
review; c) ter como primeiro autor (autor principal) um enfermeiro. Na análise
documental realizada foram encontrados 52 artigos que davam resposta aos
critérios de inclusão pré-definidos. Assim, e dado o número significativo de
artigos a apreciar, optou-se por limitar a análise a apenas dois itens: a) o
paradigma de investigação utilizado; b) a área temática abordada.
Tanto para analisar o paradigma de investigação utilizado como a área temática
abordada optou-se por realizar uma análise de conteúdo lato sensu com
categorização a posteriori, concretizada através de uma leitura detalhada dos
títulos e abstracts dos artigos selecionados procurando, a partir daí,
identificar as categorias emergentes. Após estar concluída a categorização foi
realizada análise quantitativa dos dados, tendo o tratamento dos mesmos sido de
âmbito descritivo, realizado com recurso ao software Microsoft Excel 14.0
(Office 2010) para Windows®.
Resultados
Dos 52 resumos analisados, e conforme pode verificar-se pela análise do Gráfico
1, os trabalhos de natureza quantitativa são maioritários (46%), seguidos pelos
trabalhos de revisão de literatura (33%). Os trabalhos de índole qualitativa
são os que apresentam menor expressão (21%).
Ao nível das áreas temáticas e conforme se pode verificar peloQuadro_1,
salienta-se o interesse em investigar resultados de intervenções de âmbito
psicoterapêutico (40%), dirigidas a diferentes grupos-alvo, em diferentes
situações clínicas, e em que se incluíram temáticas como: gestão/intervenção no
regime terapêutico, consulta de Enfermagem em Saúde Mental, grupos de apoio e
Educação para a Saúde.
Em segundo lugar, situam-se as vivências em saúde mental (15%), onde se
incluíram temáticas como, por exemplo, a problemática da morte e do luto e a
utilização do humor no contexto de cuidados. A Enfermagem de família é também
uma temática de interesse para a investigação por parte dos enfermeiros de
Saúde Mental, reconhecendo-se a importância do papel do prestador de cuidados.
Contudo, evidencia-se igualmente a emergência de novas temáticas de
investigação, como a Enfermagem Transcultural (4%). Na categoria «outros»
incluíram-se temáticas como: Supervisão Clínica em Saúde Mental, teorias de
Enfermagem em Saúde Mental e literacia em Saúde Mental.
Discussão
A Organização Mundial de Saúde, tendo em conta a problemática da Saúde Mental a
nível mundial, recomendava a adoção de medidas urgentes e «apelava ao reforço
do papel da investigação enquanto meio, não só para aprofundar o conhecimento
sobre esta problemática, mas também para apoiar as definição de prioridades, o
planeamento e a avaliação de vários tipos de intervenção» (Sousa, 2006, p.
105). Quando se olha para a investigação em Enfermagem realizada em Portugal,
Basto faz uma análise aos temas das teses de Doutoramento em Enfermagem
realizados no nosso país e verifica que apenas uma pode ser relacionada com a
área da Saúde Mental, sendo um trabalho na área das dependências (Basto, 2008).
Ainda assim, importa perceber que a Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica
é, de todas as áreas de especialidade de Enfermagem em Portugal, a que tem um
menor número de enfermeiros especialistas, e que grande parte dos profissionais
de Enfermagem que exercem funções em contexto hospitalar o fazem em serviços
médico-cirúrgicos.
Nos últimos anos, quando se tenta analisar a produção científica na área da
Saúde Mental e Psiquiatria em Portugal, esta tem sido escassa. No entanto com o
aparecimento d' A Sociedade Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, cuja
missão passa por promover e por divulgar a investigação na área da Enfermagem
de Saúde Mental, este aspeto parece ter sido colmatado. A criação da Revista
Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, pode ser um instrumento importante
para disseminar a evidência científica sobre promoção da saúde, prevenção da
doença, tratamento, reabilitação e reintegração de pessoas com doença mental ao
longo do seu ciclo de vida.
No Brasil foi efetuada uma revisão das publicações - Cartografia da Publicação
Brasileira em Saúde Mental - entre 1980 e 1996. Das temáticas dominantes neste
texto, salientam-se a organização de serviços (34,6%) e a análises de
experiências (35,5%) com maior destaque e aparecendo a seguir os estudos
clínicos (14,1%) e os estudos epidemiológicos (11,3%) (Passos, 2003). Num outro
documento, também do Brasil, verificámos que a práticas assistencial (práticas
terapêuticas relacionadas com a área da Enfermagem Psiquiátrica) foi o tema
mais abordado nos estudos efetuados (Munari, Oliveira, Saeki, & Souza,
2008). Na Irlanda foi efetuado um estudo semelhante, com análise de 75 artigos
publicados. Verificou-se que os assuntos refletem os debates e discussões no
contexto da Enfermagem, com 40% relativos aos problemas da prática clínica, 31%
à educação em Enfermagem, 18% à gestão e 6% aos aspetos metodológicos (Higgins
& Farrelly, 2007).
No estudo conduzido por Zauszniewski e Suresky, em que foram analisados 227
estudos publicados nos cinco jornais de Enfermagem Psiquiátrica mais lidos num
período de três anos, são referidas como cinco grandes áreas de investigação: a
perspetiva global, os enfermeiros psiquiátricos como sujeitos, os estudos sobre
os cuidadores familiares, investigação com os doentes ao longo do ciclo de
vida, e por último a utilização (verificação/teste) das intervenções de
Enfermagem. Destes estudos publicados, 88% foram conduzidos nos Estados Unidos,
63% eram referentes aos destinatários dos serviços de saúde mental, e apenas
11% foram sobre as intervenções de Enfermagem Psiquiátrica (Zauszniewski &
Suresky, 2004). Na realidade portuguesa, e pelos números de trabalhos
analisados, parece verifica-se algo contrário, em que as intervenções
psicoterapêuticas (40%) são a área de maior destaque nas investigações
realizadas. Contudo, este dado deve ser ponderado de forma cautelosa, visto que
apenas os estudos empíricos constituíram material de análise no presente
trabalho, embora o mesmo se verifique no estudo conduzido por Zauszniewski e
Suresky (2004).
Em termos de prioridades de investigação, a Ordem dos Enfermeiros considera que
«tendo em conta a realidade nacional, as áreas de investigação recomendadas
incluem as funções e contributos dos enfermeiros na redução do risco e
prevenção de comportamentos suicidários; instrumentos de avaliação de risco e
de intervenção; estratégias para melhoria das práticas nos contextos de
internamento e comunitários e, principalmente, dar prioridade ao estudo da
efectividade das intervenções realizadas por enfermeiros de Saúde Mental»
(Ordem dos Enfermeiros, 2012, p. 75), indo de encontro àquelas que parecem ser,
efetivamente, as tendências de investigação atuais em Enfermagem de Saúde
Mental.
Salienta-se, igualmente, a importância da família e do prestador de cuidados
informal como objeto de estudo: «o diagnóstico de «risco de sobrecarga» ou de
«sobrecarga do cuidador» possibilita a implementação de intervenções em
estádios mais precoces, o que terá como consequências a diminuição das
repercussões negativas para a pessoa dependente e o prestador de cuidados, bem
como a redução dos custos globais, individuais e familiares que lhe estão
associados» (Sequeira, 2010, p. 62). Estes aspetos são muito relevantes, uma
vez que fazer investigação em saúde e em enfermagem implica, muitas vezes,
estudar uma população constituída por indivíduos fragilizados física ou
psicologicamente, de uma forma temporária ou permanente: por isso, devem ser
alvo de cuidados redobrados atendendo ao dever de protecção daqueles que estão
mais fragilizados e vulneráveis (Nunes, 2013, p. 9). Mendes apresentou alguns
dados, em 2012, sobre o estado da arte, com referência aos trabalhos
referenciados na RPESM, destacando os trabalhos com os cuidadores (30,4%) e com
o doente adulto (26%) (Mendes, 2012).
Conclusões
Recentemente, a investigação em Enfermagem de Saúde Mental tem-se centrado,
cada vez mais, na implementação e avaliação da efetividade de intervenções de
âmbito psicoterapêutico. Este facto deve ser realçado, uma vez reflete a
iniciativa e o interesse por parte dos enfermeiros de Saúde Mental em divulgar
as suas práticas e que que contribui para o crescimento da profissão e do seu
reconhecimento. A emergência de novas temáticas de investigação, como a
Enfermagem transcultural, parece traduzir o interesse dos enfermeiros em
acompanhar as mudanças sociais (e.g., imigração).
O incremento de qualidade da Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental,
ao longo dos anos, particularmente pela sua recente integração na SciELO
Portugal®, traduziu-se também por uma maior procura da revista por parte de
autores / investigadores interessados em publicar e, consequentemente, numa
tendência para o aumento da qualidade dos trabalhos de investigação publicados.
Este é o caminho, mas existe ainda um grande percurso a ser feito. Como refere
Mendes, é necessário mais investigação e de melhor qualidade, equipas de
investigação com peritos tanto em área clínica como no ensino, e por último
maior ligação entre a academia e prática (Mendes, 2012). Por outro lado, como
salientam Zauszniewski e Suresky (2004), alcançar a prática baseada em
evidências nesta área de especialização de Enfermagem deverá exigir que os
investigadores sejam qualificados e que façam estudos relevantes para a
prática, e não menos importante, que façam a divulgação das suas investigações
e dos seus resultados.
O presente estudo centrou-se unicamente nos estudos empíricos publicados na
RPESM entre 2009 e 2013, portanto, num horizonte temporal demasiado curto para
se realizar uma análise da evolução das tendências de investigação em
Enfermagem de Saúde Mental ao longo do tempo. Porém, a análise dessa evolução
constitui um objetivo pertinente e com prováveis implicações para a Enfermagem
enquanto disciplina científica e, em particular, para a Enfermagem de Saúde
Mental. Assim, em estudos futuros recomenda-se a realização de trabalhos
centrados neste tipo de análise, dada a importância, a nível académico e
profissional, que a ela poderá estar associada.