Vulnerabilidade ao stress e qualidade de vida em familiares de pessoas com
alcoolismo
ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO
Introdução
Portugal apresenta, entre os países da União Europeia, um dos maiores consumos
de bebidas alcoólicas e uma maior prevalência de problemas ligados ao álcool
(Balsa, Vital, Urbano e Pascueiro, 2011). O alcoolismo, também denominado
Síndrome de Dependência do Álcool (SDA), é considerado uma doença crónica,
multifatorial, que se deteta quase sempre numa fase já tardia, devido ao seu
curso insidioso e prolongado. Além disso, tem implicações físicas,
psicológicas, sociais, profissionais e familiares (Kiritzé-Topor & Bénard,
2007).
Um conjunto de pesquisas tem documentado o impacto da SDA na vida dos
familiares, em que a Qualidade de Vida (QV) diminui quando estes têm de
enfrentar as consequências da SDA (Fleck, 2008). Porém, o impacto do álcool
sobre as pessoas que convivem com alguém com SDA é uma área considerada ainda
como pouco estudada (Casswell, You & Huckle, 2011). A QV é descrita como um
conceito dinâmico, multidimensional e a forma como é percebida não é a mesma
para todas as pessoas (Fayers & Machin, 2007), sendo reconhecida em alguns
estudos como uma medição de resultados que é importante para tomadas de
decisões respeitantes aos recursos e à criação de programas, nomeadamente no
tratamento de dependência do álcool (Luquiens, Reynaud, Falissard & Aubin,
2012).
O alcoolismo, sendo uma situação de stress, coloca exigências significativas no
que se refere aos recursos e capacidades de todos os membros da família ao
lidarem com o problema. A qualidade da adaptação familiar a essa situação está
dependente das estratégias pessoais que cada um tem para lidar com o stress, as
quais, por sua vez, dependem da VS (Vaz-Serra, 2007). A vulnerabilidade do
indivíduo é determinada não apenas pelo deficit de recursos, mas também pela
sua perceção do acontecimento e pela importância que ele lhe atribui. A VS, no
nosso estudo, é definida como o risco aumentado de se reagir de uma forma
negativa perante um dado acontecimento de vida (Vaz-Serra, 2007). Os conceitos
de vulnerabilidade e resiliência, embora distintos, encontram-se interligados.
Segundo Assis, Avanci e Pesce (2006), quanto mais se desenvolver a resiliência,
menor será a vulnerabilidade e vice-versa.
No caso da família, a vulnerabilidade poderá ser explicada pela fraca
capacidade desta se adaptar a novas situações, mostrando uma menor resistência
a fatores de risco (biológicos, económicos, sociais ou psicossociais)
(McCubbin, McCubbin, Thompson, Han, & Allen, 1997). Famílias resilientes
são aquelas que evitam não apenas os efeitos negativos associados aos fatores
de risco, mas que conseguem desenvolver também, muitas vezes, competências
específicas para lidar com os problemas (McCubbin & McCubbin, 1993). Assim,
o presente estudo teve como objetivo descrever a VS e a sua relação com a QV,
com a finalidade de identificar intervenções de enfermagem promotoras da
resiliência com vista a melhorar a perceção de QV dos familiares de pessoas com
SDA.
Metodologia
Estudo transversal, descritivo e correlacional. Participantes: 200 familiares
de pessoas com Síndrome de Dependência Alcoólica (SDA), tratando-se de uma
amostra não probabilística, de conveniência. A amostra foi selecionada em
serviços e/ou consulta de alcoologia em diferentes sub-regiões do País (Norte,
Centro, e Lisboa e Vale do Tejo) e grupos de autoajuda. Considerámos como
critérios de inclusão: idade igual ou superior a 18 anos; serem familiares de
pessoas com diagnóstico clínico de SDA há, pelo menos, um ano; com capacidade
de leitura e compreensão de português e que não apresentassem dependência
alcoólica. Instrumentos: Questionário de caracterização sociodemográfica
(idade, sexo, anos de escolaridade, situação profissional e conjugal, se tem e/
ou vive com um familiar com SDA e se frequenta grupos de autoajuda) e
informação clínica relativa ao familiar com SDA (inicio do consumo de álcool,
tempo de diagnóstico de SDA e de abstinência, número de internamentos e de
recaídas); Questionário de Vulnerabilidade ao Stress 23QVS (Vaz-Serra, 2000),
composto por uma escala tipo likert, com cinco possibilidades de escolha (de 0
a 4). Quanto mais alto for o valor da nota global, maior é a VS. Uma
classificação de 43 representa o ponto de corte acima do qual uma pessoa se
encontra vulnerável ao stress. No estudo de validação para a população
portuguesa foi obtido um Alfa de Cronbach da escala global de 0,82 (Vaz-Serra,
2000) e, no presente estudo, de 0,86; Questionário de Estado de Saúde SF-36V2,
validado para a população portuguesa por Ferreira (2000a, 2000b).
É um questionário de autoadministração, constituído por 36 itens que avaliam a
QV em oito dimensões do estado de saúde: Função Física, Desempenho Físico, Dor
Corporal, Saúde em Geral, Vitalidade, Função Social, Desempenho Emocional e
Saúde Mental. Os resultados das subescalas e componentes variam entre 0 e 100,
sendo que os resultados mais elevados representam uma melhor QV.
Nos estudos de validação para a população portuguesa, o Alfa de Cronbach das
subescalas situou-se entre α=0,60 e α=0,87, sendo que, no presente estudo,
esses valores se situaram entre α=0,70 e α=0,94. Procedimentos: Respeitaram-se
as normas éticas constantes da declaração de Helsínquia. Depois de obtida a
autorização, por parte das Unidades de Alcoologia, dos grupos de autoajuda, dos
autores das respetivas escalas e recolhido o consentimento informado dos
participantes neste estudo, foram colhidos os dados entre outubro de 2008 e
janeiro de 2010. Utilizámos a análise exploratória e descritiva dos dados,
recorrendo ao Statistical Program for Social Sciences (SPSS), versão 20.0.
Para a comparação de dois grupos independentes recorreu-se ao teste U de Mann-
Whitney ou ao teste de Kruskal-Wallis sempre que, pelo menos, um grupo não
apresentava distribuição normal (Marôco, 2011). Para o estudo da forma e
intensidade da relação entre duas variáveis contínuas, recorreu-se ao
coeficiente de correlação de Pearson. Os resultados são considerados
significativos para um nível de significância de p≤0,05.
Resultados
A amostra era maioritariamente do sexo feminino (72%, n=144), casados/união de
facto (71%, n=142), trabalhadores, com uma média de 47 anos de idade (DP=14,66)
e 8 anos de escolaridade (DP=4,32). Além disso, 61,5% (n=123) vivia com pessoas
com alcoolismo e 60,0% (n=120) tinha, como antecedente familiar, uma pessoa com
alcoolismo. A maioria dos inquiridos não frequentava grupos de autoajuda
(57,5%, n=115). Relativamente à pessoa com SDA, os familiares responderam
desconhecer a idade em que iniciou o consumo de álcool, que o diagnóstico da
SDA tinha sido realizado há cerca de 14 anos (M=14,10; DP=10,07; ampl.=1-35), e
que em média tinham tido um internamento (M=1,49; DP= 2,85; ampl.=0-24) e duas
recaídas (M=2,08; DP=1,99; ampl.=0-10). Da análise da Tabela_1, verificamos que
os familiares que constituíram a amostra são pouco vulneráveis ao stress
(escala global) (M=39,92; DP=13,13), embora sejam vulneráveis relativamente ao
Perfecionismo e Intolerância à Frustração, Subjugação e Dramatização da
Existência. Quanto à QV, pode dizer-se que, em média, os familiares
demonstraram uma perceção de QV positiva em todas as suas dimensões do SF-36.
As subescalas, em que apresentam valores mais elevados, foram a Função Física
(M=78,39; DP=23,43) e o Desempenho Físico (M=71,89; DP=25,85). Em
contrapartida, as subescalas com maior comprometimento (embora ainda positivas)
foram a Vitalidade (M=50,30; DP=21,51) e a Saúde Mental (M=56,78; DP=22,94).
Na comparação dos resultados da VS, de acordo com as várias categorias do
estado civil, detetaram-se diferenças estatisticamente significativas na
subescala Condições de Vida Adversas (χ2kw(3)=8,62, (p=0,035), verificando-se
que os divorciados diferem dos solteiros (p=0,010) e dos casados (p=0,021),
apresentando os divorciados uma menor capacidade para lidar com as adversidades
da vida (Md=6,00) do que os casados (Md=3,50) e os solteiros (Md=3,00). A
situação profissional influencia a VS dos familiares, pois observaram-se
diferenças estatisticamente significativas relativamente à VS global (χ2kw
(3)=12,52, p=0,006), ao Perfecionismo e Intolerância à Frustração (χ2kw
(3)=24,19, p˂0,0001), às Condições de Vida Adversas (χ2kw(3)=22,28, p˂0,0001) e
à Subjugação (χ2kw(3)=11,12, p=0,011) (Tabela_2). Entre as várias situações
profissionais, destacam-se os familiares desempregados, apresentando estes
valores mais elevados de VS relativamente às outras categorias profissionais.
Os resultados da Tabela_3 demonstram que quanto maior a idade dos familiares,
maior é a Subjugação. Também os familiares com maior escolaridade são menos
vulneráveis ao stress em geral, menos submissos, sentem uma menor necessidade
de perfecionismo e maior tolerância à frustração e referem ainda menos
condições de vida adversa. Ainda quanto maior o tempo de dependência alcoólica
do familiar, menor é o Perfecionismo e a Intolerância à Frustração.
Na avaliação das várias subescalas da VS e a escala global, entre os sexos e
entre quem frequentava e quem não frequentava grupos de autoajuda, não se
detetaram diferenças estatisticamente significativas (p>0,05).
Face ao exposto na matriz de correlações apresentada na Tabela_4, de uma forma
geral, encontramos correlações negativas entre as todas as dimensões da QV (SF-
36) e as da VS e escala global (23QVS), indicando que os familiares das pessoas
com SDA menos vulneráveis ao stress apresentam melhor perceção de QV em todas
as suas dimensões.
Discussão
O alcoolismo de um membro da família condiciona e limita, muitas vezes, a vida
familiar, embora também possa funcionar como um organizador existencial para a
família (Roussaux, Faoro-Kreit & Hers, 2002). Ao contrário do que se
verificou no estudo de Valentim, Santos e Pais-Ribeiro (2014), sobre a VS em
pessoas com alcoolismo, os familiares, em geral, são pouco vulneráveis ao
stress e, apesar das consequências associadas à doença alcoólica, têm uma
razoável perceção sobre a sua QV. Parece-nos que estes familiares desenvolveram
alguma resiliência, que os capacitou a responderem de forma efetiva às
exigências da vida quotidiana, ou, então, adaptaram-se e organizaram-se de
acordo com a problemática da SDA. Contudo, sentem-se pior quando não são
perfeitos naquilo que fazem e dedicam mais tempo às solicitações das outras
pessoas do que às suas próprias necessidades (Perfecionismo e Subjugação).
Os familiares apresentaram valores mais elevados de QV relativamente à Função e
Desempenho Físico, o que significa que não apresentam problemas físicos graves,
realizam todos os tipos de atividade física, sem quaisquer limitações por
motivos de saúde. De notar que a maioria destas pessoas estão profissionalmente
ativas. Porém, como era esperado, percecionam pior Vitalidade (menos energia) e
menos Saúde Mental. Esta perceção pode estar relacionada com as tensões e a
insegurança ocasionadas pelo comportamento da pessoa com SDA, que é, muitas
vezes, negligente no que diz respeito às responsabilidades familiares (Roussaux
et al., 2002).
Tal como no estudo de Valentim e colaboradores (2014), também no presente
estudo, o estar casado/união de facto e o estar empregado ou a estudar, poderão
ser fatores protetores e promotores de resiliência. O domínio escolar é
considerado importante para o desenvolvimento da resiliência (Assis et al.,
2006). Os familiares com menos instrução parecem ser mais vulneráveis ao stress
(escala global), os mais velhos poderão não pensar tanto nas suas necessidades,
dedicando-se mais às solicitações das outras pessoas (Subjugação), e quanto
maior é o tempo de dependência alcoólica, menor é a necessidade de aprovação
por parte dos outros e maior a tolerância à frustração.
Parece que, à medida que o tempo passa, os familiares vão-se adaptando ao
problema do alcoolismo e vão sendo capazes de proporcionar o apoio necessário
para desenvolver e sustentar os sentimentos de autoestima e autoconfiança dos
seus membros, ou seja, tornando-se resilientes (McCubbin & McCubbin, 1993).
No que diz respeito ao estudo da relação entre a VS e a QV, verificámos que os
familiares, que percecionavam de forma mais negativa a sua QV, eram mais
vulneráveis ao stress, o que parece confirmar os resultados encontrados por
alguns autores (Shyu, 2006; Valentim et al., 2014).
Conclusão
A SDA tornou-se um dos mais complexos problemas de saúde pública, pela
progressão lenta e, por vezes, silenciosa da doença. No decorrer da doença, o
impacto do diagnóstico, a convivência com a doença e o início do tratamento,
constituem situações de stress que poderão afetar a QV, dependendo da
vulnerabilidade de cada um. As pessoas mais vulneráveis apresentam uma menor
capacidade de resolução de problemas e de adaptação, quer seja porque avaliam a
situação como ameaçadora, quer porque sentem que não têm à sua disposição
recursos suficientes para a enfrentar (Vaz-Serra, 2007). Apesar dos valores
baixos de VS e de valores moderados de perceção de QV, os resultados apontam
para uma associação entre as variáveis estudadas, confirmando-se a importância
da VS para a perceção de QV. Mostram ainda que, em geral, a VS deve ser tida em
consideração no desenho de estratégias de intervenção em enfermagem, com o
objetivo fundamental de manter ou melhorar a QV.
Implicações para a Prática Clínica
Segundo Pereira (2001, p. 87-88), "Uma das grandes apostas para o próximo
milénio será tornar as pessoas mais resilientes e prepará-las para uma certa
invulnerabilidade que lhes permita resistir a situações adversas que a vida
proporciona...". Resiliência não é algo inato ou genético, é uma competência
pessoal e social que poderá ser apreendida e desenvolvida (Sória, Souza,
Moreira, Santoro, e Menezes, 2006). Assim, na prática, a intervenção do
enfermeiro deverá centrar-se em aumentar a resistência ao stress e capacitar a
família para lidar adequadamente com os fatores indutores de stress, através de
programas de gestão de stress (técnicas de relaxamento, entre outras), e
estimular atitudes positivas que permitam enfrentar problemas, resolvê-los e
prever consequências (resolução de problemas). Estas intervenções devem dar uma
atenção especial às pessoas divorciadas, desempregadas, mais velhas, com menos
escolaridade e que têm um familiar com SDA diagnosticado à pouco tempo.
Estas intervenções deverão integrar-se, principalmente, num trabalho em equipa
multidisciplinar. Torna-se importante salientar que este tema precisa de ser
mais explorado, permitindo aos profissionais de saúde refletirem sobre
intervenções que permitam promover a resiliência e melhorar a perceção de QV,
pois parece-nos ser este um dos caminhos mais adequados para se obterem ganhos
em saúde. Sugerimos alguns estudos futuros, entre eles a continuação do
presente estudo, estudos longitudinais em que se investigue a VS e a sua
relação com a QV, em utentes e familiares, em momentos diferentes da SDA e
estudos de caráter quasi-experimental, em que seja analisada a eficácia de um
conjunto de intervenções de enfermagem específicas e pré-selecionadas.