Saúde mental numa população não clínica de jovens adultos: Da psicopatologia ao
bem-estar
Introdução
Até há pouco tempo, a saúde e o bem-estar encontravam-se relacionados com a
ausência de doença (Lamers, Westerhof, Bohlmeijer, Klooster & Keyes, 2011)
e a saúde mental permanecia indefinida e não mensurável (Keyes, 2007). Esta
leitura concetual tem vindo a ser transformada com os contributos trazidos às
ciências da saúde pela psicologia positiva (Matos et al., 2010). Deste modo, a
investigação na área tem demonstrado que a saúde mental não inclui apenas a
ausência de doença mental, mas também a presença de algo positivo, designado de
saúde mental positiva (Keyes, 2002; 2007). Assim, inúmeros autores definem a
saúde mental positiva como uma síndrome de sintomas de sentimentos e
funcionamento positivos, operacionalizada através de medidas de bem-estar, no
qual o indivíduo realiza as suas próprias capacidades, lida com o stress normal
da vida, trabalha de forma produtiva (Keyes, 2002; 2007) e frutífera (WHO,
2005), estabelece relações positivas com outros indivíduos (Keyes, 2002; 2007)
e é capaz de dar um contributo a si ou à sua comunidade (WHO, 2005). Esta
definição assenta em três componentes principais, o bem-estar emocional (BEE),
o bem-estar psicológico (BEP) e o bem-estar social (BESo) que, em conjunto,
compõem a definição de saúde mental positiva (Lamers et al., 2011). Assim, os
indivíduos podem caraterizados como languishing (ausência de saúde mental
positiva), saúde mental moderada e flourishing (saúde mental positiva) (Keyes,
2002). Neste sentido, este estudo apresenta como objetivo geral a caraterização
da saúde mental de uma população jovem, focada na análise dos níveis de
psicopatologia, bem como nos níveis de saúde mental positiva.
Metodologia
Neste estudo participaram 157 indivíduos, 79 de sexo feminino e 78 do sexo
masculino, com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos de idade,
residentes na ilha de São Miguel, nos Açores. Os instrumentos de recolha de
dados foram: o questionário sociodemográfico construído para o efeito; a Versão
Portuguesa da Escala de Bem-estar mental de Warwick-Edinburgh (WEMWBS); a
Escala Continuum de Saúde Mental ' versão reduzida (Adultos) (MHC-SF) e a
Escala de Ansiedade, Depressão e Stress (EADS-21). No que respeita ao
procedimento realizado, primeiramente procedeu-se ao pedido de autorização aos
autores dos instrumentos supracitados. Após as respetivas autorizações, o
projeto desta investigação foi submetido à comissão de ética da Universidade
Fernando Pessoa. O seu parecer positivo conduziu ao início da recolha de dados,
sendo contatadas algumas juntas de freguesia do Concelho de Ponta Delgada, nos
Açores, por forma a identificarem os grupos juvenis das mesmas, bem como os
respetivos responsáveis. Posteriormente foram apresentados os objetivos do
estudo bem como os procedimentos éticos inerentes, visando proteger os
possíveis participantes. A análise dos resultados foi realizada com recurso ao
programa estatístico SPSS (versão 22).
Resultados
No que respeita à caraterização da saúde mental dos participantes relativamente
à doença mental e à saúde mental positiva constatou-se que os participantes
apresentaram níveis relativamente baixos de psicopatologia (depressão,
ansiedade e stress) e níveis relativamente elevados de saúde mental positiva,
tendo em conta as pontuações mínimas e máximas possíveis dos instrumentos (cf.
Tabela_1).
Relativamente aos estados de saúde mental positiva, verificou-se que a maioria
dos indivíduos se encontrava em flourishing (58.6%), evidenciando, assim, saúde
mental positiva, seguindo-se os indivíduos com saúde mental moderada (38.2%) e
os indivíduos em languishing (3.2%). Foram também analisadas as diferenças na
saúde mental positiva e nos níveis de doença mental de acordo com variáveis
sociodemográficas. No que respeita à idade, constataram-se diferenças
significativas, ao nível da ansiedade, (t (155) = -2.22, p = .03), do bem-estar
mental em geral, (t (155) = -2.78, p = .006), do BESo, (t (155) = -3.38, p =
.001), e do BEP, (t (155) = -2.62, p = .01), verificando-se que os jovens entre
os 26 e os 30 anos de idade pontuam mais elevado nestas dimensões. Também ao
nível do estado de flourishing (t (155) = 2.36, p =.02) se verificou que os
jovens entre os 18 e os 25 anos de idade apresentaram níveis mais elevados de
saúde mental positiva. Quanto ao sexo, identificaram-se diferenças
significativas entre o sexo masculino e o sexo feminino ao nível da depressão,
(t (155) = -2.23, p =.03), da ansiedade, (t (155) = -2.69, p =.008), do stress,
(t (155) = -2.996, p =.003), e do BEE, (t (155) = 2.29, p =.02), verificando-se
que o sexo feminino pontua mais elevado na ansiedade, depressão e stress, ao
passo que os homens apresentam níveis mais elevados de BEE. No que concerne ao
estado civil, foram encontradas diferenças significativas entre os indivíduos
solteiros e os indivíduos casados ao nível da depressão, (t (153) = -3.18, p
=.002), ansiedade, (t (153) = -3.82, p =.000), stress, (t (153) = -2.69, p
=.008) e BESo, (t (153) = -2.97, p =.003), sendo os indivíduos casados quem
apresenta níveis mais elevados nestas dimensões. No respeitante às habilitações
académicas, encontraram-se diferenças significativas ao nível da depressão, (F
(2.150) = 3.66, p =.028), sendo que o Teste Post-Hoc de Gabriel revelou que os
alunos do ensino básico relatavam níveis mais elevados de depressão do que os
indivíduos com licenciatura. Quanto à descendência, os indivíduos com filhos
relataram níveis significativamente superiores de depressão, (t (155) = 3.68, p
=.000), ansiedade, (t (155) = 4.10, p =.000), e stress, (t (155) = 3.71, p
=.000), em relação aos indivíduos que não têm filhos. E os indivíduos sem
filhos revelam níveis significativamente superiores de languishing (t (155) = -
2.46, p =.02). Relativamente ao desejo em sair da ilha, os indivíduos que não
desejam sair da mesma relataram níveis significativamente superiores de
depressão, (t (154) = -1.95, p =.05), de ansiedade, (t (154) = -2.08, p = .04),
de BESo, (t (154) = -3.94, p = .000), e de languishing (t (154) = -2.42, p =
.02) do que os indivíduos que pretendem sair. No que respeita à participação em
atividades não remuneradas, como voluntariado, os indivíduos que não participam
nas mesmas relataram níveis significativamente superiores de depressão, (t
(152) = -3.34, p =.003), ansiedade, (t (152) = -3.46, p =.001), e stress, (t
(152) = -3.01, p =.003), do que os indivíduos que participam. Quanto à
utilização da rede de cuidados de saúde, constataram-se diferenças
relativamente aos indivíduos que frequentam e os indivíduos que não frequentam
a mesma, ao nível da depressão, (t (154) = -3.60, p =.000), ansiedade, (t (154)
= -3.32, p =.001), stress, (t (154) = -3.02, p =.003), e BESo, (t (154) = -
3.61, p =.000). Foram os indivíduos que não frequentam as redes de cuidados de
saúde que apresentaram níveis mais elevados de depressão, ansiedade, stress e
BESo. Por fim, no que concerne ao acompanhamento psicológico no passado ou
atualmente, à satisfação com a rede de cuidados de saúde, à situação
profissional e ao concelho de residência, não foram encontradas diferenças
significativas em nenhuma das variáveis consideradas.
Discussão
O presente estudo teve como objetivo geral caraterizar a saúde mental de jovens
adultos relativamente à saúde mental, numa perspetiva positiva e
psicopatológica. Foi possível verificar que os participantes apresentam baixos
níveis de psicopatologia e níveis elevados de saúde mental positiva, sendo que
a maioria dos participantes se encontra em flourishing, seguindo-se os
indivíduos com saúde mental moderada e, por fim, os indivíduos com languishing,
sendo estes resultados também verificados por Keyes e colaboradores (2012),
constatando-se ainda, tal como no presente estudo, que a psicopatologia mais
frequentemente referida era a depressão. Foram encontradas diferenças na saúde
mental positiva e nos níveis de doença mental de acordo com variáveis
sociodemográficas. Deste modo, pudemos constatar que são as mulheres que
apresentam níveis mais elevados de psicopatologia (depressão, ansiedade e
stress), o vai de encontro à literatura (Hamilton & Meston, 2013). Estes
valores de ansiedade, depressão e stress são também mais elevados nos
indivíduos com filhos podendo este fato dever-se à reorganização familiar
inerente à parentalidade (Widarsson et al., 2012). No entanto, a associação
entre parentalidade e saúde mental é complexa e depende fortemente de fatores
contextuais (Rimehaug & Wallander, 2010).Em relação ao estado civil, os
indivíduos casados relatam também níveis mais elevados de depressão, ansiedade
e stress, o que segundo Bischoff (2004) se pode dever ao facto de esta se
encontrar associada a conflitos conjugais e à diminuição da satisfação
conjugal. Os indivíduos que não pretendem sair da ilha também manifestam níveis
mais elevados de depressão e ansiedade, o que não seria espectável, uma vez que
a migração influencia de forma negativa a saúde mental (Familiar, Borges,
Orozco & Medina-Mora, 2011). Consideramos assim pertinente aprofundar o
estudo deste fenómeno. Os indivíduos que não participam em atividades não
remuneradas também expressam níveis mais elevados de depressão, ansiedade e
stress, resultado compreensível já que as atividades de voluntariado geram
cognições e afetos positivos que evitam a depressão e promovem o altruísmo
(Musick & Wilson, 2003). Contrariamente ao verificado na literatura (Keyes,
2007) os indivíduos que não frequentam a rede de cuidados de saúde são os que
relatam níveis mais elevados de depressão, ansiedade e stress, podendo este
resultado dever-se ao facto de os participantes, tendo em conta as pontuações
mínimas e máximas possíveis do instrumento utilizado, apresentarem níveis
relativamente baixos de depressão. Os indivíduos com o ensino básico revelam
níveis mais elevados de depressão, o que vai de encontro ao estudo de Molina et
al., (2012), que defendem que a baixa escolaridade, entre outros fatores, pode
estar associada a níveis mais elevados de depressão, devido às condições de
vida e ao maior número de stressores ambientais. Os jovens mais velhos também
relatam níveis mais elevados de depressão sendo que Bayram e Bilgel (2008)
referem que a transição para a idade adulta representa um período de risco para
o aparecimento de ansiedade. No que concerne aos níveis de bem-estar mental em
geral (WEMWBS), os jovens mais velhos expressam níveis superiores.
Relativamente aos níveis de BEE, o sexo masculino relata níveis mais elevados,
o que vai de encontro à literatura (Keyes, 2002) sendo o género um importante
preditor de BEE (Haring, Stock & Okun, 1984). Quanto aos níveis de BESo, os
jovens mais velhos manifestam níveis mais elevados, sendo que o aumento da
idade pode influenciar o aumento de algumas facetas do BESo (Keyes, 1998). Os
indivíduos que não desejam sair da ilha também apresentam níveis mais elevados,
podendo estar associado o facto de se sentirem integrados e confortáveis com a
sua realidade social (Keyes, 1998). Os indivíduos que não frequentam as redes
de cuidados de saúde também relatam níveis mais elevados de BESo. Ainda se
verificou que os indivíduos casados apresentam níveis mais elevados de BESo, o
que vai de encontro à literatura (Shapiro & Keyes, 2008). Quanto aos níveis
de BEP, os jovens mais velhos relatam níveis mais elevados, o que vai de
encontro ao estudo de Keyes, Shmotkin & Ryff (2002, citados por Siqueira
& Padovam, 2008), que constataram que o BEP tende a aumentar com a idade.
Por fim, no que concerne aos estados de saúde mental positiva, os jovens com
menos idade apresentam níveis mais elevados de flourishing, corroborando o
estudo de Matos et al. (2010). Os indivíduos sem filhos apresentam níveis mais
elevados de languishing, o que comprova que a ausência de doença mental não
implica a presença de saúde mental positiva/bem-estar (Keyes, et al., 2012).
Por fim, os indivíduos que não desejam sair da ilha apresentam níveis mais
elevados de languishing, corroborando a perspetiva de Keyes (2002) de que a
ausência de saúde mental positiva aumenta a probabilidade de uma perturbação
mental.
Conclusão
A saúde mental para além da presença ou ausência de doença mental envolve ainda
aspetos emocionais, psicológicos e sociais, que permitem observar a saúde como
um estado completo. Com este estudo verificou-se que as mulheres, os indivíduos
casados, com filhos, com o ensino básico, que não desejam sair da ilha, que não
praticam atividades não remuneradas e não frequentam a rede de cuidados de
saúde apresentaram níveis mais elevados de depressão, ansiedade e stress. Por
seu turno, os níveis de depressão são também mais elevados nos indivíduos com o
ensino básico e os de ansiedade surgem em jovens mais velhos. No que respeita
aos níveis de bem-estar mental em geral, os jovens mais velhos são quem
apresenta níveis mais elevados. No que concerne ao BEE, o género masculino é o
que apresenta níveis mais elevados. Quanto ao BEP, os jovens mais velhos são
quem relata níveis mais elevados. Por fim, os jovens mais velhos, os indivíduos
casados, com mais do que um filho, que não desejam sair da ilha e que não
frequentam a rede de cuidados de saúde são quem apresenta níveis mais elevados
de BESo. Quanto aos estados de saúde mental positiva, os jovens mais velhos
manifestam níveis mais elevados de flourishing (saúde mental positiva), sendo
que os indivíduos sem filhos e que não querem sair da ilha revelam níveis mais
elevados de languishing (ausência de saúde mental positiva). No entanto, a
maioria dos participantes encontra-se em flourishing, enquanto a minoria se
encontra em languishing. Em suma, apesar da maioria desta população se
encontrar em flourishing, uma percentagem considerável dos participantes
encontra-se com saúde mental moderada, seguindo-se os indivíduos em
languishing, apresentando, assim, maior probabilidade de desenvolvimento de uma
perturbação mental como a depressão (Keyes, 2002). Para além disso, uma das
perturbações mais frequentemente relatada pelos participantes consiste na
depressão, emergindo a importância de intervenção nesta área.
Implicações para a Prática Clínica
A realização deste estudo afigura-se pertinente na área da saúde mental,
fornecendo importantes contributos para a compreensão da saúde mental numa
perspetiva holística e positiva, que permitirá o aprimoramento das estratégias
de intervenção psicológica.