Comorbidades em usuários de um serviço de saúde mental
Introdução
No bojo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, surge a necessidade de novos
serviços de saúde mental desinstitucionalizados, substituindo o modelo
hospitalocêntrico, destinados a pessoas com transtornos mentais. Através de
forte movimento social é criado, em 1986, o primeiro Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) no Brasil, iniciativa esta que se consolidou e espalhou por
todo o país como modelo assistencial à saúde mental (Brasil, 2004). A Portaria
nº336/02 de 19 de Fevereiro regulamenta este serviço e o divide em: CAPS I
(atende um território de até 70.000 habitantes); CAPS II (atende a um
território de até 200.000 habitantes); CAPS III (atende a um território de mais
de 200.000 habitantes e possui horário de funcionamento 24 horas); CAPS ad
(destinando ao tratamento de álcool e droga) e; CAPS infantil. O CAPS oferece
atendimento ambulatorial diário a pessoas que sofrem de transtornos mentais
severos e persistentes por meio da reabilitação psicossocial (Brasil, 2004).
Acredita-se hoje em cuidado biopsicossocial em saúde mental, pois trata-se de
um campo de fronteiras, englobando conhecimentos das áreas biológicas, humanas,
sociais e até das artes. Segundo Saraceno, Asioli e Tognoni (2001), os
objetivos gerais da intervenção em saúde mental devem ser: 1. levar o usuário a
adquirir consciência a respeito dos seus problemas: pessoais, familiares, de
trabalho, econômicos, sociais e culturais; 2. desenvolver a autonomia afetiva-
material-social do usuário; 3. aumentar a incorporação do usuário na vida de
relação social e política. Para cuidar da pessoa nesta perspectiva do processo
saúde-doença mental, é salutar perceber a ocorrência de comorbidades. Tivemos
como objetivo deste estudo investigar a ocorrência de comorbidades
psiquiátricas e físicas nos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial.
O termo comorbidade foi introduzido em medicina com a seguinte definição:
"qualquer entidade adicional distinta que existiu ou pode acontecer durante o
curso clínico de um paciente que tem a doença índice em estudo" (Fortin,
Lapointe, Hudon, Vanasse, Ntetu & Maltais, 2004). Doença índice entendida
como a principal ou primária. A comorbidade psiquiátrica é a ocorrência
simultânea de dois ou mais transtornos mentais na mesma pessoa. Já a
comorbidade física em doentes mentais, ocorre quando há coexistência de
patologias físicas e mentais (Kaplan, Sadock & Gregg, 2007; Louzã Neto,
Motta, Wang & Elkis, 2007; Organização Mundial de Saúde, 1993). Acredita-se
que a presença de comorbidades tem repercussões na prática clínica, na
identificação, nos cuidados gerais e específicos, na família ou cuidadores, nos
gestores de saúde e na reabilitação dos usuários, uma vez que estes pacientes
são cada vez mais prevalentes nos serviços de saúde .
Sabe-se que a presença de comorbidades nos usuários de saúde mental é bastante
considerável. Este fato causa uma elevação na taxa de mortalidade nestes
pacientes e na maneira com que se implicam em seu tratamento, como por exemplo
o uso de medicamentos que causam outras queixas ou a desatenção dos
profissionais de saúde com outros sintomas apresentados, o que pode agravar o
quadro psiquiátrico (Gomes, 2012).
Devido a maior prevalência de comorbidades, os profissionais precisam estar
atentos a esta demanda, que vai além do cuidado básico em saúde mental.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa quantitativa e qualitativa, em que foram realizadas
entrevistas cuidadosas tendo como norte o instrumental da enfermagem em saúde
mental: comunicação terapêutica, relacionamento interpessoal profissional,
medidas terapêuticas, dentre outros (Taylor, 1992; Townsend, 2002).
Esta pesquisa ocorreu em dois anos e foram entrevistados quinze (15) usuários
de um CAPS-II da cidade de São Paulo - Brasil. Estes usuários, sujeitos da
pesquisa, foram escolhidos juntamente com a equipe de profissionais do serviço,
através de conversas e reuniões. Foram incluídos os usuários que apresentaram
interesse, tiveram disponibilidade e condições gerais e clínicas para
participar. Já os usuários que não se interessaram e não tiveram
disponibilidade de participar, foram excluídos da pesquisa.
A coleta de dados foi iniciada com a construção do relacionamento interpessoal
profissional respeitando o tempo, a disponibilidade e o interesse do usuário
(Taylor, 1992; Townsend, 2002; Saraceno, Asioli & Tognoni, 2001). Durante
os encontros aplicou-se um instrumento que avalia questões objetivas e
subjetivas divido em campos onde é possível: investigar e listar possíveis
patologias e alterações do processo saúde-doença e saúde-doença mental;
descrever histórica de adoecimento psiquiátrico e físico; registrar condições
clínicas gerais: queixas, sintomas e sinais de injúria ou alterações
significativas; registrar o uso de medicamentos para tratamento; registrar o
apoio familiar ou de rede social no cuidado da saúde física e mental do
usuário, dentre outras questões. Além da entrevista com os usuários foram
realizadas conversas com os profissionais do serviço, a fim de completar as
informações necessárias.
Esta pesquisa foi aprovada nos Comitês de Ética da Secretaria Municipal da
Saúde de São Paulo e da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo,
conforme CAAE: 24675013.0.0000.5392.
Neste artigo daremos destaque para as questões objetivas avaliadas ao longo das
entrevistas.
Resultados
De acordo com os dados coletados, 86,6% dos entrevistados possuíam como
diagnóstico médico a esquizofrenia. Está informação já era esperada pois o
campo de pesquisa se trava de um CAPS-II, serviço que oferece atendimento a
pacientes com transtornos mentais severos e persistentes.
As alterações físicas que mais se destacaram entre os sujeitos foram: a)
sobrepeso: 46,6% dos sujeitos apresentavam Índice de Massa Corporal (IMC) >
25,0 e < 30, segundo índices e pontos de corte para adultos entre 20 anos e <
60 anos pelo Ministério da Saúde, Brasil (2006); b) medida da circunferência da
cintura (CC) elevada: 73,3% dos entrevistados apresentavam aumento desta
medida, considerou-se como ponto de corte: 94 cm para o sexo masculino e 80 cm
para o sexo feminino (Ferreira, Valente, Gonçalves-Sila & Sichieri, 2006).
Na avaliação clínica feita observaram-se sinais, sintomas e queixas, que foram:
obstipação, tontura, desconforto respiratório, acatisia, tremor, cefaleia. O
tabagismo foi citado por 40% dos usuários e o uso de álcool foi observado em
alguns sujeitos.
Foi analisado o uso de psicofármacos e percebeu-se que 100% dos sujeitos faziam
uso destes medicamentos. Os antipsicóticos e anticolinérgicos/
antiparkinsonianos foram os que mais apareceram.
Em relação ao apoio social e familiar, todos possuem o CAPS como uma rede de
apoio e a maioria dos sujeitos podem contar com o apoio de familiares.
Os resultados encontrados foram apresentados na figura a seguir (Figura_1) onde
estão esquematizadas as alterações encontradas e as categorias que estas
compuseram. Nesta figura está demonstrado também a implicação dos psicofármacos
junto a outras alterações, como a obesidade abdominal e o sobrepeso.
Discussão
Para uma melhor análise dos dados coletados, foram agrupadas informações
similares e mais relevantes e estão apresentadas em três categorias: distúrbios
do peso e metabólico junto ao transtorno mental; psicofármacos e seus efeitos
colaterais e; álcool e tabaco.
Distúrbios do Peso e Metabólicos junto ao Transtorno Mental
Dieta hipercalórica e estilo de vida sedentário é visto em todas as populações
nos dias de hoje e em pacientes psiquiátricos merece uma atenção maior devido a
alta taxa de mortalidade desta população em relação a população em geral
(Sampaio & Caetano, 2006; Gomes, 2012). O sobrepeso e obesidade abdominal
acomete estes indivíduos, que geralmente já consomem uma dieta rica em
gorduras, pobre em fibras e praticam menos exercício físico. O aumento da
ingestão de alimentos calóricos, ricos em carboidratos pode ser explicado
devido a seu efeito ansiolítico pela redução de níveis hormonais (Gomes, 2012).
Uma epidemia de obesidade é observada na população atual e existe uma alta
prevalência em pacientes com transtornos mental. O ganho de peso leva a outras
complicações clínicas e comorbidades, como a síndrome metabólica, hipertensão,
cardiopatias (Gomes, 2012). A síndrome metabólica consiste em pelo menos três
das alterações: obesidade abdominal, triglicerídeos elevados, elevação da
pressão arterial e resistência a insulina (Gomes, 2012).
Outra alteração importante foi a obesidade abdominal (aumento da CC) a qual é
utilizada pois aponta a gordura visceral do sujeito e é considerada como fator
de risco para diversas morbidades, principalmente hipertensão, diabetes,
dislipidemia e síndrome metabólica (Olinto, Nácul, Dias-da-Costa, Gigante,
Menezes & Macedo, 2006). Os usuários estão sujeitos a desenvolver (ou já
possuem) a síndrome metabólica. Esta doença tem grande relação com os
antipsicóticos, pois estes podem aumentar o peso e trazer outros efeitos
adversos, conforme figura (Figura_1) apresentada em Resultados, demonstrando a
implicação dos psicofármacos no distúrbio do peso e metabólicos.
Psicofármacos e seus Efeitos Colaterais
Os psicofármacos mais utilizados foram os antipsicóticos e os
antiparkinsonianos/anticolinérgicos seguido dos ansiolíticos. Os antipsicóticos
causam efeitos extrapiramidais como efeito colateral mais frequente. Esses
efeitos aumentam com elevadas doses de antipsicóticos. Dentre os principais
tipos de efeitos extrapiramidais estão: acatisia e síndrome parkinsonóide, os
quais foram citados pelos sujeitos entrevistados. Esta síndrome é caracterizada
por tremor fino, rigidez muscular, marcha em bloco e para o tratamento é
utilizado um medicamento anticolinérgico, fármaco em uso pela metade dos
sujeitos entrevistados (Louzã Neto, Motta, Wang & Elkis, 2007).
O ganho de peso é um efeito colateral dos antipsicóticos de primeira e segunda
geração e é comumente visto em pacientes com transtorno mental (Louzã Neto,
Motta, Wang & Elkis, 2007). Os ansiolíticos apresentam como efeito
colateral a sonolência, cansaço e redução da atenção, porém também podem
ocorrer ganho de peso.
Outros sintomas apresentados pelos sujeitos podem ser relacionados a efeitos
colaterais de medicamentos, como por exemplo a obstipação e tontura.
Álcool e Tabaco
O tabagismo e o etilismo foram citados por alguns sujeitos. A dependência de
nicotina apresenta alta prevalência em pacientes com transtornos psiquiátricos,
o que pode interferir no humor, ansiedade e a cognição. O tabagismo pode também
interferir no mecanismo de ação de medicamentos, especialmente, os
psicotrópicos (Malbergier & Oliveira, 2005).
Em sua maioria, pacientes esquizofrênicos (maioria dos sujeitos entrevistados)
fazem uso do tabaco. Esta substância está relacionada a diminuição dos efeitos
extrapiramidais causados pelos antipsicóticos, este efeito é provavelmente
relacionado com a ação da nicotina no sistema dopaminérgico (Malbergier &
Oliveira, 2005).
O uso de álcool pode trazer sinais e sintomas que podem confundir com os dos
transtornos mentais, como alucinações, ansiedade e depressão. O tratamento
costuma ser mais difícil com esta comorbidade devido a dificuldade de
permanecer em abstinência e também devido as interações com os psicofármacos
(Alves, Kessler & Ratto, 2004).
Conclusões
Em suma, observamos que a comorbidade está presente em todos os pacientes
entrevistados, mesmo que de forma discreta, com apenas sinais e sintomas. Sabe-
se que são altas as taxas de comorbidades em pessoas com transtorno mental
(Júnior & Cordás, 2002). Estes pacientes já possuem expectativa de vida
baixa devido ao diagnóstico principal do transtorno mental e ainda apresentam
maior predisposição para desenvolver outras doenças.
As comorbidades apresentadas neste trabalho (obesidade, obesidade abdominal,
tabagismo e etilismo) podem ser justificadas devido à vários fatores como
estilo de vida, medicamentos e o próprio transtorno mental. O uso de
medicamento por longos períodos e altas doses aumentam a chance de desenvolver
efeitos colaterais e, consequentemente, comorbidades.
A prática de atividade física e a alimentação saudável, são ações de difícil
investimento para estes usuários. O incentivo à promoção da saúde para estes
pacientes deve ser maior, devido também a sua maior taxa de morbi-mortalidade.
Incentivo à pratica de exercícios físicos, dieta saudável e acesso a
conhecimentos sobre saúde e doença devem ser feitos por todos os profissionais
que trabalham na área de saúde mental.
Implicações para a Prática Clínica
Para o cuidado de pacientes psiquiátricos é primordial o conhecimento a fundo
do histórico de saúde e das condições de vida deles para que se possa
desenvolver um planejamento terapêutico adequado, visando não só o transtorno
mental, mas sim o paciente como um todo. Juntos, usuário e equipe de saúde, são
capazes de planejar cuidados pensando na integralidade do indivíduo,
estipulando ações que contemplem o biopsicossocial.
Os resultados deste estudo e a literatura utilizada apontam a prevalência de
comorbidades em pacientes psiquiátricos. O conhecimento destas doenças é
importante para o planejamento de um projeto terapêutico efetivo.
O cuidado e a prevenção são atividades do trabalho dos profissionais da saúde
mental e podem estar diretamente relacionados à algumas comorbidades
apresentadas pelos usuários. Por isto da importância do estudo sobre
comorbidades em usuários de serviços de saúde mental.