Profilaxia da enxaqueca: opiniões, motivos e expetativas dos doentes
CLUBE DE LEITURA
Profilaxia da enxaqueca: opiniões, motivos e expetativas dos doentes
Diana Carneiro
Interna de Medicina Geral e Familiar, Unidade de Saúde Familiar Horizonte –
Unidade Local de Saúde de Matosinhos
Dekker F, Knuistingh Neven A, Andriesse B, Kernick D, Reis R, Ferrari MD, et
al. Prophylactic treatment of migraine; the patient’s view, a qualitative
study. BMC Fam Pract 2012 Mar 9; 13: 13
Introdução
A abordagem da enxaqueca integra a agenda de grande parte das consultas em
cuidados de saúde primários. A profilaxia da enxaqueca pode, em cerca de 50%
dos doentes, reduzir as crises para metade. Assim, é de extrema importância a
negociação da profilaxia da enxaqueca nos doentes com sintomatologia de longa
duração.
A maioria dos estudos realizados até à data teve como objetivo avaliar a
eficácia desta profilaxia no alívio dos sintomas. Estudos qualitativos
desenhados para conhecer a opinião, os motivos e as expetativas dos doentes
ainda não foram realizados.
Objetivo
Explorar as opiniões, os motivos e as expectativas dos doentes com o
diagnóstico de enxaqueca sobre a profilaxia.
Métodos
Realizou-se um estudo qualitativo com a formação de três grupos focais na
discussão sobre a profilaxia da enxaqueca. Os doentes foram selecionados de
forma a representar uma ampla gama de experiências. O moderador de cada grupo
utilizou um guia estruturado que englobou uma fase inicial de introdução e
familiarização entre os participantes, seguida de uma fase de discussão sobre
as experiências vivenciadas. Foram também discutidas as vantagens e
desvantagens da profilaxia da enxaqueca e as experiências e as atitudes dos
doentes perante a profilaxia.
Resultados
Cinco principais categorias de discussão surgiram nos grupos focais:
1 – Atitudes preventivas para aliviar os sintomas
A maioria dos doentes referiu a preocupação em alterar os hábitos alimentares e
em manter um ritmo circadiano estável. Estas intervenções foram muitas vezes
apoiadas pelos seus próprios médicos. Para muitos doentes o tratamento
profilático foi o último recurso.
“No início, quando a minha enxaqueca foi diagnosticada, evitei todo o tipo de
comida, tomei vitaminas e outros suplementos, fiz terapias de relaxamento…”
2 – Satisfação com o tratamento atual
A satisfação com o tratamento atual está relacionada com a severidade das
crises e com o impacto destas na vida diária dos doentes. Mais de metade dos
doentes manifestou a necessidade de reduzir o número de medicamentos. Grande
parte dos doentes refere que já sabe quando a crise está a chegar e que toma a
medicação antes da crise se instalar, considerando esta atitude a profilaxia da
enxaqueca.
“Eu já tomei tantos medicamentos… quando sinto a dor de cabeça a chegar, tomo a
medicação e isso é que é prevenção para mim.”
3 – Iniciativa em iniciar a profilaxia da enxaqueca
Apesar da maioria dos doentes ainda não ter iniciado a profilaxia, estes
reconhecem a sua existência. A discussão em grupo não permitiu chegar a um
consenso sobre quem deve tomar a iniciativa de iniciar a profilaxia. Cerca de
metade dos doentes espera uma atitude ativa do seu médico, a outra metade
(doentes de regiões urbanas e com maior grau académico) prefere tomar a
iniciativa autonomamente.
Todos os doentes esperam que os seus médicos sejam capazes de discutir as
vantagens e desvantagens da profilaxia e que esta discussão tenha lugar no
momento apropriado. Esta discussão não ocorre necessariamente na data do
diagnóstico, mas quando o doente tem uma vivência mais real (maior número de
crises e maior impacto destas na vida diária) e quando já não é capaz de lidar
com as crises.
«A minha dor de cabeça era tão severa que fui ao médico… não podia fazer mais
nada além de chorar. Ele tentou confortar-me e ofereceu-me a profilaxia…»
4 – Avaliação das vantagens e desvantagens da profilaxia
Na perspetiva dos doentes, a decisão de iniciar a profilaxia é complexa. As
desvantagens referidas pelos doentes foram: o medo dos efeitos secundários, de
se tornarem doentes crónicos, das reações das pessoas mais próximas e de
ficarem dependentes; e a baixa confiança no cumprimento e na eficácia da
medicação.
“Se eu tomar medicamentos todos os dias, sentirei que sou um doente.”
Os benefícios mencionados pelos doentes foram: a redução do impacto negativo na
vida diária, a facilidade de administração, os ganhos em saúde, a redução da
medicação das crises, a menor pressão das pessoas mais próximas e a maior
disponibilidade para cuidar das pessoas por quem são responsáveis.
5 – A relação estabelecida com o médico
Os doentes referem que, para equacionarem o início da profilaxia, é necessário
terem uma relação de confiança e de longa duração com os seus médicos.
Consideram que é necessário um conhecimento amplo para que os médicos
compreendam o peso que suportam. Mencionam que é importante sentirem que os
seus sentimentos estão a ser tidos em consideração.
“Existe sempre o medo da próxima crise e o meu médico de família parece
compreender esse sentimento.”
Conclusão
Os aspetos mencionados pelos doentes para iniciar a profilaxia da enxaqueca
podem ser divididos em três categorias: os aspetos relacionados com o doente,
com o médico e com a doença. O conhecimento do conteúdo de cada uma destas
categorias é crucial para a abordagem da enxaqueca na prática clínica diária.
É primordial conhecer os medos e as expetativas dos doentes, isto é, como o
doente vive a sua doença: medo dos efeitos secundários da medicação, medo de se
tornarem doentes crónicos, medo das reações das pessoas mais próximas, medo de
ficarem dependentes da medicação, reduzida confiança no cumprimento e na
eficácia da medicação. Os doentes valorizam os seguintes aspetos nos médicos:
construção de uma relação de confiança e de longa duração, transmissão de
informação sobre as vantagens e desvantagens quando pedido pelos doentes e
perceção do melhor momento para a abordagem da profilaxia. O impacto da
enxaqueca na vida diária de cada doente, o número e a severidade das crises de
cada doente e a eficácia do tratamento das crises em cada doente, são
caraterísticas relacionadas com o processo da doença.
Este estudo confirma a complexidade do processo de decisão. Cria-se assim uma
ambivalência entre a necessidade de reduzir o impacto negativo na vida diária e
o conhecimento dos medos verbalizados pelos doentes. Assim, torna-se
fundamental explorar e lidar com as emoções individuais.
COMENTÁRIO
A Organização Mundial de Saúde classifica a enxaqueca entre as 20 principais
causas de perda de anos de vida saudável por ano, a nível mundial.1 A maioria
dos estudos demonstrou que os doentes com enxaqueca são prejudicados nas suas
atividade diárias e que a sua qualidade de vida é inferior comparativamente com
a população geral e com outras doenças crónicas.2,3 A elevada prevalência da
enxaqueca, particularmente durante a idade de grande produtividade e
responsabilidade, explica porque é que a enxaqueca afeta a sociedade.2
A profilaxia da enxaqueca reduz a frequência das crises e a medicação efetuada.
Além disso, aumenta a capacidade funcional dos doentes nas suas atividades
diárias, melhorando a qualidade de vida e, consequentemente, reduzindo o número
de faltas ao trabalho.2 As normas de orientação clínica diferem relativamente
às recomendações sobre quando iniciar a profilaxia da enxaqueca. A preferência
do doente é, certamente o fator mais importante nesta decisão.4
Dos estudos qualitativos realizados sobre a enxaqueca, apenas um se debruçou
sobre o tratamento profilático. Nesse estudo, foram incluídos apenas doentes
que já tinham iniciado a profilaxia da enxaqueca, aos quais foi aplicado um
questionário dirigido aos efeitos secundários e à escolha da medicação.5 Assim,
este é o primeiro estudo qualitativo que aborda a forma como os doentes encaram
a profilaxia da enxaqueca.
A abordagem da vivência da doença e da dolência implica que o clínico aceite e
reconheça a diferença entre estes dois conceitos e assuma que cuidar da pessoa
na sua globalidade implica ter em consideração estas duas dimensões.6,7 O
conhecimento do sofrimento do doente exige conhecer as suas experiências
individuais e subjetivas: sentimentos, pensamentos, emoções, receios e impacto
na sua vida diária.6,7
O tratamento ideal depende da valorização que o doente faz dos diferentes
resultados e riscos de cada procedimento. O processo de decisão combina a
perícia do clínico (informação clínica, resultados de estudos, experiência em
cuidar doentes semelhantes) e as preferências do doente na seleção da melhor
opção (o doente traz as suas circunstâncias de vida únicas, os seus valores e
prioridades).
Assim constrói-se a relação médico-doente, a pedra basilar da Medicina Geral e
Familiar. A construção desta relação necessita da aquisição, por parte do
clínico, de uma posição de conforto na exploração das emoções (os sentimentos,
as crenças e o impacto) e na resposta às emoções (validar, respeitar, suportar,
refletir, fazer aliança).
Torna-se fundamental o desenvolvimento de mais estudos qualitativos que
explorem os sentimentos dos doentes acerca das suas doenças e do seu
tratamento, permitindo assim que, na construção da relação médico-doente, o
clínico consiga ir ao encontro da agenda do doente.