Tratamento médico da tromboflebite superficial do membro inferior: heparina ou
anti-inflamatórios?
Introdução
A tromboflebite superficial (TS) é uma condição clínica frequente, que pode ser
motivo de consulta na prática diária. Estima-se que tenha uma incidência entre
3 a 11%, com maior frequência no sexo feminino e afectando predominantemente os
membros inferiores (MI).1 É uma entidade clínica pouco estudada, com escassas
referências em Portugal, existindo controvérsia sobre a sua abordagem
terapêutica. O termo tromboflebite é largamente utilizado na literatura e
frequentemente refere-se à inflamação venosa, mesmo quando não é certa a
presença de trombose.2 Os autores optaram por utilizar este termo e conceito ao
longo do trabalho de revisão.
Considerada durante muito tempo uma entidade de limitada relevância clínica,
estudos recentes reconhecem a importância da TS em relação com as suas
possíveis complicações [probabilidade de evolução para trombose venosa profunda
(TVP), com o subsequente risco acrescido de tromboembolia pulmonar (TEP)], e
como pista diagnóstica de outras patologias.2 Num estudo em que foram incluídos
844 doentes com TS sintomática dos MI com pelo menos 5 cm de extensão avaliada
ecograficamente, 210 (24,9%) também tinham TVP ou TEP sintomática. Nos
restantes casos, 58 (10,2%) desenvolveram complicações tromboembólicas (3 com
TEP, 15 com TVP, 18 com progressão de TS e 10 com recorrência de TS).3
O risco de TVP é mais elevado quando a TS afecta o território proximal da veia
safena interna, diagnosticando-se por ecografia em 6 a 53 % dos casos.4 A
evidência científica estabelece uma associação entre TS e tromboembolismo
venoso, destacando-se factores de risco semelhantes: veias varicosas,
imobilização prolongada, pós-operatório, traumatismo, gravidez e puerpério,
neoplasias malignas, trombofilias, doenças auto-imunes, história prévia de
tromboembolismo venoso, contraceptivos orais, terapêutica de substituição
hormonal e obesidade.5 A incidência de TVP é menor nas TS associadas a varizes
comparativamente às associadas a outras patologias (3-20% versus 44-60%,
respectivamente).6 Os factores de risco para extensão da TS ao sistema venoso
profundo são a proximidade anatómica do trombo com este sistema e factores de
risco médicos para TVP.4
O quadro clínico da TS é facilmente suspeitável: dor localizada e, ao exame
objectivo, apresentação de rubor, calor, um cordão venoso doloroso palpável,
por vezes edema e eritema circundantes.7 O tratamento desta patologia tem como
objectivos principais o alívio da sintomatologia dolorosa local, a prevenção do
desenvolvimento de TVP e TEP e a diminuição das recorrências.5
A controvérsia na escolha do tratamento da TS levou à elaboração desta revisão,
com o objectivo de determinar qual a melhor opção terapêutica: anti-
inflamatórios não esteróides (AINE) ou heparina de baixo peso molecular (HBPM).
Métodos
Procedeu-se à pesquisa nas bases de dados National Guideline Clearinghouse,
Guidelines Finder, Canadian Medical Association Practice Guidelines InfoBase,
The Cochrane Library, Clinical Evidence, DARE, UpToDate e Pubmed, e ainda nos
sites da Direcção-Geral de Saúde, Associação Portuguesa de Médicos de Medicina
Geral e Familiar, MGFamiliar.net e no Índex de Revistas Médicas Portuguesas,
utilizando os termos MeSH: venous thrombosis; heparin, low-molecular-weight e
anti-inflammatory agents; e os descritores portugueses: «trombose venosa» e
«tromboflebite». Limitou-se a pesquisa a normas de orientação clínica (NOC),
sistemas computorizados de apoio à decisão (SCAD), revisões sistemáticas (RS) e
ensaios clínicos aelatorizados (ECA), publicados entre 01/01/2008 a 20/05/2011.
Os critérios utilizados para a inclusão dos artigos nesta revisão foram os
seguintes:
• População: indivíduos observados em ambulatório com o diagnóstico de TS no
MI.
• Intervenção: Terapêutica com HBPM e/ou AINE.
• Outcomes: Alívio sintomático e prevenção de complicações.
Como critérios de exclusão foram definidos os seguintes: artigos repetidos; TVP
isolada; TS em contexto de internamento; TS em zonas que não o MI; TS em idade
pediátrica; TS na grávida; TS complicada ou associada a condições patológicas
que aumentam o risco, nomeadamente neoplasias, coagulopatias e período pós-
cirúrgico; profilaxia de TS.
Os autores adoptaram a escala SORT para classificação do nível de evidência/
força de recomendação.8
Resultados
Na pesquisa efectuada foram encontrados 215 artigos, dos quais 4 cumpriram os
critérios de inclusão: uma NOC, um SCAD, uma RS e um ECA.
A NOC publicada pelo American College of Chest Physicians9 em 2008 destaca, com
uma força de recomendação B (após conversão para a SORT), que o tratamento da
TS deve ser realizado com doses profilácticas ou intermédias de HBPM ou doses
intermédias de heparina não fraccionada (HNF) por um período mínimo de 4
semanas.* Como alternativa, com uma menor força de recomendação (SOR C), é
sugerida a terapêutica durante 4 semanas com antagonistas da vitamina K (AVK)
(INR alvo 2-3), associando HBPM ou HNF nos primeiros 5 dias. É desaconselhada a
associação de AINE à terapêutica anticoagulante, com força de recomendação B.
Sem atribuição de um grau de recomendação, a NOC sugere que, em caso de TS
menos grave (quando o segmento venoso afectado é curto em extensão ou distante
da junção safenofemoral), não será necessário o tratamento anticoagulante,
indicando o uso de AINE por via oral ou tópica.
A revisão do UpToDate (Quadro_I), de 2011, aponta para a eficácia dos AINE no
alívio da dor associada à inflamação venosa e diminuição significativa da
extensão e recorrência da TS em comparação com o placebo. Nenhum AINE mostrou,
de forma consistente, ser mais eficaz do que outro no tratamento da TS.
Demonstra também haver evidência da maior eficácia da HBPM na redução da
extensão do trombo e da recorrência de TS comparativamente ao placebo, não
tendo sido encontradas diferenças significativas na eficácia comparativa de
doses fixas ou de doses ajustadas ao peso de nadroparina, ou de alta dose
versus baixa dose de enoxaparina.
Esta revisão atribui força de recomendação B às seguintes orientações de
tratamento:
• Doentes com baixo risco de TVP: AINE como 1.a linha.
• Doentes com alto risco de TVP: Anticoagulação por 4 semanas. HBPM, HNF e AVK
mostraram eficácia semelhante.
• Trombo com extensão ao sistema venoso profundo: anticoagulação segundo
protocolo de tratamento de TVP.
A meta-análise encontrada (Quadro_II), da Cochrane e de 2007, revista em 2010,
incluiu 24 estudos, com uma amostra total de 2469 casos com TS. Os seus
resultados destacam que tanto a HBPM como os AINE reduzem significativamente a
progressão da TS e a sua recorrência em cerca de 70% comparativamente ao
placebo. Em comparação com placebo e tratamento tópico, tanto os AINE como a
HBPM previnem com maior eficácia eventos tromboembólicos (ETE) e a extensão da
TS, e controlam os sintomas locais. A HBPM, quer em doses terapêuticas quer em
doses profilácticas, demonstrou igual redução da progressão da TS e prevenção
da sua recorrência num período de follow-up de 3 meses. Relativamente à
prevenção de ETE, durante o período de tratamento a dose terapêutica mostrou
melhor eficácia (77%) comparativamente à dose profilática (33%). Porém, esta
vantagem esbate-se após a suspensão da terapêutica. Ambas as terapêuticas (HBPM
e AINE) parecem apresentar eficácia e segurança semelhantes, destacando-se
apenas o facto da terapêutica com AINE triplicar a probabilidade de gastralgia
comparativamente ao placebo. É salientado o baixo nível de qualidade
metodológica da maioria dos ensaios clínicos, com necessidade de mais ECA para
apurar o papel dos AINE e da HBPM, as doses ideais e a duração do tratamento, e
até que ponto a terapêutica combinada pode ser mais eficaz que a terapêutica
isolada. Os autores sugerem a utilização de HBPM no tratamento da TS, por um
período mínimo de um mês (nível de evidência 2).
No ECA seleccionado foram incluídos 50 doentes diagnosticados com TS da veia
safena interna, aleatoriamente divididos em 2 grupos de 25, sendo que o
primeiro grupo foi medicado com HBPM e o segundo com HBPM associado a AINE
(Quadro_III).11 Ambos os tratamentos tiveram a duração de 10 dias, tendo sido
associado pantoprazol 40 mg id aos dois grupos para protecção gástrica. Dor,
hiperémia, sensibilidade local e tamanho do cordão palpável foram medidos e
comparados entre os dois grupos. Foi utilizada a escala visual analógica para
medição de parâmetros antes e após o tratamento. No segundo grupo houve uma
redução estatisticamente significativa da dor e sensibilidade local. Não foram
detectadas complicações no primeiro grupo, tendo sido detectado um caso de
hematúria no segundo grupo. Os autores deste ECA concluem que os AINE podem ser
associados a HBPM para tratamento da TS com melhor alívio da sintomatologia e
sugerem que esta terapêutica combinada deve ser considerada no tratamento da
TS. Contudo, admitem a necessidade de mais estudos (nível de evidência 2).
Conclusões
O limite temporal de três anos utilizado na pesquisa foi definido em relação
com a data da última actualização da NOC (2008). O processo de revisão
realizado pelos autores da NOC não determinou alterações nas recomendações
principais no tratamento da TS.12 Este facto revela a escassa investigação
nesta área. A integração desta informação foi analisada e justificou a escolha
de um limite temporal mais curto.
A revisão realizada permite perceber que a abordagem terapêutica da TS ainda é
controversa. A HBPM e os AINE mostraram-se eficazes na melhoria dos sintomas
dos doentes com TS em comparação com placebo e tratamento tópico isolado,
reduzindo a incidência de recorrências e complicações, e estão recomendados
como primeira linha de tratamento (força de recomendação B). Nos casos
identificados como tendo factores de risco para complicações, a HBPM em doses
intermédias/terapêuticas por um período de pelo menos 4 semanas é opção de
primeira linha (força de recomendação B). No entanto, a evidência científica
que suporta esta afirmação não é muito robusta, sendo que a maioria dos estudos
apresenta baixa qualidade e não são claras qual a dosagem e duração terapêutica
mais adequadas, nem qual o possível benefício da combinação de HBPM e AINE. É
discutível a opção por um destes fármacos ou mesmo a sua utilização simultânea.
Neste sentido, devem ser realizados ECA com amostras de maiores dimensões e de
melhor qualidade metodológica, não apenas utilizando critérios baseados em
sinais e sintomas, mas também avaliando o perfil de segurança desta associação
em termos de fenómenos hemorrágicos e/ou complicações gástricas, assim como
avaliar a recorrência da TS e complicações a longo prazo. Na perspectiva dos
autores, a escala visual analógica, utilizada no ECA incluído nesta revisão, é
um instrumento pouco indicado para avaliação da hiperémia, sensibilidade local
e tamanho do cordão palpável, pois condiciona subjectividade do examinador na
avaliação de sinais objectivos. Os autores sugerem que um método de
classificação mais objectivo em termos de caracterização será mais indicado. A
título de exemplo, o recurso a medição objectiva do tamanho do cordão venoso
palpável e da zona de hiperémia poderá ser preconizado.
Em conclusão, são necessários ECA de elevada qualidade, com enfoque na
comparação entre AINE e HBPM, para melhor esclarecer as evidências supracitadas
e estabelecer forças de recomendação mais consistentes. Adicionalmente, a opção
por AINE ou HBPM ou a sua utilização simultânea, assim como a determinação das
doses e da duração ideais do tratamento, dependerá da realização de ECA que
contemplem de modo sistematizado estas variáveis. A melhor caracterização da TS
no que diz respeito à sua prevalência em Portugal e o esclarecimento de
consequências clínicas relacionadas permitirão reconhecer o grau de importância
clínica desta condição. Investigações futuras deverão também equacionar
questões relacionadas com o custo-eficácia das opções terapêuticas referidas.