Cancro do colo do útero: um novo paradigma no rastreio?
CLUBE DE LEITURA
Cancro do colo do útero: um novo paradigma no rastreio?
Cervical cancer screening: a new paradigm?
Raquel Meireles
Interna de 2.o Ano de Medicina Geral e Familiar, Centro de Saúde de Bragança I
– Sé
Saslow D, Solomon D, Lawson HW, Killackey M, Kulasingam SL, Cain J, et al.
American Cancer Society, American Society for Colposcopy and Cervical
Pathology, and American Society for Clinical Pathology screening guidelines for
the prevention and early detection of cervical cancer. CA Cancer J Clin 2012
May-Jun; 62 (3): 147-72.
Introdução
O rastreio do cancro do colo do útero (CCU) conseguiu diminuir com sucesso a
sua incidência. Este artigo actualiza as normas de orientação clínica (NOC) da
American Cancer Society (ACS).
Enquadramento
O rastreio através de colpocitologia reduziu acentuadamente a mortalidade por
carcinoma de células escamosas, que engloba 80-90% do total de cancros
cervicais. Essa redução na mortalidade deve-se a um aumento da detecção precoce
de cancro invasivo e à detecção e tratamento de lesões pré-invasivas.
A infecção persistente com serotipos de vírus do papiloma humano (VPH) de alto
risco é necessária para o desenvolvimento de CCU e do seu precursor, a lesão
pré-maligna designada neoplasia intraepitelial cervical (NIC) de grau 3. A
quase totalidade dos casos de CCU é positiva para VPH, sendo os serotipos 16 e
18 os mais carcinogénicos, responsáveis por cerca de 70% dos casos.
Cerca de 90% das infecções por VPH são transitórias, tornando-se indetectáveis
em um a dois anos. As mulheres cujas infecções persistem são as que estão em
risco significativo de desenvolver lesões pré-cancerosas. Uma estratégia de
rastreio óptima deve identificar os percursores que possam evoluir para cancros
invasivos e evitar a detecção e tratamento desnecessário de infecções
transitórias por VPH.
Uma crescente compreensão da associação entre o VPH e o risco de cancro levou
ao desenvolvimento de testes moleculares para o VPH de alto risco. Estes testes
podem prever mais adequadamente do que a citologia as mulheres que irão
desenvolver NIC de grau 3 ou lesões mais graves nos próximos 5 a 15 anos. A
incorporação de testes de VPH em estratégias de rastreio tem o potencial de
permitir um aumento da detecção e aumentar o tempo dos intervalos de rastreio.
No desenvolvimento da presente revisão, considerou-se o risco-benefício do
rastreio em diferentes idades e modalidades de rastreio.
Métodos
Foi efectuada uma revisão sistemática da evidência disponível por um grupo de
peritos nas principais bases de dados da literatura. Incluíram-se estudos de
rastreio para as mulheres em geral, excluindo-se grupos de risco. Foram
pesquisados artigos de 1995 a Julho de 2011. Utilizou-se a escala GRADE para a
avaliação do nível de evidência.
Posteriormente, os artigos seleccionados foram disponibilizados para 6 grupos
de trabalho, cada um deles debruçando-se sobre um tópico diferente. Foram
abordados 6 tópicos: intervalos óptimos de rastreio; estratégias de rastreio
para as mulheres com 30 ou mais anos; orientação de resultados discordantes
entre citologia e teste de VPH; saída de mulheres do rastreio; impacto da
vacinação contra o VPH no rastreio futuro; utilidade potencial do rastreio
molecular, nomeadamente teste de VPH como rastreio primário.
Após a revisão, os resultados preliminares foram divulgados para discussão
pública.
Resultados
O intervalo de rastreio deve ter em conta a idade e o historial clínico da
mulher. Assim, são feitas as seguintes recomendações:
* Mulheres com idade inferior a 21 anos não devem fazer rastreio;
* Mulheres com idades compreendidas entre os 21 e os 29 anos devem fazer o
rastreio apenas com citologia de 3 em 3 anos. Não se recomenda a utilização do
teste do VPH, independentemente de ser feito de forma isolada ou acompanhado de
citologia, dado que existe alta prevalência de VPH nesta faixa etária. Não
existe evidência que justifique intervalos maiores, mesmo na presença de duas
ou mais citologias prévias negativas;
* Mulheres com idades entre os 30 e os 65 anos devem fazer o rastreio do cancro
do colo do útero de preferência com citologia e teste de VPH (“co-teste”) a
cada 5 anos. A adição do teste de VPH aumenta a identificação das mulheres com
carcinoma do colo do útero e seus precursores. No entanto, também se considera
aceitável o rastreio com citologia isolada a cada 3 anos. O rastreio «co-teste»
em intervalos menores que 3 anos aumenta o número de colposcopias e
tratamentos, devido a resultados equívocos de citologias;
* Mulheres com VPH positivo e citologia negativa não devem ser encaminhadas
directamente para colposcopia. Devem repetir o «co-teste» após 12 meses e fazer
imediatamente o genótipo específico para o VPH 16 ou VPH 16/18. Se o «co-teste»
for positivo em ambos (VPH positivo e citologia com lesão intraepitelial
escamosa de baixo grau – LSIL – ou mais grave), deve fazer-se colposcopia; caso
seja negativo em ambos (VPH negativo e citologia com células atípicas de
significado indeterminado – ASCUS – ou negativa), a mulher deve retomar o
rastreio de rotina. Após a determinação do genótipo do VPH, se VPH 16 positivo
ou VPH 16 positivo/VPH 18 positivo, deve fazer-se colposcopia; caso seja VPH 16
negativo ou VPH 16 negativo/VPH 18 negativo, deve repetir-se o «co-teste» após
12 meses. Não devem ser testados outros genótipos diferentes do 16 e 18;
* Mulheres com VPH negativo e citologia com ASCUS devem continuar com o
rastreio de acordo com as orientações específicas para a sua idade;
* Mulheres com idade superior a 65 anos com evidência de rastreio prévio
negativo e sem antecedentes de NIC de grau 2 nos últimos 20 anos não devem ser
rastreadas. Assim que o rastreio é interrompido não deve ser retomado;
* Mulheres com idade superior a 65 anos e história prévia de NIC de grau 2, NIC
de grau 3 ou adenocarcinoma in situ, após regressão espontânea ou tratamento,
devem continuar o rastreio por pelo menos 20 anos após a detecção, mesmo que
ultrapassem os 65 anos de idade;
* Mulheres histerectomizadas e sem história prévia de NIC de grau 2 não devem
ser rastreadas para cancro vaginal, uma vez que uma citologia vaginal anormal
raramente tem importância clínica.
COMENTÁRIO
Conforme referido no artigo, a metodologia usada na elaboração destas
recomendações representa uma etapa de transição no desenvolvimento de NOC para
a ACS. A principal diferença residiu na utilização dos princípios do processo
GRADE, de forma a avaliar mais formalmente a evidência disponível e incorporar
a qualidade desta evidência nas recomendações. Uma vantagem da utilização deste
processo é que facilita a identificação de necessidades-chave de pesquisa.
Numa primeira análise, a força de recomendação deste artigo parece ser baixa,
já que é baseada num consenso de peritos. Todavia, estas recomendações têm por
base uma revisão sistemática extensa da bibliografia existente. Assim, poderão
ter uma força de evidência bastante superior.
A possibilidade deste rastreio combinado parece ser vantajosa nos Estados
Unidos da América, onde cerca de metade dos casos de CCU ocorrem em mulheres
que nunca foram rastreadas, que vivem com fracos recursos médicos ou
financeiros, pelo que o «co-teste» lhes confere um maior intervalo entre
rastreios.
Em Portugal, o Plano Nacional de Prevenção e Controlo das Doenças Oncológicas
2007/2010 recomenda a realização do rastreio do CCU por citologia cervico-
vaginal nas mulheres entre os 25 e os 60 anos, com um intervalo de rastreio de
3 anos após dois exames anuais negativos.1 Não é feita qualquer referência ao
rastreio utilizando o VPH. Também a Associação Portuguesa de Medicina Geral e
Familiar recomenda o rastreio do CCU exclusivamente por citologia cervical em
mulheres que tenham iniciado a sua vida sexual e com colo uterino. Deve ser
aplicado 2 a 3 anos após o início da vida sexual, cada 3 anos, após duas
citologias anuais consecutivas normais.2 O teste de ADN do VPH reserva-se para
situações especiais. Por seu lado, também a Sociedade Portuguesa de
Ginecologia, em concordância com as NOC europeias, recomenda que o rastreio
organizado deve continuar a recorrer à citologia como teste preferencial do
rastreio. Deve ser iniciado entre os 25 e os 30 anos e terminar aos 65 anos,
com uma periodicidade de 3 a 5 anos.3
Sendo a infecção cervical pelo VPH o principal factor etiológico do CCU, seria
importante a realização de estudos de custo-benefício de forma a ponderar a
inclusão do teste do ADN do HPV no rastreio do CCU em Portugal. Por outro lado,
dada a incorporação da vacina do VPH no Plano Nacional de Vacinação, importará
avaliar a mortalidade por CCU e o impacto financeiro desta medida, de forma a
melhor adequar as estratégias de rastreio.