Eficácia dos cerumenolíticos: uma revisão baseada na evidência para Cuidados
Primários
INTRODUÇÃO
O cerúmen faz parte dos mecanismos externos de defesa do ouvido. Em algumas
pessoas, existe produção excessiva, podendo endurecer e secar no canal auditivo
externo (CAE), ficando deste modo impactado. Quando tal acontece pode ter
importantes implicações clínicas no bem-estar geral do paciente, causando
motivos frequentes de procura dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), como
diminuição da audição, prurido, dor, zumbido, vertigem, otite externa ou até
mesmo tosse crónica, visto que o CAE é inervado pelo ramo auricular do nervo
vago e o cerúmen impactado pode estimulá-lo.1,2
O cerúmen impactado afeta aproximadamente 1 em cada 20 adultos e 1 em cada 3
idosos3 e cerca de 4% dos doentes vai consultar o Médico de Família (MF) por
este motivo.2
Muitas vezes, a perda auditiva não é reconhecida como um problema nos cuidados
de saúde. A hipoacúsia em adultos mais velhos é maioritariamente
neurossensorial e devido à presbiacusia. Nos idosos, a impactação de cerúmen
pode ser causa de perda auditiva e está presente em cerca de 30% dos pacientes,
podendo ser tratada pelo médico de Cuidados Primários.4 Assim, realça-se a
importância nesta faixa etária, atendendo ao facto de que, pela diminuição da
acuidade auditiva, poderá haver consequentemente uma maior dificuldade
comunicacional e isolamento social1 e poderá ainda exacerbar ou contribuir para
o aparecimento de problemas de saúde mental, como depressão ou psicoses.5 Além
da sintomatologia, outro problema do cerúmen impactado é o de dificultar a
otoscopia e a observação da membrana timpânica. No entanto, é através da
otoscopia que é feito o seu diagnóstico, com a observação direta de cerúmen no
CAE.
A remoção do cerúmen pode ser realizada de forma manual, mediante irrigação ou
com uso de cerumenolíticos. O uso dos cotonetes deve ser desaconselhado, uma
vez que pode levar à deslocação do cerúmen para o fundo do CAE, levando à sua
impactação. A via manual é realizada com um gancho ou por aspiração, pode ser
dolorosa e não dispondo do material e experiência necessária torna-se difícil a
sua realização ao nível dos CSP. O mesmo acontece com a irrigação que também
não é prática habitual. Estas manobras associam-se ainda ao risco de perfuração
da membrana timpânica entre outras complicações, tais como vertigem, zumbido e
risco de infeção com a irrigação e hemorragia e laceração do CAE com a remoção
manual. Os efeitos laterais possíveis com os cerumenolíticos são reação
alérgica, otite externa, otalgia, perda transitória de audição e tonturas.3
Assim, os cerumenolíticos serão uma opção segura e o método mais acessível aos
Médicos de Família, atendendo a que os restantes métodos necessitam de treino e
equipamento adequado e por isso realizados maioritariamente por
Otorrinolaringologia. Alguns autores dividem-nos em 3 classes: à base de água
(atividade cerumenolítica); à base de óleo (com efeito de amolecimento) e não à
base de óleo nem à base água (Quadro_I).3,6 Os cerumenolíticos podem ainda ser
usados como adjuvante quando usada a irrigação, com o objetivo de a facilitar.
Atendendo a estes factos, o objetivo deste trabalho consistiu em rever a
evidência disponível sobre a eficácia do uso de cerumenolíticos na remoção do
cerúmen.
MÉTODOS
Foi realizada uma pesquisa sistemática em setembro de 2011 de Ensaios Clínicos
Controlados e Aleatorizados (ECA), Meta-Análises, Revisões Sistemáticas (RS) e
Normas de Orientação Clínica (NOC), publicados entre janeiro de 2000 e agosto
de 2011, em português e inglês, nas bases de dados Medline, Cochrane, National
Guideline Clearinghouse, NHS Evidence e Database of Abstracts of Reviews of
Effectiveness (DARE), utilizando as palavras-chave (termos MeSH) cerumen e
cerumenolytic agents.
Incluíram-se os estudos que avaliavam a eficácia do uso de cerumenolíticos na
remoção do cerúmen, quando comparados com outros cerumenolíticos ou nenhum
tratamento, em indivíduos adultos com cerúmen impactado. A eficácia do
cerumenolítico foi definida quer pela remoção do cerúmen (total ou parcial),
por redução do grau de oclusão ou visualização completa da membrana timpânica,
quer pela prevenção da irrigação.
Foram excluídos os artigos repetidos e aqueles que discordavam dos critérios de
inclusão definidos, nomeadamente aqueles que avaliavam exclusivamente o efeito
dos cerumenolíticos como precursores da irrigação.
A Strenght Of Recommendation Taxonomy da American Family Physician foi
utilizada para classificar a qualidade dos estudos e atribuir as forças da
recomendação.
RESULTADOS
De 132 artigos encontrados foram selecionadas 3 RS, 2 ECA e 3 NOC.
Revisões sistemáticas (RS) (Quadro_II)
Clegg et al7 incluíram 26 estudos na sua RS de 2010, fazendo comparações entre
16 cerumenolíticos e nenhum tratamento. Destes estudos, 22 eram ensaios
controlados e aleatorizados (ECA) e 4 eram ensaios clínicos controlados (ECC).
Os resultados avaliados foram: acuidade auditiva, limpeza adequada do cerúmen,
qualidade de vida, recorrência e necessidade de novo tratamento, efeitos
adversos e custo-efetividade. Foi demonstrado que os cerumenolíticos, quando
usados como tratamento único, são eficazes na remoção do cerúmen. Não foram
encontradas diferenças entre os vários métodos avaliados em termos de remoção
do cerúmen. O clorobutanol associado ao para-diclorobenzeno, o bicarbonato de
sódio, o azeite de oliva e a água mostraram-se mais eficazes que nenhum
tratamento, mas mantém-se incerto qual o agente específico mais eficaz. Pela
heterogeneidade dos estudos incluídos nesta RS quanto à população, intervenção
e resultados, foi-lhe atribuído um nível de evidência (NE) 2.
Os resultados da RS da Cochrane8 de 2009 foram globalmente inconclusivos. Dos 9
estudos incluídos, apenas 1 ECA, considerado de qualidade moderada por incluir
97 participantes (155 ouvidos) e apresentar dupla ocultação, fez a comparação
entre cerumenolíticos e nenhum tratamento, sugerindo que o uso de clorobutanol,
bicarbonato sódio ou água estéril é melhor que nenhum tratamento. Coloca-se
ainda a hipótese de que a solução salina poderá ter propriedades
cerumenolíticas. Os resultados foram estatisticamente significativos quando
avaliada a visualização completa da membrana timpânica. Quanto à prevenção do
recurso à irrigação, os resultados apenas foram estatisticamente significativos
a favor do clorobutanol associado ao para-diclorobenzeno quando comparado com
nenhum tratamento. Este mesmo ECA comparou cerumenolíticos com água estéril
como placebo, mas nenhum se mostrou mais eficaz na prevenção da necessidade de
irrigação ou na proporção de CAE completamente desobstruídos. Deste modo,
considerou-se a água um agente tão eficaz como os cerumenolíticos, com a
vantagem de ser barata e de fácil acesso. Os 9 ECA compararam vários
cerumenolíticos entre si e a maioria das comparações não mostrou diferenças. Os
estudos incluídos nesta RS são heterogéneos e na generalidade de baixa a
moderada qualidade, pelo que se atribuiu um NE 2.
Uma RS de Hand and Harvey (2004),6 incluiu 18 ECA e os resultados apresentados
estabeleceram a comparação entre as diferentes classes de cerumenolíticos
(Quadro_I). Demonstrou-se que preparações à base de água e à base de óleo têm
eficácia semelhante e são provavelmente mais eficazes do que nenhum tratamento.
Mas não se demonstraram vantagens de uma em detrimento da outra. Uma preparação
não à base de água ou de óleo pareceu ser superior a uma preparação à base de
óleo na remoção de cerúmen, mas esta foi confinada a um pequeno estudo e de
evidência fraca. Nesta RS foi ainda encontrada um associação estatisticamente
significativa entre o número de dias de tratamento e a eficácia na remoção de
cerúmen, sendo que 4 dias de tratamento foram mais eficazes (35%) que 3 dias
(19%) e que 1 dia (14%). Os estudos incluídos nesta RS apresentam uma qualidade
variável e com amostras pequenas, pelo que se atribuiu um NE 2.
Ensaios Controlados e Aleatorizados (ECA) (Quadro_III)
Um dos ECA incluídos, de 2010,1 apresenta uma amostra de 38 indivíduos (76
ouvidos) com idades compreendidas entre os 67 e 92 anos (média de idade de 78
anos). Neste estudo israelita foram avaliados três cerumenolíticos quanto aos
seus efeitos na redução da obstrução causada pelo cerúmen, através de uma
escala de 0 a 3, em que o zero equivale à ausência de oclusão, o 1 a uma
oclusão inferior a 50%, o 2 se a oclusão for superior a 50% e o 3 na oclusão
completa. Foi também utilizado um teste para avaliar a função cognitiva pós-
tratamento, como reflexo de melhoria na qualidade de vida (sensação de bem-
estar). A resolução da oclusão foi verificada em 38-54% dos ouvidos tratados,
mas apenas com óleo oliva associado a óleo menta e a óleo mineral foi observada
a resolução completa nos dois ouvidos. Não foram encontradas diferenças entre
os três cerumenolíticos na diminuição do grau de oclusão, mas foi demonstrado
que a remoção de cerúmen melhorou de forma estatisticamente significativa o
bem-estar do paciente. Este estudo verificou ainda que foi necessário
tratamento adicional em 46,2% dos indivíduos tratados com óleo oliva associado
a óleo menta e óleo mineral, 61,5% quando usado clorobutanol em associação com
diclorobenzeno e em 58,4% dos que receberam peróxido carbamida associado a
glicerina (sem diferenças estatisticamente significativas). Estes resultados
foram melhores do que os demonstrados noutros estudos, que reportavam esta
necessidade em 70-80% dos ouvidos tratados.1 Este ensaio clínico apresenta uma
amostra pequena pelo que foi classificado com um NE 2.
No outro estudo, de Caballero et al9 (2009), foram incluídos 89 pacientes, com
57,8 anos de média de idade, e foram comparados os efeitos de diferentes
cerumenolíticos entre si e com solução salina na visualização da membrana
timpânica. Foi conseguida uma visualização completa em 65,6% dos casos com
clorobutanol, em 55,2% com carbonato de potássio e em 42,9% com solução salina,
mas sem diferenças estatisticamente significativas quando comparados os
cerumenolíticos com a solução salina. Por se considerar que o resultado
avaliado não é orientado para o paciente, este ECA foi classificado com NE 3.
Normas de Orientação Clínica (NOC) (Quadro_IV)
Segundo as recomendações baseadas em evidência clínica de 2008 da American
Academy of Otolaryngology – Head and Neck Surgery Foundation,10 os clínicos
devem tratar o cerúmen impactado quando existe sintomatologia expressa pelo
paciente ou quando impede o exame clínico, atribuindo uma força de recomendação
B (após conversão para a SORT). Consideram os agentes cerumenolíticos uma opção
terapêutica, uma vez que se mostrou que o uso de gotas auriculares para remover
o cerúmen do ouvido afetado é melhor do que nenhum tratamento, mas com uma
força de recomendação C (após conversão para a SORT) por consistir numa opinião
baseada em estudos limitados. O mesmo se recomenda na guideline elaborada pela
University of Texas pelo Family Nurse Practitioner Program.11 Esta guideline
acrescenta que preparações à base de água e à base de óleo são igualmente
eficazes na limpeza de cerúmen e, quando comparadas, não é demonstrada qualquer
vantagem de uma preparação em detrimento da outra. Assim, nenhum tipo
específico de cerumenolítico pode ser recomendado em relação a outro, com uma
força de recomendação C, segundo a U.S. Preventive Services Task Force Ratings.
Por ser uma recomendação orientada para o paciente baseada em evidência
inconsistente e de qualidade limitada, após conversão para a SORT atribui-se
uma força de recomendação B. Na norma de orientação clínica elaborada pelo
Serviço Nacional de Saúde da Escócia12 sobre cuidados auriculares é recomendado
o uso de cerumenolíticos como tratamento de primeira linha, pois pode reduzir a
necessidade de outras intervenções. Considerando tratar-se de uma recomendação
baseada num consenso, atribui-se uma SOR C. Aconselham ainda um esquema
terapêutico adaptado às necessidades individuais de cada paciente.
CONCLUSÕES
A maioria dos artigos aponta para a eficácia dos cerumenolíticos na remoção do
cerúmen impactado quando comparados com nenhum tratamento, mas os dados são
inconclusivos quanto ao agente mais eficaz. Não foram encontradas diferenças
significativas entre cerumenolíticos nem quando comparados com solução salina
ou com água.
Assim, os cerumenolíticos são eficazes na remoção do cerúmen quando comparados
com nenhum tratamento (SOR B). Apesar de não haver evidência suficiente para
recomendar a utilização de um cerumenolítico em particular (SOR B), a remoção
do cerúmen pode melhorar o bem-estar do paciente, pelo que o Médico de Família
deve tratar o cerúmen impactado causador de sintomas. Não dispondo de
equipamento ou técnica a nível dos CSP que permita o uso de outros métodos, os
cerumenolíticos serão a opção mais viável, pelo que é importante a realização
de mais estudos, de qualidade metodológica elevada, com amostras maiores e,
principalmente, que sejam orientados para o paciente, avaliando-se a melhoria
sintomática. Será ainda necessário avaliar qual o agente mais eficaz na remoção
do cerúmen e determinar o efeito cerumenolítico da solução salina (ou água do
mar) com mais estudos que a comparem com nenhum tratamento.
Recomenda-se que o tratamento com cerumenolíticos não tenha uma duração
superior a 5 dias, uma vez que, não sendo conseguida a remoção completa do
cerúmen, a acumulação do agente em contacto com a membrana timpânica pode
causar irritação e predispor a infeção. Neste sentido, devem ser pesquisadas
infeções otológicas ativas antes de se prescrever este tipo de tratamento, pois
será uma contra-indicação para o seu uso. Neste sentido, é então importante
determinar qual o esquema terapêutico mais efetivo.
Em Portugal a reduzida oferta de cerumenolíticos disponíveis é outra
dificuldade, estando as opções limitadas a uma preparação de Clorobutanol
associado a Para-diclorobenzeno e a Benzocaína e à solução salina em spray.
Ainda assim, o uso de cerumenolíticos pelo Médico de Família, na sua prática
clínica diária, poderá evitar a referenciação aos cuidados secundários. Ao
minorizar-se a preocupação com tempos de espera e catalisando a rapidez no
tratamento, haverá um óbvio benefício de custo-efetividade e melhor satisfação
do paciente pela rápida resolução do seu problema.