Estatinas: de herói a vilão na diabetes?
CLUBE DE LEITURA
Estatinas: de herói a vilão na diabetes?
Statins: from hero to villain in diabetes?
Camila Mota Neves, Maria Cortês Ferreira
Internas Complementares de MGF, UCSP São Mamede
Navarese EP, Buffon A, Andreotti F, Kozinski M, Welton N, Fabiszak T, et al.
Meta-analysis of impact of different types and doses of statins on new-onset
diabetes mellitus. Am J Cardiol 2013 Apr 15; 111 (8): 1123-30.
Introdução
Múltiplos ensaios clínicos aleatorizados e controlados (ECAC) mostraram
resultados consistentes na redução da mortalidade cardiovascular com o uso de
estatinas, especialmente na população diabética. Contudo, apesar de
relativamente bem toleradas, 13 ECAC revelaram que, quando comparadas com o
placebo, parecem estar associadas a um maior risco de desenvolvimento de
diabetes mellitus (DM), sendo esse efeito, segundo outra meta-análise, dose-
dependente. Têm surgido algumas hipóteses sobre possíveis mecanismos para esta
associação, tais como: a indução de um aumento da resistência periférica à
insulina; a interação com as células β pancreáticas prejudicando a produção de
insulina; e alterações na sinalização da insulina no tecido periférico.
Por conseguinte, os autores deste artigo elaboraram uma meta-análise, na qual
foram rever os estudos publicados que avaliavam o impacto de diferentes tipos e
doses de estatinas no aparecimento de DM.
Métodos
Dois investigadores fizeram, de forma independente, uma pesquisa de ECAC que
relacionavam o uso de estatinas com o desenvolvimento de DM, publicados entre
novembro de 1994 e outubro de 2012. Os critérios de inclusão utilizados foram:
estudos realizados em humanos; ECAC comparando pacientes tratados com alta dose
de estatina versus (vs) placebo, ou alta dose vs dose moderada vs placebo. Os
fatores de exclusão foram: estudos com seguimento inferior a 1 ano ou com menos
de 1000 pacientes.
Resultados
Dos estudos encontrados, 17 ECAC cumpriam os critérios de inclusão, com um
total de 113 394 pacientes. Destes, 14 ECAC comparavam o uso de estatina com
placebo e 3 estudos comparavam estatina em alta dose, com dose moderada. Foram
consideradas altas doses 80 mg de atorvastatina, 40 mg de pravastatina, 20 mg
de rosuvastatina e 40 mg de sinvastatina e doses moderadas 10 mg de
atorvastatina, 10 a 20 mg de pravastatina e 10 mg de rosuvastatina.
A pravastatina 40 mg/dia foi associada ao menor risco de aparecimento de DM
(Odds Ratio (OR) 1,07 Intervalo de confiança (IC) 95% 0,86 – 1,30). Por outro
lado, a rosuvastatina 20 mg/dia foi associada a um aumento de 25% no risco de
desenvolvimento de DM em relação ao placebo (OR 1,25 IC 95% 0,82 – 1,90).
Relativamente ao uso de atorvastatina 80 mg/dia o impacto no risco relativo foi
intermédio (OR 1,15 IC 95% 0,90 – 1,50).
Nos resultados obtidos com o uso de dose moderada, manteve-se a rosuvastatina
com maior risco de desenvolvimento de DM (OR 1,10 IC 95% 0,78 – 1,58),
atorvastatina com risco intermédio (OR 1,04 IC 95% 0,74 – 1,48) e a
pravastatina com menor risco (OR 0,99 IC 95% 0,68 – 1,41).
Comparando altas doses dos fármacos com dose moderada do mesmo fármaco
verificou-se que o risco de desenvolver DM é maior com doses mais altas.
Os valores do índice de massa corporal e a percentagem de redução do
colesterol-LDL foram utilizados como co-variáveis, não se verificando
associação destes relativamente ao risco de desenvolvimento de diabetes.
Discussão
Trata-se de um estudo de grandes dimensões que indica um aumento do risco de
desenvolvimento de DM com diferentes tipos e doses de estatinas. A pravastatina
parece ser a estatina associada a um menor risco. Por outro lado, a
rosuvastatina foi associada a um maior risco de desenvolvimento de DM,
utilizando quer doses altas, quer moderadas.
Como fator limitante desta meta-análise destaca-se a utilização de intervalos
de confiança alargados, o que pode limitar as conclusões. No entanto, os
autores argumentam que os resultados obtidos foram consistentes em todos os
estudos analisados, pelo que os resultados serão significativos, apesar de
serem necessários ainda mais estudos.
Contudo, os autores concluem o estudo considerando que, à luz do conhecimento
atual, os benefícios desta terapêutica na redução do risco de eventos
cardiovasculares é significativo, excedendo qualquer risco eventual de
desenvolvimento de DM.
COMENTÁRIO
As estatinas são dos medicamentos mais prescritos em todo o mundo. Torna-se
portanto de extrema importância conhecer melhor a sua ação e potenciais
complicações do tratamento, pelo que as conclusões deste estudo não podem ser
menosprezadas.
Em 2012, na sequência de artigos que agitaram a comunidade científica ao
relacionar o tratamento com estatinas a um aumento de incidência de diabetes, a
Food and Drug Administration lançou um alerta em que refere a potencial
influência destas no perfil metabólico dos utilizadores.1
Nesta meta-análise há contudo algumas limitações importantes a salientar, que
levam a que os resultados tenham que ser analisados com precaução. Analisando
os valores de OR dos vários estudos, apesar de serem diferentes entre si,
representam um risco pequeno, requerendo intervalos de confiança amplos. Contra
este facto os autores argumentam que, apesar destas limitações, os resultados
são consistentes nos diferentes estudos analisados. Calculando o número
necessário para causar dano (number needed to harm – NNH) em pacientes tratados
com altas doses de estatinas, obteve-se o valor de 536, o que significa que
será necessário tratar 536 pacientes para que um deles desenvolva DM. Os ECAC
incluídos nesta meta-análise apresentam algumas diferenças, no que diz respeito
aos critérios utilizados para estabelecer o diagnóstico de DM, sendo que em
alguns estudos foi considerada apenas uma avaliação laboratorial de glicemia
alterada para estabelecer o diagnóstico. Há ainda a considerar o facto de
existirem múltiplos fatores de risco para o desenvolvimento de diabetes que não
foram avaliados, visto que os diferentes estudos analisados não tinham sido
desenhados à partida com o objetivo de provar esta associação.2-19
A definição de alta dose vs dose moderada merece também algumas considerações,
visto que não são explícitos os critérios utilizados e o momento do estudo em
que foram definidos.
Uma explicação que não foi tida em conta pelos autores para explicar o aumento
de risco de desenvolvimento de DM associada à terapêutica com estatinas prende-
se com o facto de estas, pela redução de eventos cardiovasculares, conduzirem a
um aumento da esperança média de vida, que isoladamente é um factor de risco
para o aumento de incidência de DM.
Em conclusão, torna-se imperioso desenvolver mais estudos, no sentido de
avaliar com maior segurança o risco real de desenvolvimento de DM com estes
fármacos, nomeadamente, estudos que comparem as diferentes estatinas entre si,
em detrimento da sua comparação com placebo. Ainda assim parece-nos que o risco
potencial de desenvolvimento de DM com o uso de estatinas tem que ser balançado
com o benefício na redução de risco cardiovascular.