A desaceleração do processo de Reforma dos Cuidados de Saúde Primários
EDITORIAL
A desaceleração do processo de Reforma dos Cuidados de Saúde Primários
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
Endereço_para_correspondência | Dirección_para_correspondencia | Correspondence
Todos temos vindo a sentir que o processo de reforma dos Cuidados de Saúde
Primários está a desacelerar, como se estivesse prestes a ser suspenso, por
falta de liderança, de ideologia ou de recursos.
No entanto, a implementação das Unidades de Saúde Familiar (USF) foi a única
referência positiva inserida no Memorando da Troika, na área da eficiência no
sector da saúde.1
Apesar de a tónica ser colocada "no reforço dos serviços de cuidados de
saúde primários, de modo a continuar a redução do recurso desnecessário a
consultas de especialidade e às urgências e de modo a melhorar a coordenação
dos cuidados, através de: i. aumento do número das Unidades de Saúde Familiares
(USF) contratualizadas com Administrações Regionais de Saúde (ARS), continuando
a recorrer a uma combinação de pagamento de salários e de pagamentos baseados
no desempenho", as USF em modelo A que já obtiveram parecer positivo da
Equipa Regional de Apoio (ERA) para passagem a modelo B continuam a aguardar,
em vão, a recompensa pelo esforço efectuado, consubstanciado pelo adiar sine
die da assinatura da carta de compromisso com as ARS e/ou Unidades Locais de
Saúde (ULS).
Isto depois de estas USF já terem sido submetidas a um controlo extremamente
rigoroso de qualidade, eficiência e desempenho, através de grelhas
sucessivamente mais exigentes, que as colocam num patamar praticamente
sobreponível às USF modelo B, mas sem a retribuição por desempenho inerente.
Em Março de 2013, conforme legislado, foi emitido um Despacho conjunto dos
Ministérios das Finanças e da Saúde,2 estabelecendo o número de USF a
constituir, no corrente ano. Nesse despacho, é referido "que as USF têm
vindo a contribuir de forma significativa para a melhoria da acessibilidade, da
cobertura assistencial, da eficiência económica e, sobretudo, da qualidade
efetiva dos cuidados de saúde prestados à população, considera-se
imprescindível o reforço do modelo de USF."2
No entanto, são apontados limites máximos ao invés de serem recomendados
números mínimos para as novas USF a criar (69), e a transitar de modelo (20).2
Desde o pico de 2009, em que houve a entrada em funcionamento de 71 novas USF,
esse valor diminuiu nos anos seguintes, para 47, 42 e 36.3 No ano de 2013, até
Setembro, apenas 17 USF entraram em funcionamento, quando a média foi de 48 por
ano, nos 7 anos anteriores, e a recomendação do despacho conjunto seria de 69
novas USF. Houve, portanto, diminuição nos últimos anos, quando as expectativas
e necessidades previam um aumento.
Neste momento, há diversas USF a aguardar a passagem a modelo B, já com parecer
técnico da ERA emitido. No Norte, onde este modelo é mais prevalente, são 8 que
aguardam homologação e 8 que estão em candidatura. Um número equivalente de USF
passou a modelo B em 2013, mas todas referentes a pareceres emitidos em 2012.
De alguns lados, estranhamente, algumas das vozes que explicitamente apoiaram e
desenvolveram a filosofia da Reforma proposta pela Missão para os Cuidados de
Saúde Primários (MCSP) e levaram à implementação no terreno das USF insinuam
agora que afinal ela não parece ser assim tão custo-efectiva, que é possível
fazer o mesmo ou talvez ainda mais, com modelos de Unidades de Saúde que
consideravam anteriormente menos desenvolvidos por terem menor grau de
maturidade organizacional e nível de desempenho Esta forma de análise, pouco
sustentada por estudos de viabilidade económica ou de outra natureza técnico-
científica, é contrária aos princípios fundamentais defendidos pela MCSP, ao
que a Troika recomenda1 e àquilo que o Governo de Portugal, por esta via de
intervenção externa, é aconselhado a reforçar.
Os dados de estudos de viabilidade económica e de custo-efectividade deste
modelo em Portugal são escassos e na sua maioria produzidos pelas próprias USF.
Um estudo profundo, alargado e isento seria necessário para reforçar
inequivocamente uma linha de orientação.
Em Maio de 2013, foi apresentado no Encontro Nacional das USF, em Lisboa, o
estudo realizado pela Associação Nacional de USF em parceria com a
Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). No entanto, que se saiba,
estranhamente, este estudo ainda não foi publicado. No seu artigo
"Trabalhar melhor – o Exemplo das USF"4, João Rodrigues comenta
que, segundo os resultados deste estudo, o modelo das USF tem um impacto
positivo em termos de acessibilidade às consultas médicas em geral, e em
particular às consultas de Planeamento Familiar, bem como nas taxas de
cobertura dos rastreios de cancro da mama e colo-rectal. Para além destes
indicadores, o modelo USF associa-se a um incremento da vigilância de doentes
diabéticos e hipertensos, condicionando avultadas poupanças em medicamentos e
meios complementares de diagnóstico prescritos.
Os resultados deste estudo demonstram o valor do modelo USF através dos
resultados obtidos, nas áreas do acesso, do desempenho, da qualidade e da
eficiência, significativamente melhores do que os alcançados pelas unidades
tradicionais, destacando-se sobretudo o acesso geral, o acesso a cuidados
domiciliários, vigilância da doença crónica e oncológica, precocidade na
vigilância da grávida e recém-nascido e eficiência económica.4
Esta posição é corroborada por André Biscaia, médico de Família e doutorado em
políticas de saúde e desenvolvimento, na sua entrevista à Revista da Ordem dos
Médicos,5 em que comenta a existência de evidência robusta de que as USF, em
particular o seu modelo B, mais exigente, com maior autonomia e melhores
resultados, fomentam a qualidade, facilitam o acesso e desenvolvem a
racionalidade na prescrição, constituindo também importantes centros de
formação e de investigação.5
Apesar dos bons indícios e dos resultados concretos, parece haver um impasse
por parte da tutela em decidir o que pretende - avançar com a reforma desenhada
pela MCSP ou pelo contrário interromper esta reforma e apresentar outro modelo?
Parece haver um pensamento contraditório acerca do que os Ministérios da Saúde
e das Finanças esperam das USF (cada vez mais empenho, qualidade, autonomia e
rigor) e aquilo que as ARS e ULS estão dispostas a dar (cada vez menos
autonomia, cada vez menos recursos, protelar do pressuposto e necessário
pagamento por desempenho).
Esta ambiguidade nas intenções e paralisia na acção está a tornar-se
insustentável e as equipas que estão no terreno e que lutam por se organizar e
desenvolver desmotivam-se, cansadas de perseguir objectivos demasiado
ambiciosos e desgastantes, sem qualquer incentivo.
Desta forma, dadas as grandes exigências que o modelo B condiciona, o retorno
das USF que aguardam homologação após parecer positivo da ERA a uma prática
clínica com menores pressões nos objectivos de contratualização e mais tempo
para garantir outro tipo de qualidade de cuidados, não centrados nos actuais
indicadores de saúde, com mais tempo para outras tarefas assistenciais,
actualmente não contratualizadas e que foram, em alguns casos, inevitavelmente
sendo colocadas em segundo plano, pode ser bastante adequado e apelativo. Seria
o retorno de várias Unidades que aspiravam à transição prevista pela Reforma a
modelos menos desenvolvidos, seguramente menos retribuídos, mas que podem
conferir aos profissionais garantias de menores pressões a nível de cumprimento
de objectivos, menos responsabilidades organizacionais, ou seja, outro tipo de
qualidade de vida e outra forma de satisfação profissional, já que os
pressupostos do contrato não estão a ser garantidos e que o modelo das UCSP
também tem de ser acarinhado e demonstra obter resultados satisfatórios.6
Claro que, idealmente, deveríamos ter uma generalização dos incentivos em toda
a área dos cuidados primários e, logo que possível, a todo o Serviço Nacional
de Saúde, tal como afirma o actual Secretário de Estado, Leal da Costa, em
entrevista recente.6
Depois de tecer estas considerações acerca da falta de incentivo à
implementação e desenvolvimento das USF, que não premeia o esforço de quem se
tem empenhado no que lhe foi demandado, o que é completamente contrário ao que
está recomendado pela actual conjectura, resta-me salientar que, após uma longa
jornada iniciada em 2005, que mesmo tendo levantado dúvidas e questões,
demonstrou ser caminho bem construído, com ganhos em saúde, aumento da
satisfação e da autonomia dos profissionais e em algumas áreas inclusive com
aumento da satisfação dos utentes, seria de esperar que a Reforma tomasse um
rumo seguro, sustentado e sustentável. Porquê este impasse ou este retrocesso?
Se há provas de que este não é o melhor caminho, que alguém o diga claramente e
tenha a coragem de mostrar e propor que há um caminho melhor.