Saúde Mental: obstáculos e expectativas sentidos pelo médico de família
Introdução
Os distúrbios mentais são actualmente considerados um problema mundial e
afectam todos os países, sociedades e grupos etários, com elevados custos
sócio-económicos (cerca de 12% do total de anos de vida ajustados por
incapacidade perdidos e 1% dos gastos totais em saúde).1 Diversos factores
genéticos, biológicos, sociais e ambientais são hoje reconhecidos na sua
origem, mas, até meados do século XX, os doentes com patologia psiquiátrica
sofriam em silêncio, sujeitos a discriminação, exclusão e estigma.1 Em 2001, a
Organização Mundial de Saúde, sob o lema "Cuidar sim, excluir não",
dedicou-se a avaliar o quadro da Saúde Mental no mundo e encontrou altas taxas
de morbilidade e mortalidade associadas: 70 milhões de doentes sofrem de
dependência do álcool, 24 milhões sofrem de esquizofrenia, 10 a 20 milhões
tentaram suicídio e 1 milhão comete-o anualmente, sendo a principal causa de
morte entre os jovens na maioria dos países desenvolvidos. Uma em cada quatro
pessoas será afectada por um transtorno mental na sua vida.1 Prevê-se que em
2020 as doenças psiquiátricas sejam a segunda maior causa de gastos em saúde a
nível mundial.1
Em Portugal, as doenças psiquiátricas constam dos motivos de consulta mais
frequentes nos Cuidados de Saúde Primários (CSP), com uma prevalência de cerca
de 50%, encontrando-se metade destes doentes acompanhados exclusivamente pelo
médico de família (MF).2
Existem inúmeros factores relacionados com o doente, o médico e a organização
institucional que podem contribuir para um sub-diagnóstico e um sub-tratamento
da patologia psiquiátrica.3,4,5,6 O MF, ao cuidar do doente inserido numa
família e numa comunidade, encontra-se numa posição privilegiada para
identificar e tratar doentes com patologia psiquiátrica. No entanto, são muitas
as dificuldades sentidas pelo MF na abordagem deste tipo de patologia.7,8 Tanto
quanto os Investigadores sabem, a nível nacional não existe ainda nenhum estudo
deste âmbito, que conste em alguma publicação indexada, razão pela qual
consideram importante a sua realização, de modo a reorganizar, em colaboração
com outros profissionais da área da saúde mental,9 estratégias de melhoria
contínua da abordagem e seguimento destas patologias nos CSP.
Objectivos
O presente estudo tem como principais objectivos identificar obstáculos e
expectativas sentidos pelos MF dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS)
Grande Porto VII – Gaia e Grande Porto VIII – Espinho/Gaia.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional transversal e descritivo entre Julho e
Novembro de 2011, nos ACeS Grande Porto VII – Gaia e Grande Porto VIII –
Espinho/Gaia. O facto de ter sido utilizado um questionário não validado numa
amostra de conveniência fez com que os autores optassem por realizar um estudo
descritivo, pois um estudo analítico iria estar associado a diversos viéses.
Futuramente, utilizando outro tipo de questionário e uma amostra aleatória,
talvez seja possível elaborar um estudo analítico que obtenha resultados mais
fidedignos e extensíveis a outras populações.
A população estudada foi o conjunto dos MF, com base numa amostra não aleatória
de conveniência que compreende os MF dos ACeS acima enunciados.
Foram excluídos do estudo os médicos ausentes da Unidade de Saúde Familiar
(USF) ou da Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) durante o
período de recolha de dados, que decorreu entre 15 de Setembro e 15 de Outubro
de 2011, e os questionários que não cumpriam as regras de preenchimento
enunciados no questionário, nomeadamente a escolha de mais do que uma opção
como resposta às diferentes questões, assim como a ausência de anonimato.
As variáveis dependentes estudadas consistiram nos obstáculos na abordagem da
patologia psiquiátrica, avaliados através das questões 1-12 do questionário
distribuído, nas expectativas quanto à necessidade de apoio profissionais de
saúde, nomeadamente apoio de Psicologia, Nutrição ou Assistente Social na
abordagem da patologia psiquiátrica (questão E2 e E2.1), assim como nas
expectativas quanto a uma melhoria da interacção entre psiquiatras e MF e de
que forma isso poderia ser realizado, via telefónica, postal, electrónica ou
reuniões periódicas (questão E3 e E3.1) e nas expectativas quanto à elaboração
de protocolos de referenciação aos Cuidados Secundários de Saúde (CSS) (questão
E1 e E1.1). As variáveis independentes foram a idade, género, número de anos de
especialidade, formação em saúde mental e existência de consulta de
consultadoria de Psiquiatria regular na unidade de saúde. (Anexo_1)
Procedeu-se à recolha de informação, por meio de um questionário de auto-
preenchimento, previamente submetido a teste piloto, desenvolvido pelos
Investigadores e com o consentimento por escrito, livre e esclarecido dos
participantes. O teste piloto foi realizado em duas Unidades Funcionais do ACeS
Grande Porto VI - Porto Oriental, tendo sido respondido por 12 médicos. Essas
respostas levaram à reformulação e simplificação de algumas questões. O estudo
foi avaliado pelos ACeS Grande Porto VII – Gaia e Grande Porto VIII – Espinho/
Gaia e Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde (ARS) Norte.
O questionário foi entregue pessoalmente pelos Investigadores aos Coordenadores
das respectivas USF/UCSP. Os dados foram recolhidos num envelope não
identificado, destinado exclusivamente ao estudo em questão, e foram
codificados e registados em base de dados informática – software Excel® 2010.
Obtiveram-se resultados descritivos da amostra (caracterização da amostra
quanto ao género, idade, anos de especialidade e formação pós-graduada) e das
variáveis dependentes acima descritas.
O protocolo deste trabalho foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Ética
para a Saúde da ARS Norte, cujo Parecer n.o 90/2011 foi emitido no dia 9 de
Setembro de 2011. Previamente, o protocolo foi igualmente aprovado pelos ACeS
envolvidos.
Resultados
Dos 178 questionários distribuídos, incluíram-se no estudo 131, o que traduziu
uma taxa de resposta de 73,6%.
A maioria dos respondedores (65%) era do género feminino e as idades situavam-
se entre os 30 e os 64 anos, com predomínio do grupo etário dos 55 aos 59 anos
(n=52).
Quanto ao número de anos de especialidade, verificou-se um pico entre os 25 e
os 30 anos (n=43). A formação pós-graduada em Saúde Mental foi referida por 53%
dos MF.
Em relação aos obstáculos sentidos pelos MF na abordagem da Patologia Mental, o
espaço físico e recursos disponíveis no local de trabalho foram considerados
por 60% dos médicos inquiridos como raramente ou nunca constituem um obstáculo
à sua prática clínica. No entanto, em relação ao tempo disponível na consulta
programada para abordar a patologia psiquiátrica, 63% considerou que nunca ou
raramente era adequado. No que respeita ao tempo de consulta não programada,
79% dos médicos considerou que o tempo nunca ou raramente era suficiente
(Figura_1).
1. O espaço físico e recursos disponíveis no seu local de trabalho são
obstáculos à abordagem da patologia psiquiátrica?
2. Considera adequado o tempo de consulta programada para abordar a patologia
psiquiátrica?
2.1. Considera adequado o tempo de consulta não programada para abordar a
patologia psiquiátrica?
Constatou-se que o conhecimento sobre escalas de avaliação psiquiátrica ou
guidelines era considerado ocasionalmente ou frequentemente útil por 72% e 67%
dos MF respectivamente (Figura_2).
3. O seu conhecimento de escalas de avaliação de patologia psiquiátrica é útil
na sua abordagem?
4. O seu conhecimento de guidelines sobre patologia psiquiátrica é útil na sua
abordagem?
Nas questões relativas à terapêutica não farmacológica, constatou-se que 35%
dos inquiridos considerava que o seu conhecimento nesta área nunca ou raramente
limitava a prática clínica. No entanto, 41% referiu que nunca ou raramente a
utilizava.
Relativamente à terapêutica farmacológica, 60% consideravam que o seu
conhecimento farmacológico nunca ou raramente limitava a abordagem da patologia
psiquiátrica e 73% utilizavam-na frequentemente (Figura_3).
5. O seu conhecimento sobre terapêuticas não farmacológicas específicas da
patologia psiquiátrica limita na sua abordagem?
5.1. Utiliza essas terapêuticas não farmacológicas no tratamento de patologias
psiquiátricas?
6. O seu conhecimento sobre terapêuticas farmacológicas específicas da
patologia psiquiátrica limita na sua abordagem?
6.1. Utiliza essas terapêuticas farmacológicas no tratamento de patologias
psiquiátricas?
Os critérios de referenciação foram considerados por 50% dos médicos como uma
ferramenta que facilitava frequentemente a abordagem desta patologia e 2% dos
inquiridos considerava que os critérios de referenciação nunca eram úteis.
Dos médicos inquiridos, 49% não tinham conhecimento da existência de critérios
de referenciação para a consulta de Psiquiatria, sendo que 97% destes médicos
gostariam que esses critérios fossem criados.
Mais de 90% dos MF gostariam que houvesse uma melhoria na articulação com
outros profissionais de saúde (psicólogo, nutricionista, psiquiatra ou
assistente social), com maior capacidade de atendimento e menor tempo de espera
até observação clínica, sendo que a melhoria na interacção com o psiquiatra foi
referida por 60%, com o psicólogo por 33%, com o nutricionista por 5% e com o
assistente social por 2% desses MF. A percentagem de MF que gostaria de uma
melhoria na interacção com o Serviço de Psiquiatria foi de 93%. Destes, 67%
preferia as reuniões periódicas, 19% a via electrónica, 11% o contacto
telefónico, 1% a via postal e 2% não responderam.
Dos médicos inquiridos, 80% referem não existir consultadoria na sua unidade
funcional, pelo que 96% destes gostariam que a mesma existisse, sendo
maioritariamente (73%) sob a forma de reuniões para discussão de casos.
Discussão
A taxa de resposta do corrente estudo foi de 73,6%, o que foi superior ao
encontrado noutros estudos, nomeadamente no estudo de Lennox et al,5 que foi de
58%.
Comparativamente ao estudo de Lennox et al,5 a maioria dos respondedores era do
género masculino (68%), o que contrasta com os 35% do estudo actual. Nesse
mesmo estudo a média de idades foi de 46,3 anos, enquanto no presente estudo,
apesar de diferenças metodológicas, 60% apresentavam idade superior a 50 anos.
O período de tempo em que os respondedores tinham prática clínica foi de 17,4
anos no estudo de Lennox et al,5 enquanto no estudo actual 54% tinham mais de
20 anos de prática clínica.
No que diz respeito à formação pós-graduada, 53% dos respondedores referiram
que a tinham, o que foi inferior aos 65% dos entrevistados do estudo de Lennox
et al.5
O tempo de consulta foi uma das barreiras detectadas no presente estudo, o que
foi de encontro ao obtido no estudo de Lennox et al,5 de Rijswijk et al6 e de
Barley et al.7 No estudo de Rijswijk et al,6 o tempo de consulta é considerado
como uma importante barreira na realização de anamnese, diagnóstico de
patologia mental e psico-educação. A necessidade de aumentar o tempo de
consulta, nomeadamente através da marcação de dois períodos consecutivos de
consulta ou através do aumento da frequência de consultas, foi uma das
expectativas para melhorar a abordagem da patologia psiquiátrica descrita no
estudo de Lennox et al.5
Em 93% dos respondedores do estudo de Lennox et al,5 a falta de formação/
experiência foi considerada um obstáculo na abordagem da patologia
psiquiátrica. Em relação a este ponto, Barley et al7 mostrou que os médicos
percepcionaram a falta de conhecimento na área da saúde mental referindo a
importância de mais formação. Smolders et al8 reportaram que a não adesão às
guidelines por falta de tempo foi considerada um obstáculo na abordagem da
patologia psiquiátrica. No presente estudo, 30% dos respondedores não
consideram as guidelines de actuação na patologia psiquiátrica úteis na prática
clínica. Segundo Addington et al,3 uma barreira importante para a implementação
de guidelines em CSP é o facto de muitas destas serem originalmente
desenvolvidas para aplicação em CSS.
No estudo de Rijswijk et al,6 os MF valorizam a importância do reconhecimento,
diagnóstico e tratamento da ansiedade e depressão a nível dos CSP. No entanto,
muitos manifestaram fortes reservas acerca da validade e utilidade dos
conceitos do DSM-IV em CSP. Neste mesmo estudo a resistência em relação ao uso
de antidepressivos, essencialmente a longo prazo, e o facto de que outros
distúrbios psicossociais e co-morbilidades mentais podem ofuscar as
características de depressão e ansiedade, eram vistos como barreiras para a
aplicação das guidelines.
No presente estudo, apenas 35% dos inquiridos considerava que o seu
conhecimento relativamente a terapêutica não farmacológica nunca ou raramente
limitava a prática clínica. No entanto, 41% referiu que nunca ou raramente a
utilizava, o que, segundo Rijswijk et al,6 pode ser explicado pela escassez de
tempo na abordagem de patologia psiquiátrica.
O estudo de Barley et al7 referiu que os médicos, apesar de reconhecerem a
eficácia dos fármacos, nem sempre seguiam as guidelines de prescrição e que
essas prescrições apresentavam doses infraterapêuticas ou eram utilizadas por
um curto período de tempo. Neste estudo, 60% dos entrevistadores não
consideraram como barreira o seu conhecimento em relação à terapêutica
farmacológica, sendo que 73% a utilizavam frequentemente, o que estava de
acordo como o estudo de Barley et al,7 no qual o recurso à terapêutica
farmacológica era a estratégia mais utilizada na abordagem da patologia
psiquiátrica, na medida em que muitas vezes era a sua única opção. Isto porque
ia de encontro às necessidades sentidas por mais de 90% dos respondedores do
actual estudo, que gostariam que existisse uma melhoria da resposta de outros
profissionais de saúde para abordarem a patologia psiquiátrica, nomeadamente,
com o psiquiatra (60%) e o psicólogo (33%) e da interacção com o Serviço de
Psiquiatria da área de referenciação (93%). Também no estudo de Lennox et al5
foi referida a necessidade de uma melhoria da comunicação e interacção com
outros profissionais de saúde. O actual estudo mostrou que a interacção com o
Serviço de Psiquiatria deveria ser realizada preferencialmente através de
reuniões periódicas.
No estudo de Lennox et al,5 85% dos entrevistados consideraram que a
comunicação na consulta era um dos obstáculos na abordagem da patologia
psiquiátrica, o que diferiu do presente estudo em que apenas 40% considerou a
comunicação na consulta como um obstáculo.
No estudo actual, 50% dos respondedores consideraram facilitador da abordagem
da patologia psiquiátrica a existência de critérios de referenciação, o que vai
de encontro com o estudo de Lennox et al,5 em que o conhecimento inadequado dos
entrevistadores em relação aos serviços/recursos disponíveis para referenciação
dos doentes com esta patologia era considerado uma limitação. O estudo de
Smolders et al8 referiu que a tendência para referenciar os doentes aos CSS era
mais evidente nos respondedores mais velhos, o que poderá ir de encontro à
tendência do presente estudo para os respondedores indicarem a referenciação
como um elemento facilitador. Para além disso, o presente estudo mostrou que
49% dos respondedores não tinham conhecimento da existência de critérios de
referenciação, tendo a maioria (97%) indicado a necessidade da sua criação.
A baixa colaboração do doente em ser referenciado aos CSS foi considerada um
obstáculo na abordagem da patologia psiquiátrica no estudo de Lennox et al,5 o
que foi referido por 47% dos respondedores do presente estudo. Quanto ao
estigma, Barley et al7 concluíram que este era uma barreira na abordagem da
patologia psiquiátrica, nomeadamente, em doentes mais velhos, tendência essa
que não se observou no actual estudo.
O financiamento insuficiente foi considerado um obstáculo na abordagem da
patologia psiquiátrica no estudo de Lennox et al,5 o que não se verificou no
presente estudo.
Quanto aos pontos fortes deste estudo, destaca-se o facto de ter sido aplicado
à totalidade da população em estudo com uma taxa de respostas elevada e ser o
primeiro estudo realizado nos ACeS referidos e com questões orientadas para a
interacção da articulação dos CSP com os CSS.
Quanto às limitações do presente estudo, salienta-se o facto de ter sido
aplicado um questionário não validado (risco de viés de medição) com perguntas
fechadas (risco de viés de informação). Apesar de ser um questionário anónimo,
o facto de se terem incluído todos os profissionais médicos do ACeS pode causar
algum viés de conveniência social. Por se tratar de um estudo retrospectivo,
poderá também ter havido um viés de memória. A utilização de uma amostra de
conveniência não permite que os resultados sejam extrapolados para outros ACeS
A utilização da totalidade dos MF do ACeS para responder ao questionário deveu-
se à pretensão que havia ao nível do Serviço de Psiquiatria em conhecer as
necessidades dessa população com recurso a escrutínio geral das suas opiniões,
pelo que foi utilizada essa metodologia em detrimento de outras técnicas
qualitativas.
Deste modo, os principais obstáculos encontrados na abordagem da patologia
psiquiátrica referiram-se ao tempo inadequado de consulta disponível, à
limitação no conhecimento de critérios de referenciação e de técnicas de
comunicação na consulta e a existência de alguma relutância dos doentes na
referenciação aos CSS. Destacaram-se como principais expectativas para melhorar
a abordagem da patologia psiquiátrica, a criação de critérios de referenciação,
a melhoria do acesso a psiquiatras e psicólogos, a melhoria da interacção dos
CSP com o Serviço de Psiquiatria da área de referenciação, nomeadamente,
através de consultadoria, sob a forma de reuniões com discussão de casos.
Futuramente haverá a necessidade da realização do estudo numa amostra aleatória
para possibilitar a extensão dos resultados ao nível nacional, a necessidade de
investir em formação pós-graduada e em encontros/cursos na área da Saúde Mental
e entender a patologia psiquiátrica como merecedora de um maior tempo de
consulta/seguimento mais regular em detrimento da patologia física.