Tratamento farmacológico da Paralisia Facial Periférica Idiopática: qual a
evidência?
Introdução
A Paralisia de Bell ou Paralisia Facial Periférica Idiopática (PFPI) consiste
numa paralisia ou parésia aguda do nervo facial, geralmente unilateral, de
causa desconhecida, sendo caracterizada por inflamação e edema deste nervo ao
longo do seu trajeto pelo ouvido interno, o que pode resultar numa compressão e
desmielinização axonal, com diminuição da irrigação sanguínea.1,2
A sua incidência anual situa-se entre os 20 e os 30 por 100.000, com um pico
por volta dos 20 a 40 anos, atingindo ambos os géneros em proporções
similares.1,3 Existe uma maior prevalência nas grávidas e em doentes com
diabetes mellitus, síndrome gripal ou outra patologia respiratória superior.1,4
No que concerne às etiologias suspeitas, consistem essencialmente na infeção
vírica (com o vírus herpes simples 1 tendo uma probabilidade de ser o causador
em 67% e havendo 33% de probabilidade de ocorrer uma reativação do vírus
varicela-zoster), isquemia vascular, alterações inflamatórias autoimunes ou
fatores hereditários.5
Sendo o diagnóstico essencialmente clínico, a recolha de uma boa história
clínica e um exame físico direcionado são imprescindíveis.
A PFPI apresenta-se clinicamente por incapacidade no encerramento do olho
afetado na totalidade, desvio inferior/incapacidade para levantar a
sobrancelha, diminuição do lacrimejo e/ou secreções salivares, parésia da boca
do lado afetado, com desvio e apagamento do sulco, dificuldade na alimentação
(sólidos e/ou líquidos – que muitas vezes referem escorregar pelo canto da
boca), otalgia ao redor ou atrás da orelha (estendendo-se muitas vezes à região
occipital/cervical), hiperacúsia com tolerância diminuída para níveis normais
de ruído, perturbação do paladar nos 2/3 anteriores da língua e stress
psicológico marcado com eventual restrição das atividades sociais.1,6 Por sua
vez, no exame físico será importante a distinção entre paralisia facial
periférica ou central. Na central, o movimento da região frontal é normal
bilateralmente, ou seja, esta zona é capaz de se "enrugar"; já na
periférica, um dos lados tem paralisia ou parésia em toda a face, incluindo a
região frontal do lado afetado.7 Uma otoscopia sem alterações significativas
será importante para o diagnóstico de PFPI.
A escala de House-Brackmann é uma das mais utilizadas na classificação das
PFPI,3 sendo uma das referidas por todas as meta-análises selecionadas para
esta revisão, além de permitir comparações com outras escalas e ter sido
adotada como padrão pela Facial Nerve Disorders Committee da American Academy
of Otolaryngology – Head and Neck Surgery.4,5
Nesta escala, os graus de disfunção são definidos como: 1 – normal; 2 – ligeira
(fraqueza apenas numa inspeção cuidadosa); 3 – moderada (óbvia, mas não
desfigurante); 4 – moderadamente severa (fraqueza óbvia e/ou assimetria
desfigurante); 5 – movimentos faciais praticamente não percetíveis; 6 –
ausência de movimentos.4
Os doentes não tratados podem ter uma recuperação completa em cerca de 70% dos
casos, mas, em até 30%, podem apresentar apenas uma recuperação incompleta do
controlo muscular facial, podendo adquirir desfiguração facial, dor facial e
distúrbios psicológicos.1,6 Também foi demonstrado que a severidade inicial
influencia o prognóstico.3
Deste modo, o objetivo do tratamento da PFPI consiste na prevenção das
sequelas, sendo que as hipóteses atuais de tratamento farmacológico englobam os
corticoides, antivíricos, ou a combinação de ambos.
Esta revisão tem como objetivo rever qual o tratamento farmacológico mais
eficaz, entre corticoides e/ou antivíricos, na melhoria clínica da Paralisia
Facial Periférica Idiopática.
Métodos
Foi efetuada uma pesquisa nas bases de dados da Cochrane Library, Pubmed,
National Guideline Clearinghouse, Dare, Tripdatabase, Bandolier, UpToDate e
Índex de Revistas Médicas Portuguesas. Foi feita a pesquisa de normas de
orientação clínica, meta-análises, artigos de revisão e ensaios clínicos
aleatorizados e controlados, publicadas entre janeiro de 2005 e abril de 2012,
em português e inglês, utilizando os termos Mesh: Glucocorticoids; Antiviral
Agents; Bell Palsy e Facial Paralysis. Estes termos foram utilizados utilizando
operados booleanos, através da combinação (Glucocorticoids AND/OR Antiviral
Agents) AND (Bell Palsy AND/OR Facial Paralysis), de modo a maximizar a
possibilidade de encontrar todos os artigos potencialmente relevantes.
Foram incluídos artigos que respeitavam os critérios: população alvo
constituída por indivíduos com o diagnóstico de PFPI, comparação do uso de
corticoide e/ou antivírico versus placebo ou comparação da associação de
corticoide e antivírico versus corticoide ou versus antivírico, sem restrições
relativas ao tempo de evolução/seguimento posteriores ao tratamento testado.
Foram excluídos os artigos que incluíssem: doentes imunodeprimidos, grávidas ou
lactentes, causas conhecidas de paralisia facial periférica (como a etiologia
vascular, traumática, neoplásica), paralisia facial central ou artigos
repetidos ou já alvo de avaliação em meta-análises/revisões sistemáticas.
Para avaliar a qualidade dos estudos e a força de recomendação, foi utilizada a
escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT) da American Family
Physician.8
Resultados
A pesquisa efetuada resultou na identificação de 181 artigos, tendo sido
excluídos 174 por estarem duplicados, por já terem sido incluídos no sistema ou
nas revisões sistemáticas ou por serem discordantes do objetivo e incluídos
sete, sendo todos estes meta-análises (Figura_1).
Associação de corticóides e antivíricos
Na meta-análise de Almeida JR, 2009, cujo objetivo consistia na comparação da
eficácia da associação de corticoides com antivíricos versus corticoides ou
antivíricos isolados no tratamento da PFPI, foram incluídos 18 ensaios clínicos
aleatorizados.3 Em três dos ensaios foi utilizada a associação de corticoides
com antivíricos, em oito dos ensaios os corticoides foram utilizados de forma
isolada, o mesmo acontecendo com os antivíricos em sete dos ensaios clínicos.
Os outcomes primários consistiam na recuperação da função motora do nervo
facial, tendo em conta a severidade inicial, a modalidade do tratamento, a dose
e o tempo de início de tratamento. Os outcomes secundários consistiam na
disfunção sincinética e autonómica e nos efeitos adversos. Foram utilizadas as
escalas House-Brackman, Facial Paralysis Reco-very Index, Sunnybrook Scale,
Yanagihara Score e Modified Adour Mechelse. Os resultados (Quadro_I) mostram
que os corticoides isolados permitiram uma recuperação satisfatória, com
redução do risco de disfunção sincinética e autonómica e sem aumento do número
de efeitos adversos. Os antivíricos isolados não foram associados a uma
recuperação satisfatória. A associação das duas classes farmacológicas, embora
permitisse uma maior taxa de recuperação comparativamente ao corticoide
isolado, não teve significado estatístico.
A meta-análise de Goudakos JK, 2009, incluiu cinco ensaios clínicos
aleatorizados, dos quais quatro puderam ser submetidos a meta-análise.5 Os
outcomes primários consistiam na recuperação completa da função motora do nervo
facial aos três, quatro, seis e nove meses (escala House-Brackmann). Os
resultados (Quadro_I) mostram uma taxa de recuperação motora semelhante entre
os dois grupos aos três, quatro, seis e nove meses. A análise por sub-grupos
não mostrou benefício no tratamento nos primeiros três dias após o início dos
sintomas versus o tratamento três dias ou mais após o início dos sintomas. A
adição do antivírico (aciclovir ou valaciclovir) ao tratamento com corticoide
não produziu benefício adicional.
Na meta-análise de Quant EC, 2009, foram incluídos seis ensaios clínicos
aleatorizados.9 No que diz respeito aos outcomes primários, consistiam na
proporção de doentes com, pelo menos, recuperação parcial no fim do intervalo
de seguimento (definido como House-Brackmann ≥ 2). Os resultados (Quadro_I)
mostram que não foi observado benefício da combinação de corticoide e
antivírico versus corticoide isolado. A análise por sub-grupos (tempo até ao
início do tratamento ou de seguimento, tipo de antivíricos) manteve as mesmas
conclusões.
Na meta-análise de van der Veen EL, 2012, foram incluídos oito ensaios clínicos
aleatorizados.11 Os outcomes primários consistiam na recuperação da função
motora do nervo facial (escala House-Brackman). Os resultados (Quadro_I)
mostram que existe um efeito benéfico, embora pequeno, na adição de antivírico
ao tratamento com corticoide na paralisia severa, mas sem significado
estatístico. Quanto aos efeitos secundários, foram encontrados entre 10 a 19%
com a utilização de corticoide isolado, e 13 a 20% com a associação de
corticoide e antivírico e consistiam geralmente em efeitos gastrointestinais ou
tonturas, sem necessidade de tratamento subsequente.
Na meta-análise de Numthavaj P, 2011, foram incluídos seis ensaios clínicos
aleatorizados.2 Cinco dos ensaios compararam a utilização da combinação de
antivírico e prednisolona com prednisolona ou antivírico isolados ou placebo,
enquanto o outro ensaio comparou a utilização de antivírico com prednisolona.
Em quatro dos ensaios o antivírico utilizado foi o aciclovir, enquanto noutros
dois estudos foi utilizado o valaciclovir. Os outcomes primários consistiam na
recuperação da função motora do nervo facial, definida de acordo com as
seguintes pontuações nas escalas de avaliação: House-Brackmann ≤ 2, Facial
Palsy Recovery Index ≥ 8, > 36 pontos no Yanagihara Score ou 100 na Sunnybrook
Scale. Os resultados (Quadro_I) mostraram que a prednisolona duplicou a taxa de
recuperação comparativamente à sua não utilização. O aciclovir ou valaciclovir
isolados apresentaram uma menor eficácia que a prednisolona isolada e tiveram
efeitos semelhantes ao placebo. A combinação do aciclovir ou valaciclovir com
prednisolona teve uma eficácia ligeiramente superior à prednisolona isolada,
embora esta diferença não atinja significado estatístico.
Corticóides isolados
Na meta-análise de Salinas RA, 2010 (Cochrane), foram incluídos oito ensaios
clínicos aleatorizados.10 Em todos os ensaios foi comparada a utilização de
corticoide com placebo, sendo maioritariamente utilizada a prednisolona. No que
diz respeito aos outcomes primários, consistiam na recuperação incompleta da
função motora facial após seis meses ou mais, no desenvolvimento de sincinesias
motoras ou disfunção autonómica (espasmo hemifacial) e nos efeitos adversos.
Foi utilizada a escala de House-Brackmann. Os resultados (Quadro_I) demonstram
um benefício significativo da utilização de corticoides na PFPI, assim como uma
redução significativa na sincinesia motora naqueles que receberam corticoides
versus placebo.
Antivíricos isolados
A meta-análise de Lockhart P, 2010 (Cochrane), incluiu sete ensaios clínicos
aleatorizados.4 Os outcomes primários consistiam na recuperação da função
motora do nervo facial no fim do estudo (escala de House-Brackmann), na
disfunção sincinética e autonómica e nos efeitos adversos. Os resultados
(Quadro_I) mostram que os antivíricos não foram mais eficazes do que o placebo
na recuperação completa da função motora do nervo facial. Foi
significativamente menos provável uma recuperação completa com os antivíricos
do que com os corticoides. Não houve diferença significativa entre os diversos
antivíricos utilizados e os efeitos adversos foram semelhantes entre as
diversas combinações terapêuticas em estudo.
Conclusões
Esta revisão apresenta algumas limitações: há que considerar a elevada
heterogeneidade e limitações metodológicas dos ensaios aleatorizados nos quais
as meta-análises se baseiam, nomeadamente no que concerne à definição de
outcomes, tempo de seguimento, tempo até à melhoria clínica, medicação e doses
usadas, estratificação da gravidade, análises post-hoc de subgrupos, bem como a
garantia da aleatorização e dupla ocultação adequadas. A limitação linguística
pode eventualmente levar à não inclusão de estudos potencialmente relevantes em
outras línguas.
Deve salientar-se, com base na evidência disponível, que existe um benefício
significativo, consistente e orientado para o doente, no uso de corticoides,
mas não na utilização isolada (ou em combinação) de antivíricos, os quais
comportam custos adicionais (sem um benefício comprovado). Adicionalmente deve-
se ter em conta o facto de que muitos dos doentes melhoram espontaneamente, de
forma completa. Por fim, as co-morbilidades do doente (com o seu possível
impacto nas interações e, portanto, efeitos secundários), assim como a
probabilidade do doente ter uma adesão terapêutica adequada perante um esquema
de combinação (que será mais complexo e dispendioso) não devem ser esquecidas.
Em suma, não existe evidência de um benefício clínico dos antivíricos,
isoladamente ou em associação com os corticoides, no tratamento da Paralisia de
Bell (Força de Recomendação B). Os corticoides continuam a ser o tratamento
farmacológico com a melhor evidência clínica, relevante para o doente,
disponível (Força de Recomendação A). Não foram encontrados efeitos adversos
significativos com a utilização de corticoides, antivíricos ou a sua
combinação.