O modelo Barcelona: um exame crítico
O modelo Barcelona: um exame crítico [i]
Patrícia Abrantes*
*Investigadora Auxiliar do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de
Lisboa. E-mail: patricia.abrantes@campus.ul.pt
O Modelo Barcelonaconstituiu um marco fundamental no urbanismo de finais do
século XX, seduzindo técnicos e políticos um pouco por todo o Mundo. Tal foi o
seu sucesso que foi replicado em algumas cidades, com destaque para as latino-
americanas. Entende-se por Modelo Barcelonao conjunto de intervenções de
reestruturação urbana realizadas a partir dos anos 80 na cidade de Barcelona,
com recurso ao planeamento estratégico e operacional e à gestão público-
privada, numa perspectiva de desenvolvimento social e económico da cidade.
O livro El modelo Barcelona: un examen críticodo conceituado geógrafo espanhol
Horacio Capel é o resultado aprofundado da investigação apresentada pelo autor
em 2004 no Décimo Colóquio Internacional sobre Arquitectura y Patrimonio. Tendo
como pano de fundo um colóquio sobre arquitectura e património, o autor não
perdeu uma oportunidade, volvidos cerca de 25 anos do início do Modelo
Barcelona, de reflectir sobre os seus aspectos positivos e, sobretudo, sobre as
suas fragilidades, evidenciadas progressivamente a partir da aprovação da
candidatura aos Jogos Olímpicos, em 1986. Através de um “olhar” experiente
sobre o urbanismo produzido na cidade, com especial destaque para as obras mais
recentes de regeneração e reabilitação da Ciutat Vellae de reconversão
industrial do Poblenou,o autor questiona o modelo na sua componente
urbanística, focando questões de estruturação espacial, social e institucional,
oferecendo ao leitor os elementos necessários para reflexão. A análise do autor
é enriquecida com a selecção de um conjunto de fotografias reveladoras das
subtilezas espaciais, sociais e políticas do urbanismo praticado.
Os primeiros cinco capítulos enquadram as condições que conduziram ao
desenvolvimento do modelo. A cidade do início de 80 revelava profundas
carências de habitação e de equipamento social decorrentes da crise económico-
industrial, que se vinha prolongando desde 1973, e de uma população numerosa,
resultante dos fluxos migratórios das décadas anteriores. Findo o período
franquista, numa época de forte reivindicação social, a cidade inicia uma
política de resolução das suas carências mas, sem os meios financeiros
necessários para produzir nova habitação, aposta na conservação e reutilização
do espaço construído com projectos urbanos de pequena escala ao nível dos
edifícios e do espaço público, tentando tocar todos os bairros da cidade,
centrais e periféricos (capítulo 2). Solucionadas estas carências e com a
progressiva estabilização económico-financeira, a que não é alheia a adesão à
Comunidade Europeia em 1986, com a globalização da economia e a consequente
necessidade de inserção das cidades no sistemas urbanos mundiais, Barcelona
aposta num conjunto de estratégias para promover a sua atractividade
internacional. A aprovação da candidatura aos Jogos Olímpicos em 1986 estimula
projectos urbanos complexos e de grande alcance, com a indispensável
participação da iniciativa privada (capítulo 3). O designado Modelo
Barcelonatornou-se possível devido a um conjunto de particularidades políticas,
sociais económicas e intelectuais. Na óptica do autor, torna-se excessivo
intitular um processo com condições tão específicas de “modelo” e replicá-lo a
outras cidades (capítulo 4 e 5). Cada cidade tem especificidades próprias,
merecendo ser planeada localmente, pelo que no hay modelos, pero si enseñanzas
útiles(Capel, 2005: 25).
Nos restantes capítulos o autor discute os vários conteúdos do modelo. A
promoção de equipamentos urbanos e culturais de escala internacional, alguns
com recurso à assinatura de arquitectos de renome (e.g. Macba, Fórum das
Culturas) e a aposta na construção de uma cidade virada para a tecnologia e
inovação e para a diversidade sócio-económica (e.g. 22@Barcelona, Villa
Olímpica, Diagonal-Mar), trouxe grandes benefícios – mais turismo, mais
empresas, mais habitantes –– mas também revelou fortes debilidades (capítulo
6).
No plano da estruturação espacial, o Modelo Barcelonaé promovido como um modelo
de cidade compacta (capítulo 7), apoiando-se em conceitos como reabilitação,
requalificação, regeneração, novas centralidades, densidade. Contudo, a
atracção de pessoas e actividades desenvolve-se de forma dispersa, impulsionada
por proprietários rurais, promotores imobiliários e autoridades municipais.
Neste sentido, o modelo de cidade compacta, concorre com o de cidade dispersa à
escala metropolitana. À escala urbana, é questionado o paradigma de cidade
compacta perpetuado pelo Modelo Barcelona. De facto, por força da especulação
imobiliária, o modelo de cidade compacta faz-se em prejuízo dos espaços verdes,
alguns semi-privatizados e outros condicionados a espaços exíguos (capítulo 8)
bem como à custa do congestionamento de tráfego (capítulo 9) e da
verticalização de edifícios (capitulo 13), mesmo, em áreas onde o que se
propunha uma abertura para o Mar (e.g. Diagonal-Mar).
Na esfera social o modelo também tem sido posto à prova. Os grandes projectos
de reabilitação urbana da Ciutat Vellae de reconversão industrial do Poblenou
fazem-se em prejuízo das classes mais populares que, pelo preço elevado da
habitação, deixam de conseguir aceder às áreas que outrora habitavam (Capitulo
10). A Villa Olímpicae a Diagonal-Marno bairro do Poblenou são exemplos
reveladores de situações sócio-espaciais conflituosas, defraudando os
objectivos preconizados de diversidade socioeconómica.
No domínio técnico-institucional, são também apontadas sérias críticas. O
desenvolvimento de parcerias público-privadas na realização e gestão de
projectos urbanos contribuiu para o incremento de uma perspectiva economicista,
voltada para a especulação imobiliária (capítulo 11) onde no siempre la
negociación puede ser bien realizada, lo que con frecuencia repercute en
beneficio de los interesses privados, que han obtenido tradicionalmente
importantes rentas de la ciudad(p. 57). Às parcerias público-privadas junta-se
o papel de técnicos e políticos (capítulo 14) e a ruptura com o planeamento
urbano (capítulo 16). Assim, por um lado, o recurso sistemático a arquitectos e
engenheiros, em detrimento de equipas pluridisciplinares, tem vindo a
contribuir, em certos casos, para uma insensibilidade social e falta de visão
do conjunto urbano. De la impresión de que la obsesión de los arquitectos por
hacer obra nueva y por dejar su sello personal, unido a una falta de
sensibilidad histórica o a la simple incultura, les lleva mucha veces a una
total desvaloralización del patrimonio existente(p. 68). Por outro lado, não
tem havido vontade de rever e utilizar os instrumentos normativos de actuação
urbana e metropolitana de forma mais exaustiva e articulada, procurando
integrar uma visão de conjunto. Em todo este processo perdeu-se a capacidade de
diálogo entre técnicos, políticos e população, pelo que o autor conclui dizendo
que é importante que Barcelona volte a poner a los políticos y a los técnicos
verdaderamente al servicio de los ciudadanos, de sus aspiraciones y de sus
necesidades(p. 106).
O Modelo Barcelonaconstruiu parte importante do que é hoje Barcelona cidade e
metrópole. Contudo, de um modelo com manifesta componente social, passou-se
para um modelo que sobreleva a visão económica. O ponto de ruptura parece ser a
aprovação da candidatura aos Jogos Olímpicos em 1986, construindo-se
progressivamente uma cidade voltada para o exterior, em detrimento dos seus
habitantes. Se não há modelos, há ensinamentos úteis, e de facto a análise
crítica do autor conduz a uma reflexão sobre o ordenamento que se pretende para
outras metrópoles. Duas questões sobressaem no desenvolvimento de um urbanismo
voltado para o projecto urbano. Por um lado, a questão da participação pública.
Impõe-se uma reflexão sobre como deverá ser considerada a participação do
cidadão num processo que, cada vez mais, promove a gestão público-privada e a
perspectiva económica. Por outro lado, a questão da escala. O urbanismo
operacional faz-se sem uma visão de conjunto à escala alargada, impondo-se uma
importante reflexão sobre as incidências de tais intervenções, da escala urbana
à metropolitana.
[i] Capel H (2005) El modelo de Barcelona.Ediciones del Serbal, Barcelona.