Centros históricos e turismo patrimonial: o pelourinho como exemplo de uma
relação contraditória
Notas introdutórias
Os projetos recentes de intervenção urbana levados a cabo em áreas centrais
degradadas de relevante valor histórico, artístico e cultural constituem uma
nova face do planeamento urbano contemporâneo. Grosso modo, essas intervenções
pretendem conferir uma maior visibilidade a certas porções do território
citadino, quer por meio da exaltação simbólica das suas referências culturais,
quer da sua promoção e dinamização económica, com o intuito de reverter o
quadro de degradação física e social em que se encontram, mas também como
aproveitamento do prestígio político que essas intervenções conferem.
Tais estratégias, adotadas nas últimas décadas em áreas degradadas de diversos
países europeus e nos Estados Unidos, reproduzem-se, desde os anos 1990, nas
cidades dos países latino-americanos, procurando conciliar desenvolvimento
local e preservação patrimonial. Neste sentido, em muitos centros históricos de
cidades de grande e médio porte, os investimentos destinados à promoção
cultural visam elevar o teor de atratividade turística de tais sítios, a fim de
dinamizar esta atividade que, em tese, propicia a geração de emprego e de
proveitos económicos a partir da valorização e promoção mercadológica das
referências materiais e imateriais da cultura.
No Brasil, estas iniciativas ocorreram em algumas áreas centrais de reconhecido
valor patrimonial, como nos centros históricos de Recife e de Salvador. Também
se convertem em formas de dinamização económica das áreas centrais das grandes
cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro e São Paulo, cujos projetos,
orientados frequentemente para grandes eventos e equipamentos culturais, se
encontram em fase de execução, tendo o turismo como uma das atividades
económicas a serem potencializadas. De todos estes projetos, por ora, um dos
que mais chama a atenção, pelos seus aspetos contraditórios, é o Plano de Ação
Integrada do Centro Histórico de Salvador, concebido pelo governo do Estado
durante a gestão de Antônio Carlos Magalhães, ao longo da década de 1990.
As ações desenvolvidas por este plano, executado na parte do centro histórico
de Salvador denominada Pelourinho, destinaram-se, prioritariamente, à
transformação deste local num dos mais significativos pólos turísticos de
Salvador e da Bahia como um todo, facto que, como em tantos outros projetos que
transportam os mesmos desígnios, não viria a ocorrer da forma esperada.
Por ser considerada, recorrente e crescentemente, como uma estratégia de
desenvolvimento territorial socialmente excludente, tal intervenção
transformou-se numa das mais emblemáticas ações ocorridas no Brasil,
demonstrando que nem sempre turismo e património são pólos convergentes do
desenvolvimento territorial. Cabe, portanto, avaliar de forma crítica os
efeitos resultantes deste plano na dinâmica socioterritorial do centro
histórico de Salvador, tendo, principalmente, como foco de análise a relação
entre turismo, património e desenvolvimento local.
1. O processo de produção e apropriação do centro histórico de Salvador
Considerada como a primeira capital do Brasil até o ano de 1763, a cidade de
Salvador, desde os primeiros anos de domínio colonial português, foi convertida
no principal centro do poder político da colónia, posição mantida até à
transferência da capital para o Rio de Janeiro. Além de ser detentora de um
expressivo poder político, Salvador congregava uma elite económica formada por
senhores de engenho e ricos comerciantes, cujos negócios eram, na sua maioria,
efetuados na cidade, tida como um dos poucos núcleos urbanos existentes na
colónia até meados do século XVIII. A Igreja católica também exercia ali o seu
poder, procurando impor a sua hegemonia frente às crenças e práticas religiosas
trazidas pelos negros africanos.
A configuração territorial de Salvador, principalmente do seu núcleo fundador,
localizado na chamada Cidade Alta, atualmente considerada como o centro
histórico da cidade, reflete a estrutura de poder vigente no período colonial,
fase em que a maioria das edificações foi erguida. A sua paisagem, socialmente
construída ao longo do tempo, foi edificada e ordenada pelo poder das
instituições sociais dominantes; neste caso, o Estado português, a Igreja e a
elite económica.
As formas espaciais, representadas por imponentes casarões assobradados,
igrejas e edifícios públicos e institucionais, constituem-se como elementos-
chave responsáveis pelos futuros processos de formação identitária e de
instauração de uma memória coletiva oficialmente construída pelo Estado com o
reconhecimento institucional do valor patrimonial de muitas das suas
edificações. Funcionam, nessa medida, como a cultura material que cauciona o
valor simbólico de Salvador na cultura brasileira e na memória colonial.
Segundo Duarte Paes (2009), é na paisagem que essas heranças e memórias,
tornadas património, ganham materialidade. Uma materialidade, representativa do
tempo no espaço, que permanece na paisagem enquanto forma, mas que se
refuncionaliza constantemente para atender às finalidades do presente. Este
processo de refuncionalização está relacionado com as diversas formas de uso
das edificações ao longo do tempo, as quais mantêm uma estreita relação com as
mudanças do perfil socioeconómico dos seus moradores e usuários.
Até meados do século XIX, o centro histórico de Salvador, principalmente a área
do Pelourinho, era habitado por uma classe dominante que expressava na grandeza
e imponência das edificações o seu poder e riqueza. O uso administrativo,
residencial e comercial predominava nesta área da cidade, caracterizada pelo
seu grande dinamismo económico e pela sua importância política e
administrativa, já que as principais atividades da administração pública ali se
concentravam. No entanto, no final do século XIX, a cidade expande-se em
direção ao sul com a criação de novos bairros mais modernos e,
consequentemente, de novas centralidades, processo que resulta na transferência
de parte considerável da população mais abastada para estas novas áreas de
expansão urbana.
O abandono das edificações pela população mais abastada, a perda do valor
imobiliário dos imóveis e a falta de investimentos públicos em infraestrutura
acarretou uma mudança do perfil socioeconómico do centro histórico que passou a
ser ocupado por uma população de baixa renda, sem condições de zelar pela
manutenção física das edificações, as quais, aos poucos, se foram deteriorando
e, em muitos casos, descaracterizando-se.
Ao longo do século XX, o adensamento da pobreza e da deterioração física do
centro histórico resulta numa estigmatização da área que, já em meados dos anos
1930, passou a ser designado como área de prostíbulos e cortiços da cidade
(Brooke apudSantos Junior e Braga, 2009).
Este processo de evolução, desenvolvimento e degradação das áreas centrais
ocorreu com certa intensidade em centros urbanos de grande e médio porte de
cidades de países com graus de desenvolvimento socioeconómico diferenciados.
Segundo Smith (2007), esta forma de reestruturação do espaço urbano decorre da
centralização do capital nas áreas suburbanas, levando ao desenvolvimento de
atividades industriais, comerciais, residenciais e recreativas, facto que
resulta numa elevação do preço da terra. Dessa forma, cada vez menos capital é
investido para a manutenção e restauração dos edifícios localizados nas áreas
centrais, acarretando uma perda de valor do solo e das edificações, o que
resulta na perda de dinamismo económico e na degradação social de tais
localidades.
No centro histórico de Salvador, este processo ocorreu ao longo do século XX,
agravando-se nas décadas de 1960 e 1970, com a transferência de funções
administrativas e comerciais para outros pólos de desenvolvimento económico do
município (Governo do Estado da Bahia, 2010). Vanessa Souza Puglies (s. d.)
refere-se à intervenção no centro histórico de Salvador como uma ação de
segregação planeada. Tal como em outros centros urbanos das cidades
brasileiras, esta porção do território, principalmente o Pelourinho,
transformou-se numa área de concentração de inúmeros problemas sociais,
detentora de altos índices de violência, criminalidade, prostituição, tráfico
de drogas e marginalidade social.
Neste período, o reconhecimento pelo IPHAN do valor patrimonial de inúmeras
edificações do centro histórico resultou na criação de estratégias de fomento
ao turismo, aproveitando-se o seu potencial cultural e emblemático.
Esse objetivo de converter o Pelourinho em pólo de atração turística resulta de
projetos que tiveram origem no final dos anos 1960 e que pretendiam combinar
património, turismo e desenvolvimento territorial a partir da concretização do
Plano Geral de Recuperação da Área do Pelourinho, de 1969. Ou seja, em
Salvador, tal como em muitos outros locais, ao mesmo tempo que, através do
alargamento da malha urbana e da criação de novas centralidades e zonas mais
nobres, se criam as condições para a localização de funções e de pessoas mais
estigmatizadas no centro antigo, descobre-se a combinação património-turismo
como elixir das políticas urbanas locais. Segundo Sant`Anna,
"apesar dos investimentos públicos feitos ao longo de mais de vinte
anos e que, bem ou mal, abriram caminho para sua apropriação como um
centro turístico e cultural, no início dos anos 90, a situação do
centro histórico continuava mais ou menos a mesma do final dos anos
60 (Sant`Anna, 2003: 45).
Tal iniciativa, que não logrou êxito, enquadra-se numa perspetiva de
desenvolvimento turístico das áreas centrais de valor patrimonial, defendida
pelos órgãos internacionais de preservação e discutida em importantes reuniões
internacionais destinadas à geração de princípios e estratégias de conservação
e preservação do património. Neste contexto, vale a pena salientar o papel das
Normas de Quito de 1967, cujos pressupostos reiteram o turismo cultural como
forma de preservar o património edificado e de reverter a degradação das áreas
históricas dos países latino-americanos, pressupondo o respeito pelas
necessidades sociais da população local (Santos Junior & Braga, 2009).
A UNESCO, desde o início dos trabalhos de levantamento dos sítios e monumentos
históricos consagrados como Patrimónios Culturais da Humanidade, sempre alertou
para a relevância do turismo como atividade geradora de condições para a
proteção dos bens patrimoniais, perante a falta de recursos financeiros e
técnicos dos órgãos nacionais de preservação. Tal perspetiva pode ser destacada
nos relatórios de Michel Parent, técnico do Serviço Principal de Inspeção dos
Monumentos e de Inspeção de Sítios na França, que esteve no Brasil numa missão
da UNESCO, entre 1966 e 1967, destinada a fornecer auxílio e cooperação técnica
ao então Departamento do Património Histórico e Artístico Nacional, para
reforçar a sua atuação no que dizia respeito ao património cultural brasileiro
(Leal, 2008: 13-14).
Ao visitar os principais sítios urbanos declarados pelo órgão federal de
preservação como Patrimónios Nacionais, Parent ressaltava o grande potencial do
país para o desenvolvimento do turismo cultural, num período em que o governo
federal dava os seus primeiros passos para a criação de políticas de incentivo
ao turismo, com a fundação da Empresa Brasileira de Turismo ' EMBRATUR.
Em visita a Salvador, Michel Parent definiu a cidade como uma das mais
surpreendentes cidades de arte do mundo e onde as tradições culturais seriam
tão variadas e vivas que o Brasil pode testemunhar diante dos visitantes suas
culturas específicas (Leal, 2008: 26).
O reconhecimento da relevância histórica e cultural do centro histórico de
Salvador legitimou-se com o reconhecimento formal, pelo IPHAN, do Pelourinho e
adjacências, em 1984, e com o reconhecimento pela UNESCO, em 1985, da mesma
área como Património Cultural da Humanidade, com base nos critérios IV e VI.3
Este estatuto confere ao Pelourinho e a outros centros históricos consagrados
como Patrimónios da Humanidade um statusdiferencial pela sua suposta
singularidade e excecionalidade.
O processo de diferenciação estatuária a partir da valorização de certos
atributos, como a singularidade e a autenticidade, conferidos aos bens
patrimoniais amplia a sua capacidade de gerar um retorno financeiro que
beneficie a localidade, já que a exacerbação do valor cultural agrega valor
económico ao património, e o turismo, em muitos casos, torna-se um vetor
dinamizador deste processo. Neste sentido, Harvey (2005), ao tecer
considerações a respeito dos mecanismos de atribuição de um valor monetário às
referências materiais e imateriais da cultura, atesta que o teor de
singularidade e autenticidade das mercadorias e dos lugares lhes assegura uma
renda monopolista, a partir da exaltação dos seus aspetos distintivos.
Segundo o autor, para que as cidades se tornem competitivas no mercado
internacional pela atração de fluxos de pessoas e de capitais, procura-se
elevar o seu capital simbólico, com o intuito de gerar marcos de distinção
responsáveis pela elevação do seu poder de atração, conferindo-lhes uma certa
vantagem económica (Harvey, 2005). Esta perspetiva vem-se consolidando no plano
do marketingterritorial em torno da ideia de imagem de marca.
O reconhecimento de uma cidade ou de partes das suas referências culturais como
Património da Humanidade consiste numa das principais estratégias destinadas a
tal finalidade, mesmo que o alegado teor de autenticidade e singularidade
perdurem mais enquanto discurso idealizado do que como realidade concreta.
Busca-se, dessa forma, fazer do património cultural, mundialmente reconhecido e
institucionalmente consagrado, uma mercadoria representativa da memória, da
identidade e de uma tradição, em muitos casos, reinventada, em busca do resgate
de um passado ideal. Exaltados nas suas cores e formas a partir de imagens e
discursos propagados pelos dispositivos mediáticos, tais bens culturais
contribuem para a elevação do teor de competitividade das cidades em busca da
atração de capital. De salientar que o papel e a intervenção da própria UNESCO
tem fomentado estas dinâmicas.
Conforme sublinha Peixoto, nesta lógica de promoção de um produto, o
património tornou-se um recurso incontornável das estratégias de definição de
uma imagem de marca, constituindo-se, ele próprio, como a marca que define um
certo valor concorrencial e comunicacional (Peixoto, 2006: 41).
Por outro lado, a auferição de um valor distintivo com a consagração de um
conjunto de bens ou lugares como Património da Humanidade, como o Pelourinho,
não assegura um retorno económico para a localidade se não for acompanhado de
um conjunto de estratégias criadas, principalmente, pelo poder público a fim de
planear e de executar as intervenções necessárias destinadas a elevar o seu
potencial de atração e de sedução para a captação de consumidores culturais.
A promoção cultural torna-se, portanto, uma das principais estratégias
utilizadas pelos governos locais para fomentar a dinamização económica dos
centros urbanos, e Salvador não escapa a este preceito. Porém, antes de
investir na esfera cultural era preciso reverter, por via da criação de uma
moldura patrimonial, o quadro de degradação física e reduzir os problemas
sociais que caracterizavam o centro histórico. Coube então ao governo estadual
asssumir esta iniciativa, com o intuito de transformar o Pelourinho e o
restante centro histórico de Salvador num expressivo pólo de atração turística.
2. O Plano de Ação Integrada do Centro Histórico de Salvador: finalidades e
intencionalidades
Com o intuito de promover o dinamismo económico do Pelourinho por meio do
turismo e, ao mesmo tempo, difundir uma imagem de um governo empreendedor,
sintonizado com as novas tendências do planeamento urbano com viés
culturalista, o governo do Estado da Bahia, sob o mandato de Antônio Carlos
Magalhães, deu início, em 1992, a um plano de intervenção urbana centrado,
principalmente, no Pelourinho e destinado a transformar o local num novo pólo
de desenvolvimento económico, tendo o turismo como vetor responsável pela
geração de emprego e de rendimentos.
O Plano de Ação Integrada do Centro Histórico de Salvador, executado pelo
Instituto do Património Artístico Cultural da Bahia ' IPAC e pela Companhia de
Desenvolvimento Metropolitano de Salvador envolveu uma série de ações
destinadas à recuperação física das edificações históricas degradadas, à
criação de equipamentos culturais, à geração de incentivos governamentais para
a instalação de estabelecimentos comerciais e de serviços voltados para
turistas e visitantes, assim como à promoção de estratégias de animação
cultural.
As intervenções abarcaram a recuperação física de 600 imóveis (Sant`Anna, 2003:
46), localizados na área do Pelourinho e adjacências. Estas intervenções foram
realizadas nos imóveis de maior relevância e envolveram a restauração, a
recuperação predial, a mudança nos espaços internos, com a manutenção das
fachadas e volumetrias, e a conservação dos imóveis em bom estado (Governo do
Estado da Bahia, 2010). Além da recuperação predial, a intervenção também
envolveu a pintura multicolorida das fachadas, não respeitando a coloração
original das edificações, com o intuito de reforçar a sua dimensão estética e
visual. Tal estratégia teve como pressuposto conferir um maior destaque na
paisagem às edificações isoladas e aos conjuntos urbanos, reforçando o viés
cenográfico do património presente neste tipo de intervenção.
Neste período, denominado por Jameson (1996) de capitalismo tardio, a
sobrevalorização da cultura da imagem e a representação alegórica da história
adquirem uma grande relevância económica e fazem do património arquitetónico um
de seus principais meios de expressão. A coloração diferenciada e garrida das
edificações históricas serve como um recurso de embelezamento estratégico das
cidades (Arantes, 2000), tornando-as mais aptas a serem consumidas como
mercadorias culturais, pelo menos no plano do consumo visual e fugaz. Este
facto é tanto mais relevante quanto estamos perante um modelo que circula
globalmente sujeito a um fenómeno de escalada do visual (Peixoto, Providência e
Aguiar, 2011).
Este tipo de estratégia, pautada pela valorização da dimensão estética do
património, enquadra-se numa lógica de intervenção denominada por Motta (2000)
de modelo globalizado, em que o património, transformado numa mercadoria e num
atrativo cultural, se torna alvo de intervenções baseadas nos aspetos
fachadistas, cujo objetivo consiste em atingir um consumidor (...) que deve
usar o bem cultural como uma atraente mercadoria ou como apoio ao consumo de
outras mercadorias (Motta, 2000: 270). É dentro desta perspetiva, e da
valorização de uma cenografia patrimonial e da importância crescente do consumo
visual, que se enquadram os incentivos à instalação, nas edificações históricas
do Pelourinho, de equipamentos culturais e estabelecimentos comerciais e de
serviços destinados ao atendimento dos interesses de turistas e visitantes.
Como o poder de atração turística de um território não se resume apenas aos
seus atributos naturais, históricos e culturais, mas também envolve o conjunto
de infraestrutura, serviços e atividades comerciais que deem suporte à
atividade, foi preciso, no caso do Pelourinho, investir na implementação e na
dinamização económica de tais atividades. Coube então ao governo do Estado o
papel de gerenciar as novas formas de uso desta porção do território a partir
da criação de estratégias destinadas à refuncionalização turística do
património cultural (Cifelli, 2009). Para responder aos ditames do mercado, as
formas antigas adquirem novas funções relacionadas com o próprio uso turístico
do território.
A atração de investimentos privados para o Pelourinho foi feita mediante a
concessão de uma série de vantagens competitivas oferecidas pelo governo,
destinadas à sua dinamização económica, tendo como objetivo transformar a
localidade num shoppinga céu aberto (Sant´Anna, 2003: 47), modelo, que, de
resto, se vinha insinuando em muitas outras intervenções similares. Este
espaço, centrado, principalmente entre o Terreiro de Jesus e o Largo do
Pelourinho, tornou-se o principal locusde concentração de atividades culturais
e económicas ligadas à promoção cultural e turística do centro histórico de
Salvador, congregando inúmeros equipamentos culturais, como museus, galerias,
centros culturais e fundações, e inúmeras lojas de artesanato e souvenires.
Estas destinam-se, principalmente, à comercialização da cultura afro baiana,
difundida por meio de espetáculos artísticos e musicais e de uma série de
mercadorias expostas nas fachadas das edificações. A sua crescente adaptação ao
mercado turístico está bem patente nas formas de exposição, de venda e até de
fabricação (sendo visível uma miniaturização de muitas das mercadorias
expostas, de forma a favorecer o seu transporte por turistas).
Neste lugar, e em muitos outros casos de intervenções urbanas em centros
históricos, o património torna-se um cenário para a dinamização do consumo, e a
rua, espaço público por excelência, converte-se em rede organizada e disputada
pelo/para o consumo. A velocidade de circulação de pedestres, ainda tolerada, é
aí determinada e demarcada pela possibilidade de perceber as vitrinas, de
comprar os objetos expostos (Lefebvre, 2004: 31). A tentativa de compreensão
das referências históricas e culturais das edificações torna-se, em grande
parte dos casos, elemento secundário diante do fascínio e do poder de sedução
exercido pela forma-mercadoria ou do assédio de vendedores e de figurantes do
património.
As estratégias de animação cultural efetuadas no Pelourinho foram dinamizadas
por meio do projeto Dia & Noite, com a promoção de atividades culturais,
como encenações teatrais, festas, eventos e, principalmente, showsmusicais
realizados em praças públicas. A atração de artistas baianos de grande
popularidade e a realização de apresentações periódicas de grupos musicais de
expressão mundial, como o Olodum, considerado como um grupo representativo da
baianidade, assume uma finalidade comercialmente estratégica, pois confere ao
Pelourinho, ou ao Pelô, como é comumente denominado, uma identidade cultural
fortalecida pelas luzes dos espetáculos mediáticos de grande popularidade. O
mercado global da world musice a identificação estereotipada do Brasil e do
brasileiro como produtores de ritmos musicais coloridos e animados não deixou
de favorecer uma imagem adequada a um mercado turístico sedento de
autenticidade e de animação.
A realização de muitas atrações pagas constitui-se numa forma de seleção do
público frequentador, levando em consideração o seu maior potencial de consumo.
Dessa forma, a localidade é posta em cena e convertida em cena a partir de
estratégias de embelezamento e de animação cultural que multiplicam o número de
visitantes (Choay, 2001: 224).
O resgate de uma imagem positiva do Pelourinho e da cultura baiana, que o
Governo Estadual passa a exibir, retifica um certo consenso público relacionado
com a relevância económica e cultural de tais intervenções. Porém, as suas
ações e a sua intencionalidade omitem as contradições sociais inerentes ao
processo de mercantilização patrimonial.
As ações efetuadas pelo governo do Estado na década de 1990 excluíram, de forma
propositada, a população local da possibilidade de auferição do bónus económico
resultante do processo de turistificação. Enquanto as intervenções priorizavam
o restauro e a reforma das edificações e a melhoria da infraestrutura local,
isto é, enquanto se detinham nos aspetos materiais do espaço urbano, os
problemas sociais existentes no Pelourinho ainda eram bastante evidentes. Como
alternativa de amenização desta questão, o governo promoveu um plano de
transferência induzida da população residente, mediante o pagamento de
indemnizações módicas, visando a sua realocação para outros locais de moradia
fora da área de intervenção. Segundo Fernandes (2006), após quatorze anos desde
o início do projeto, cerca de 2909 famílias foram removidas da área de
intervenção, implicando uma rarefação, com contornos de higienização e de
promoção de padrões de segurança, do uso residencial das edificações.
O esvaziamento populacional do Pelourinho e do restante centro histórico de
Salvador pode ser evidenciado com os resultados dos dados do censo de 2000. De
acordo com este levantamento censitário, em 2000, apenas 2,8% dos
soteropolitanos4 residiam nos bairros do centro histórico de Salvador e do seu
entorno (Governo do Estado da Bahia, 2010: 169).
Desde o início das intervenções, ocorridas em sete etapas de execução, ficou
evidente que o uso habitacional das edificações não era tido como alvo
prioritário do plano de promoção turística e de dinamização económica do
Pelourinho. Priorizou-se, portanto, a valorização da dimensão formal das
edificações em detrimento da variedade de usos e significações socialmente
atribuídas ao património.
A hegemonia da refuncionalização turística do património cultural destituiu a
população local das suas próprias fontes de sobrevivência económica, já que o
comércio popular foi preterido em detrimento dos incentivos promovidos para
favorecer a instalação de estabelecimentos comerciais e de serviços voltados
para o turismo, e o comércio informal passou a ser cada vez mais reprimido pelo
poder público. A repressão policial foi adotada como uma das formas de inibição
de pessoas e de atividades consideradas pelo Estado como indesejáveis diante
dos propósitos de conversão do Pelourinho num grande centro de consumo, cultura
e lazer de Salvador.
Este processo de seletividade social que este e tantos outros projetos de
intervenção urbana passam a impor, ao promoverem a criação de um novo padrão de
consumo cultural ligado à valorização mercadológica do património (Paes-
Luchiari, 2006), conduzem a formas de uso do património e de apropriação do
território socialmente excludentes, que tendem a promover o empobrecimento da
diversidade social e cultural de tais locais, aspeto que também poderia
assegurar o aumento de sua atratividade turística.
3. Dinâmica territorial do turismo no centro histórico de Salvador: conflitos e
contradições
A estratégia de conciliação entre turismo e desenvolvimento territorial em
áreas patrimonializadas nem sempre logra o êxito esperado pelo Estado e pelos
promotores turísticos. A redução da diversidade de usos do património e as
formas de apropriação excludente do território culminam numa nova fase de
decadência económica e de degradação física e social de tais locais. No centro
histórico de Salvador, principalmente no Pelourinho, este processo faz-se notar
desde o início dos anos 2000, quando o retorno económico advindo do turismo não
atingiu as expectativas esperadas. Como tal atividade era considerada pelo
Estado e pelos planejadores urbanos como o principal meio de dinamização
económica do centro histórico, conclui-se que este processo não teve êxito,
devido aos aspetos contraditórios da intervenção. Segundo Fernandes (2006), a
proposta de transformação do Pelourinho num enorme shopping centera céu aberto,
vai na contracorrente de toda a crítica que percorria a disciplina
urbanística desde os anos 60, qual seja, o combate à
monofuncionalidade, considerada indesejável para uma dinâmica urbana
mais racional ' na perspetiva de uso mais intensivo da infraestrutura
' e complexa (Fernandes, 2006: 10).
O predomínio dos estabelecimentos comerciais e de serviços voltados para o
turismo5 e o estabelecimento de uma nova dinâmica de organização territorial
pautada no estímulo ao consumo leva a uma necessidade crescente de atração de
um público consumidor cada vez mais significativo para a localidade. Por mais
que um grande aparato propagandístico fosse desenvolvido para divulgar o
Pelourinho como um centro de referência histórica e cultural, alguns entraves
reduzem a capacidade de o turismo promover a dinamização da economia local,
como era de se esperar.
Nos últimos anos, observa-se um fluxo turístico no Pelourinho abaixo do
desejado pelo poder público e pelos agentes de mercado. Por mais que seja
planeada, o aspeto sazonal da atividade dificulta a manutenção de uma certa
regularidade nos ganhos económicos obtidos. Além disso, a falta de
diferenciação e a baixa qualidade dos artigos comercializados nas lojas de
artesanato e souvenirse a grande concorrência comercial reduzem o retorno
financeiro para os empresários do setor, levando ao encerramento de parte dos
estabelecimentos existentes. Mesmo diante destes entraves, o Pelourinho e
adjacências ainda concentram a maior quantidade dos bares, restaurantes, meios
de hospedagem e dos equipamentos culturais da área central de Salvador.
A baixa frequência dos turistas resulta também da precariedade e da falta de
acessibilidade dos equipamentos culturais existentes, já que alguns museus e
igrejas permanecem fechados aos finais de semana e feriados, períodos de maior
concentração de visitantes.
O artificialismo das manifestações culturais encenadas, como as rodas de
capoeira, que ocorrem num curto período de tempo necessário para os registros
fotográficos dos turistas, as baianas que vestem os seus trajes para posarem
para fotos, entre outras atrações, agravadas por fenómenos de caça ao turista,
acabam por reduzir o grau de atratividade cultural para turistas que buscam um
contato expressivo com manifestações mais autênticas. Quanto mais os objetos e
manifestações culturais forem sujeitos a imitações, fraudes ou simulacros,
menos eles proporcionam a base para a geração de proveitos económicos
monopolistas (Harvey, 2005). Diante de tais entraves ao desenvolvimento do
turismo, a participação desta atividade para a geração de emprego e de
rendimentos é cada vez menos expressiva, resultando numa nova alteração do seu
perfil socioeconómico.
Conforme atesta Márcia Sant'Anna (2003: 48), não são os turistas os principais
frequentadores desse Pelourinho revitalizado, mas residentes da própria área
central de Salvador em busca de oportunidades de lazer e de trabalho. Perante
as dificuldades encontradas e o encerramento de lojas destinadas a turistas e a
moradores mais abastados, o Governo aposta em projetos de animação cultural.
Tais estratégias, adotadas com o intuito de conferir maior poder de
atratividade ao Pelourinho, acabam por contribuir para a geração de emprego e
renda para a parcela da população residente no centro histórico e adjacências,
com a dinamização do comércio popular e do comércio ambulante.
Em relação à questão social, observa-se que o caráter autoritário e excludente
com que todo programa é concebido distancia-se bastante, portanto, dos
princípios de gestão democrática da cidade (Fernandes, 2006: 10). A
transferência induzida da população de baixa renda para outras áreas da
Salvador com a intenção de promoção de uma verdadeira limpeza social do
Pelourinho, tornando-o mais apto para as atividades de cultura, lazer e consumo
não obteve os resultados pretendidos pelo governo, já que muitos dos problemas
sociais outrora existentes no local voltam a concentrar-se no mesmo local com o
retorno da população residente para as suas imediações. Muitas famílias, sem
condições financeiras de arrendamento ou compra de imóveis em outros bairros da
cidade voltam a residir tanto no Pelourinho como, em maior grau, no restante
centro histórico e em seu entorno, em busca de maiores perspetivas de emprego e
de rendimentos.
Os fortes laços de sociabilidade, identidade e pertencimento criados pela
população que residia no local antes da intervenção contribuem para acelerar
tal processo, gerando o retorno das relações de vizinhança e dos vínculos
afetivos existentes entre os habitantes e a localidade em que habitam. No
entanto, a situação de vulnerabilidade social em que a maioria da população se
encontra implica na exacerbação dos problemas sociais e económicos existentes.
Entre os que mais se evidenciam na localidade destacam-se os furtos e assaltos,
atos de delinquência, turismo sexual, mendicância, prostituição, tráfico e
consumo de entorpecentes, principalmente o crack, e o alto número de pedintes
que se espalham por toda a parte, em muitos casos, em busca de dinheiro para a
compra de drogas ilícitas.
Diante desta situação que se aprofundou nos últimos cinco anos, a imagem
negativa do Pelourinho sobrepõe-se em relação aos seus aspetos positivos,
fazendo com que o local seja caracterizado em guias turísticos impressos e em
sitesde viagens como uma área degradada e violenta, resultando numa perda cada
vez mais expressiva de visitantes e de turistas.
As contradições sociais evidenciadas nesta dinâmica de uso seletivo e
excludente de áreas patrimonializadas, refuncionalizadas pelo e para o turismo,
originam conflitos decorrentes da disputa entre grupos pela apropriação destes
territórios para o livre exercício de suas práticas sociais e de suas
atividades económicas. Este processo pode ser melhor compreendido através da
identificação das diversas territorialidades existentes em tais localidades,
como o Pelourinho. Segundo Campos,
as territorialidades são definidas como, um conjunto de ações,
comportamentos de indivíduos ou grupos que tendem a afetar,
influenciar ou controlar pessoas, fenómenos e relações: atividades
que estabelecem territórios, tendo como elementos fundamentais as
representações sociais (visões de mundo dos diferentes agentes
sociais, atribuições de significados e interpretações da realidade) e
as práticas sociais (ações espacialmente localizadas, materialização
quotidiana da identificação dos grupos com o espaço às ações de
planeamento). (Campos, 2002:36)
A forma de ordenamento territorial criada a partir da execução do Plano de
Intervenção Urbana no Pelourinho, ao contribuir para a exclusão dos usos
sociais indesejados com o intuito de fomentar o turismo como atividade
hegemónica, demonstrou o seu caráter segregador. Ao tentar inibir e coibir as
territorialidades estabelecidas pela população local, pautadas por vínculos
identitários, afetivos, culturais, sociais e económicos com o território, tal
plano priorizou o estabelecimento de territorialidades determinadas pelas
formas de apropriação do território pelo turismo, as quais se evidenciam,
principalmente, durante o período de alta temporada, feriados e finais de
semana.
A sobreposição das territorialidades geradas pelo turismo sobre as demais
práticas sociais territorializadas dos habitantes locais impediu que a própria
riqueza cultural proveniente da diversidade de usos do território por grupos
sociais variados e a livre expressão das ricas manifestações culturais
existentes se exaltasse no Pelourinho e se revertesse na elevação do seu
potencial de atratividade turística. No entanto, os graves problemas sociais
existentes no centro histórico dificultaram este tipo de integração, resultando
na adoção de medidas paliativas de expulsão generalizada de seus habitantes.
Atualmente, o retorno dos moradores e de suas atividades económicas, sociais e
culturais para o entorno do Pelourinho implica no acirramento dos conflitos
entre as diversas territorialidades, resultando em pontos de tensão entre os
agentes sociais que dificultam o uso hegemónico desta porção do território pelo
turismo.
A adequação extensiva dos espaços para turistas e a pouca atenção dada aos
moradores e usuários locais parecem contribuir significativamente para a
criação de pontos de tensão que, se permanecerem de modo reincidente, culminam
numa certa configuração espacial conflituante, que pode ser uma variável
importante para se compreender o declínio subsequente que esses espaços
enobrecidos acabam por sofrer (Leite, 2010: 84).
Tais estratégias de enobrecimento do Pelourinho e de diversos centros
históricos, pautadas na refuncionalização turística do património que altera o
perfil sócio- económico do público frequentador destas localidades, dificultam
a coexistência pacífica entre grupos sociais de diferentes classes sociais e
acentuam a relação de alteridade entre ambos. Este tipo de relação pode
culminar, como ocorre no Pelourinho, no aumento da insegurança, da
criminalidade, do vandalismo e de outros problemas sociais que dificultam a
gestação dos usos democráticos do património, do território em que se inserem e
de uma apropriação coletiva de suas riquezas culturais e das benesses
económicas advindas de um plano de desenvolvimento turístico socialmente
includente.
Considerações finais
Muito frequentemente, quando se estabelece uma relação direta entre património
e desenvolvimento territorial está a pensar-se, sobretudo, no desenvolvimento
económico (turistas, visitantes, receitas, emprego) e menos no desenvolvimento
da comunidade local. Se olharmos com atenção para as situações em que é mais
fácil reconhecer o sucesso da relação entre património e desenvolvimento
territorial, verificamos que elas têm em comum projetos de requalificação e de
reforço do sentimento de lugar. Em que o lugar se torna ele próprio um projeto;
onde a noção de território se consolida. Em que a cidade, por exemplo, não é
apenas um destino turístico e uma cenografia, mas um destino turístico com uma
história para contar. Ou seja: um território. Não é apenas um produto, mas uma
experiência capaz de promover formas de interação diversificadas.
Quando o património é colocado ao serviço das cidades e dos lugares, em vez de
usar as cidades e os lugares em proveito do turismo, e quando as cidades são
ordenadas com a preocupação de beneficiar os seus residentes e não tanto de
atrair visitantes, património e desenvolvimento territorial podem reforçar-se
mutuamente. Como tantos outros, o caso do Pelourinho revela, precisamente, a
difícil coabitação entre património e desenvolvimento territorial, na exata
medida em que a estratégia se orienta em demasia para a lógica de
turistificação do lugar.
Notas
1 Universidade Cruzeiro do Sul. Doutoranda e Mestre em Geografia pela
Universidade Estadual de Campinas ' Unicamp ' e licenciada em Geografia pela
Universidade Estadual Paulista ' Unesp ' Rio Claro. Docente do curso de
Geografia na Universidade Cruzeiro do Sul ' Unicsul. Investigadora do grupo
Geografia, Turismo e Patrimônio Cultural ' Unicamp (São Paulo, Brasil). E-mail:
gcifelli@gmail.com
2 Universidade de Coimbra. Doutorado em Sociologia pela Universidade de
Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais, onde integra e coordena o
Núcleo Cidades, Cultura e Arquitetura e o Observatório das Políticas de
Educação e Formação. Professor de Sociologia na Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, onde leciona nas licenciaturas em Sociologia e
Economia e nos Programas de Mestrado e Doutoramento em Cidades e Culturas
Urbanas e Doutoramento em Sociologia. Leciona igualmente no programa de
doutoramento Patrimónios de Influência Portuguesa (III/CES) (Coimbra,
Portugal).E-mail: pp@uc.pt
3Critério IV ' é um excecional exemplo de um tipo de construção ou conjunto
arquitetónico ou paisagem que ilustre significativo(s) estágio(s) da história
humana. Critério VI ' é direta ou claramente associado com eventos ou tradições
vivas, com ideias ou com crenças, com obras artísticas e literárias de
importância universal excecional.
4 Soteropolitano é o tratamento gentílico para os nascidos em Soterópolis (uma
antiga cidade grega, erigida por Sotero). Em latim, Sotero significa exatamente
Salvador, pelo que, por extensão, os habitantes de Salvador são conhecidos como
soteropolitanos.
5 As informações relativas à caracterização dos equipamentos e serviços
destinados ao turismo no centro histórico de Salvador baseiam-se nas
informações contidas no documento Centro Antigo de Salvador: Plano de
Reabilitação Participativo (Governo do estado da Bahia, 2010).