A mobilização de 12 de março em Portugal: movimento social ou explosão?
Atores, processos e consequências
Introdução
O território europeu, o mundo, tornaram-se efervescentes. A mobilização e a
ação popular recrudesceram e ascenderam a níveis de intensidade que já não eram
vistos ou sentidos desde há algumas décadas. A última efervescência deste tipo,
em grau e intensidade, foi talvez o maio de 68. A histórica aliança entre
estudantes e o movimento de trabalhadores de há décadas atrás é relembrada com
algum saudosismo, ao invocar a construção de um tipo de solidariedade que
parece ser difícil reinventar. As mobilizações mais recentes, que têm como
epicentro os países capitalistas ditos avançados, despertam a curiosidade
acerca do caráter, do potencial e da possibilidade de continuidade e
organização da expressão de descontentamento generalizada. Mas, não são só
estes países. A primavera árabe deixou incrédulo meio mundo, enquadrando-se
no panorama de mobilizações sociais desencadeadas por sociedades civis débeis e
descontentes, que perseguem maior justiça social e liberdades fundamentais.
Apesar da existência de similitudes, estas mobilizações são heterogéneas em
muitos aspetos e revestem-se de particularidades idiossincráticas, a que não
são alheias heranças deixadas por mobilizações e movimentos de outras épocas.
Nesse sentido, a velha discussão entre velhos e novos movimentos sociais
não perdeu atualidade e é indissociável da ideia da existência de continuidade
entre as duas figuras. Offe (1992) refere a existência de dois tipos de
projetos relativamente às mudanças da ordem social em curso: o projeto
neoliberal e o projeto dos novos movimentos sociais. O projeto neoliberal
propõe restaurar as pautas de contestação de ordem económica, moral ou
cognitiva de natureza inquestionável, o que o torna indissociável do projeto da
modernidade. Os novos movimentos sociais compartem com o projeto neoconservador
uma questão analítica importante: tomam como ponto de partida a impossibilidade
de continuar a solucionar os conflitos e contradições da sociedade
contemporânea através do estatismo, da regulação política, de uma via
burocrática. A partir deste pressuposto analítico seguem direções totalmente
opostas. O projeto neoconservador procura restaurar os fundamentos não '
políticos, não ' contingentes e incontestáveis da sociedade civil (como a
propriedade, o mercado, a ética do trabalho, a família, a verdade científica),
com o objetivo de salvaguardar uma esfera de autoridade estatal mais restrita
(e, por conseguinte, mais sólida) e instituições políticas menos
sobrecarregadas. O projeto defendido pelos novos movimentos sociais adota um
ponto de vista diametralmente oposto: buscam a politização das instituições da
sociedade civil sem restrições por parte dos canais das instituições políticas
representativas ' burocráticas, com o objetivo de reconstituir uma sociedade
civil que não dependa mais de uma regulação, controle e intervenção cada vez
maiores. Nesse sentido, a independência do Estado apenas pode ser conseguida
através de uma maior politização da sociedade civil, através de práticas que se
situam em uma esfera intermédia entre o privado e as atuações políticas
institucionais sancionadas pelo Estado. Em certo sentido, podemos falar dos
novos movimentos sociais como uma restauração da dimensão política da sociedade
civil. A sua emergência corresponde, diretamente, à existência de
reivindicações não cumpridas ou conflitos existentes nos campos materiais
(ecológico, económico, cultural, entre outros) que decorrem da configuração de
setores sociais excluídos das formas normativas de reprodução da vida humana e
da cidadania plena, e que, por isso, estão impossibilitados de exercer os seus
direitos através do corpo legal da ordem política (Dussel, 2009). As
mobilizações recentes não podem ser desvinculadas de um movimento global de
mudança e de recusa de um sistema que dá sinais de contradições insanáveis.
Contudo, por muito apelativa que seja a imagem de uma mobilização à escala
global e em sincronia perfeita, parece-nos necessário escrutinar estas
mobilizações a um nível micro, a fim de descortinar o seu caráter. Só assim
poderemos perceber o seu lugar e de que forma contribuem para a construção do
imenso puzzle com que nos deparamos. É, portanto, a essa tarefa que nos
iremos dedicar, ainda que de forma limitada pois seria ilusório pretender que
umas escassas páginas fossem suficientes para a sua concretização. O nosso
objetivo é, utilizando a sistematização de Charles Tilly (2004) relativamente à
noção de movimento social, perceber se uma das mobilizações mais recentes em
Portugal ' o 12 de março ' é ou não suscetível de ser enquadrada dessa forma.
Tal reflexão pode ajudar-nos a perspetivar o seu desenvolvimento futuro,
nomeadamente o que dela podemos esperar.
1. Os movimentos sociais como elementos fundamentais da sociedade civil
Os movimentos sociais são elementos incontornáveis das sociedades civis
modernas e uma forma importante de participação cidadã na vida pública, muito
embora esta última não possa nem deva, segundo Cohen e Arato (2000), substituir
os acordos institucionais forjados a partir dos canais fornecidos pela
democracia representativa. Estes são essenciais à defesa da autonomia da
sociedade civil e à manutenção de uma cultura política democrática viva, uma
vez que introduzem novos problemas e valores, e, assim, contribuem para a
reprodução do consenso que pressupõe o modelo de democracia de elite/pluralista
(idem). A fronteira delineada entre o político e o social é cada vez mais
ténue, mas nem por isso inexistente. Se assim não o fosse, o tema da autodefesa
da sociedade contra o Estado2, que se reveste de uma centralidade bem visível
nos projetos apresentados por inúmeros atores coletivos que lutam por uma
sociedade civil autónoma e democrática, teria perdido atualidade, o que, de
facto, não acontece. A questão da sociedade contra o Estado tem sido amiúde
apresentada como uma tentativa de generalizar os princípios da democracia
participativa a todas as esferas da vida social, sem deixar de lado o Estado e
a economia (idem). A generalização desta utopia democrática é, de alguma
forma, perigosa, na medida em que ameaça a diferenciação da sociedade que
constitui a base da modernidade. A esta possibilidade opõe-se a utopia
autolimitadora da democracia radical, baseada no modelo dual da sociedade
civil que prevê a diferenciação em vez da unificação. Esta ideia de
diferenciação implica um modelo de sociedade alternativa desejável em termos
normativos, regulada pela criação de instituições capazes de realizar
plenamente os potenciais da reprodução comunicativa e do mundo da vida moderno.
Quando é articulada pelos atores sociais, a noção de reconstruir ou defender a
sociedade civil tende a aumentar a mobilização, o que demonstra a necessidade
de uma conceção de sociedade civil que se reflita ao nível das novas
identidades coletivas, e capaz de articular os termos dentro dos quais os
projetos baseados nessas identidades podem contribuir para a emergência de
sociedades mais democráticas e mais livres ( idem). Esta nova conceção remete-
nos para um modelo tripartido da sociedade civil que expõe e permite
ultrapassar as insuficiências, contradições e algum reducionismo do modelo
dicotómico de Estado vssociedade. A combinação de associações, públicos e
direitos ' quando apoiada por uma cultura política em que as iniciativas
independentes e os movimentos sociais são uma opção sempre renovável, legítima
e política ' representa um conjunto efetivo de defesas em torno da sociedade
civil. Não obstante, esta combinação não oferece um sistema de sensores
efetivo capaz de submeter ao controlo social os sistemas político e económico,
que se encontram separados da sociedade civil pela ação das estratégias
capitalistas e da democracia de elite. Para contornar esta questão seria
necessário um processo de mudança política dirigido ao interior da sociedade
civil que a libertasse dos pressupostos que a circunscrevem ao apolítico.
2. A conceção de movimento social de Charles Tilly
O alargamento do conceito de movimento socialde forma a incluir todos os tipos
de ação coletiva popular, e o tratamento dos movimentos sociais como atores
unitários colocam problemas sérios no que toca ao esforço de descrição e
explicação do seu modo de funcionamento, principalmente quando se trata de
situá-los segundo uma perspetiva histórica. Segundo Tilly (2004), um movimento
social é concebido como um complexo politico que combina três elementos: 1)
campanhas de reivindicações coletivas dirigidas a autoridades-alvo; 2) um
conjunto de performances reivindicativas que incluem associações específicas,
reuniões públicas, declarações à comunicação social e manifestações; 3)
representações públicas da respeitabilidade, unidade, números e compromisso
referentes à causa em questão3 . Este complexo histórico específico configura
um movimento social. Não obstante as constantes inovações em pequena escala e
as variações de um contexto politico para outro, o movimento social vai
evoluindo e difundindo-se como um todo coerente. Ao referimo-nos a movimentos
sociais temos em mente um complexo histórico particular em que as interações e
práticas políticas estão em constante evolução. Na prática, e de acordo com a
perspetiva do autor, isto traduz-se na combinação distinta de campanhas,
repertório e demonstração da fórmula WUNC. O autor considera que os movimentos
sociais que se desenvolvem no ocidente após 1750 emergem a partir de uma
síntese inovadora de três elementos: 1) um esforço público organizado e
sustentado em formular reivindicações coletivas dirigidas a autoridades ' alvo
(ou seja, uma campanha); 2) a utilização de combinações de elementos de entre
as seguintes formas de ação política: criação de associações com propósitos
especiais e coalizões, reuniões públicas, marchas, vigílias, manifestações,
petições, comunicados de imprensa e panfletagem, entre outros (ao conjunto das
performances chamarepertório do movimento social); e 3) as representações
concertadas dos participantes da fórmula WUNC: worthiness, unity, numbers, and
commitment(respeitabilidade, unidade, números e compromisso), por parte dos
elementos do movimentos e/ou por parte dos seus seguidores ou aderentes (a que
chamaremos a demonstração de WUNC). Vamos precisar o âmbito de cada um destes
elementos. A campanhaestende-se para além de um acontecimento singular, implica
alguma continuidade e consistência nas ações, que serão postas em prática
segundo a orientação para um objetivo concreto, e combina, em princípio, vários
tipos de elementos. Estabelece a ligação entre, pelo menos, três
intervenientes: um grupo de aderentes autodesignados, um ou mais objetos alvos
da reivindicação, e um público de algum tipo. O repertóriodos movimentos
sociais coincide com o de outros fenómenos políticos, como por exemplo as
campanhas eleitorais. Estas últimas recorrem a uma série de estratégias e ações
também utilizadas pela generalidade dos movimentos sociais, com a
particularidade que estes últimos recorrem às performances seguindo um padrão
que confere consistência à campanha. As ações integram um plano estratégico e,
em princípio, consequente. Será isto que diferencia os movimentos sociais de
outras formas de política. A fórmula WUNCque mencionámos anteriormente encontra
tradução em vários tipos de ações como declarações, slogansou etiquetas que
implicam respeitabilidade, unidade, números e compromisso. As demonstrações da
fórmula WUNCtêm estado presentes, desde há muito tempo, na vida coletiva. Mas é
a sua integração nos repertórios de ação comuns que distingue as demonstrações
dos movimentos sociais dos seus predecessores. Não foram elementos isolados,
mas sim a combinação de repertórios de ação com demonstrações da fórmula WUNCna
construção das campanhas, que conferiu aos movimentos sociais o seu traço
distintivo. O facto de, tal como foi referido, o repertório dos movimentos
sociais coincidir com o de outros fenómenos políticos, coloca a exigência de
uma análise criteriosa, sem a qual não deve ser decidida a inclusão dos
fenómenos sob a etiqueta de movimento social. O termo movimento social é um
imenso guarda-chuva que, na ausência de critérios, pode agrupar um sem número
de fenómenos, despindo de qualquer significado operativo o conceito. Então,
metodologicamente, a primeira interrogação a colocar é: são as mobilizações que
atualmente despontam nos vários cantos do mundo movimentos sociais? Recorremos
às análises Tilly (2004) para lançar alguma luz sobre este problema. Os
participantes, observadores e analistas que se identificam ou aprovam um
determinado episódio de ação popular, frequentemente consideram-no um movimento
social, sem que se verifique a combinação de campanha, repertórioe a
demonstração de WUNC. Estes são os elementos que permitem decidir pela
aplicação da etiqueta movimento social. No entanto, mesmo nos casos em que é
possível identificar a combinação dos três referidos, podemo-nos deparar com
três tipos de confusões:
1) Analistas e ativistas estendem com frequência o termo movimento
sociala todas as ações coletivas populares relevantes, ou pelo menos
a uma ação coletiva popular que aprovam. 2) Os analistas confundem,
frequentemente, a ação coletiva de um movimento com a organização e
redes que apoiam essa ação, ou consideram que as organizações e as
redes constituem o movimento. 3) O movimento social é, muitas
vezes, tratado como um ator singular e unitário, obscurecendo o
realinhamento constante no seu interior, e as interações entre
ativistas, aderentes, alvos, autoridades, aliados, entre muitos
outros, que implicam uma dinâmica de mudança constante.
Portanto, a ação coletiva nem sempre configura um movimento social. A
utilização abusiva do conceito deve-se, em parte, à opção por uma lógica de
simplificação e de ordenamento das experiências sociais de forma intuitiva, que
tem como consequência o esvaziamento progressivo da noção de movimento social
pois, ao designar tudo, torna-se um conceito demasiado lato, perdendo assim o
seu valor em termos de análise. A ação coletiva que corresponde efetivamente à
noção de movimento social, apresenta logo à primeira vista a combinação dos
três elementos enunciados por Tilly (2004), podendo estes diferir em termos da
sua combinação em proporções variáveis que dependerá, naturalmente, do tipo de
reivindicações em jogo, da capacidade organizativa do coletivo, dos objetivos,
do público-alvo, etc. Existem um sem número de variáveis que influem na forma
como os três elementos referidos se combinam.
3. Os movimentos sociais do século XXI
As mobilizações do século XXI, apesar das continuidades que apresentam
relativamente às suas predecessoras, assumem novas configurações em muitos
aspetos. Charles Tilly (2004) salienta o seu caráter generalizado e alargado,
sublinhando o facto de constituírem uma ferramenta política de âmbito
generalizado e utilizada em um sem número de ocasiões. No que diz respeito às
demonstrações empreendidas por atores coletivos, identifica duas variantes: na
primeira, os participantes tendem a reunir-se em locais públicos com grande
carga simbólica, onde, por meio do discurso e de ações, demonstram a sua
ligação coletiva com uma causa bem definida; na segunda, os participantes
prosseguem pela via pública demonstrando de forma similar a ligação a uma
determinada causa. Como veremos em seguida ' ao apresentarmos o estudo de caso
', é fácil perceber a presença e conjugação de ambas as variantes. Aliás, a uma
escala maior estas duas variantes aparecem comummente lado a lado. A grande
maioria das marchas ou manifestações são precedidas por ou terminadas com uma
concentração num local público que, na maioria das vezes, tem associada uma
carga simbólica inerente ao local em si ou, então, esta é-lhe atribuída pelos
participantes. Tornou-se prática comum, por exemplo, a realização de
assembleias popularesno final das manifestações. As demonstrações de rua' cuja
forma mais frequente são as manifestações, muito embora possam ser referidas
outras ' são um meio privilegiado de dar voz às posições públicas partilhadas
por um número considerável de atores. Tilly (2004) identifica três aspetos
transversais às várias variantes de demonstrações: uma coerência notória,
variações internas sistemáticas, e uniformidade transversal a lugares,
programas e participantes. Estes três aspetos permitem a identificação de
continuidades e similitudes relativamente a fenómenos aparentemente díspares.
Mas não nos podemos deixar seduzir: a identificação de regularidades à pequena
escala pode levar-nos a ver movimentos sociais em todo o lado. E, como referido
anteriormente, tal comporta o perigo de vulgarização do conceito e a perda do
seu valor analítico.
Até agora, identificamos como elementos essenciais para a atribuição da
designação movimento social, a verificação de três elementos: campanha,
repertórioe demonstração de WUNC. O enquadramento dentro do espectro do
conceito também obedece, de acordo com esta perspetiva, à combinação por parte
do movimento social de três tipos de reivindicações: programa, identidade e
posicionamento. A relativa saliência de cada um dos tipos de reivindicações
varia significativamente entre movimentos sociais, entre os reivindicantes
dentro do movimento, e consoante as fases do movimento. Existem três fontes de
mudança e variação distintas e em constante interação, que produzem variações
no tempo e no espaço:
o contexto político na sua totalidade (incluindo processos de
democratização e de des-democratização) altera-se de forma
parcialmente independente da atividade dos movimentos sociais e afeta
o seu caráter; no quadro das interações inerentes ao funcionamento
dos movimentos sociais, as mudanças decorrem de inovações,
negociações e conflitos constantes; os participantes nos movimentos
sociais ' não só os ativistas, mas também as autoridades e outros
alvos das reivindicações ' comunicam entre si, partilhando e
adaptando-se às ideias, aos participantes, à assistência, à retórica
e aos diferentes modelos de ação.
O último ponto é particularmente importante. Os movimentos sociais partilham,
adaptam, inovam, mas também competem entre si por recursos e recrutamento. É
bastante interessante observar, em grande parte graças à introdução de novas
tecnologias de comunicação, a partilha e adaptação entre movimentos sociais
geograficamente distantes e bastante distintos. Falamos, portanto, do caráter
modulardos movimentos sociais (Tarrow, 1998; Tilly, 2004), que cria a
possibilidade de transposição de aspetos particulares de um movimento para
outros contextos. A presença de táticas modulares dotadas de grande rapidez é
considerada por Tarrow (Tarrow, 1998) como um dos marcos distintivos da
atividade dos movimentos sociais. Contudo, o caráter modular não deve ser
confundido com uniformidade ou com transposição direta, completamente livre de
símbolos e de significados locais. Acresce que, mesmo que o movimento social
apresente um caráter global, a importância da dimensão local mantém-se. A
organização territorial favorece a proximidade social e geográfica entre
ativistas, entre os ativistas e os seus apoiantes, e entre ativistas e os
objetos das reivindicações formuladas (Tilly, 2004). A territorialidade diz
respeito à configuração do territóriocomo espaço de resistência, de
ressignificação e de criação de novas relações sociais (Svampa, 2008). Esta
dimensão de auto-organização comunitáriaé passível de ser encontrada em vários
tipos de movimentos, e constitui um dos rasgos distintivos dos movimentos
sociais latino-americanos. Significa uma forte implantação geográfica, tanto em
termos das dimensões estratégica e de ação, como da formulação das
reivindicações (mais voltadas para as especificidades locais). Mas a dimensão
territorial também significa uma menor dependência em relação às redes de
cyberactivismoque, apesar do enorme potencial de difusão que encerram, descuram
a dimensão relacional entre os vários atores envolvidos nas dinâmicas em curso.
O cyberespaçoé apresentado, muitas vezes, como locusprivilegiado de
constituição das redes de solidariedade que sustentam a ação e difusão dos
movimentos, lançando as bases para um novo tipo de ativismo. É uma modalidade
que permite superar barreiras de tempo e de espaço, abrindo as portas a formas
de participação não exclusivamente presenciais, permitindo o alargamento e a
expansão do movimento em termos geográficos. Há uma articulação diferente do
espaço real ( ) e da criação de um novo domínio de contestação política e de
ambiente cultural que não é equivalente ao espaço que normalmente
experienciamos (Ribeiro, 1998: 327, tradução nossa). Não obstante as
vantagens, os dados empíricos ' recolhidos no âmbito da investigação em curso '
apoiam a identificação da necessidade de preservar uma dimensão presencial.
Esta é determinante no desenvolvimento e na preservação de solidariedades,
verificando-se muitas vezes o seu esmorecimento ou fraca consolidação, em
virtude do apoio exclusivo em redes sociais do cyberespaço. A dimensão
presencial é essencial à construção do compromisso que sustém uma ação
estratégica de continuidade. A utilização das novas tecnologias como forma de
mediação em substituição do contato direto entre os atores envolvidos em ações
coletivas é suscetível à formulação de alguns avisos (Tilly, 2004). Entre
muitos, são de salientar: 1) a necessidade de evitar determinismos
tecnológicos, reconhecendo que a maioria dos traços dos movimentos sociais
resultam de alterações ao nível dos contextos social e político, e não de
inovações tecnológicas por si só; 2) as inovações ao nível das tecnologias de
comunicação estão associadas a dois tipos de efeitos: por um lado, diminuem os
custos associados à coordenação entre ativistas; por outro, excluem aqueles que
não têm acesso a essas novas tecnologias, aumentando a desigualdade em termos
de acesso e de capacidade de utilização; 3) não é menosprezável o facto de a
maior parte da atividade dos movimentos sociais continuar a ter por base formas
de organização locais, regionais e nacionais; e, 4) deve ser abandonada a
crença de que o panorama dos movimentos sociais é dominado pelo confronto entre
globalização e antiglobalização. Após a apresentação dos elementos que nos vão
servir de vetores de análise, cabe agora responder ao desafio de demonstrar a
verificação destas condições no estudo de caso que apresentaremos de seguida.
4. A mobilização de 12 de março
A organização da mobilização do dia 12 de março de 2011 despontou em Lisboa e
partiu da insatisfação sentida por quatro jovens relativamente à classe
política na sua generalidade, às políticas do governo e à inexistência de
perspetivas de futuro. Esse foi o mote para o lançamento, via Facebook, do
desafio de realização de uma manifestação contra o estado geral das coisas. Foi
anunciado um protesto apartidário, laico e pacífico, que ficou conhecido como
a Geração À Rasca. Inicialmente estava prevista a sua realização apenas em
Lisboa e o objetivo era a expressão de um descontentamento generalizado. As
adesões ao protesto na página do Facebooke a sua divulgação em todo o tipo de
redes sociais do cyberespaçopermitiram uma difusão rápida e eficaz da proposta
dos quatro jovens de Lisboa. Esta expansão geográfica bastante célere só foi
possível graças à utilização das novas tecnologias, e não demorou muito até um
jovem escrever, em início de fevereiro, no mural do protesto a seguinte
mensagem: eu sou do Porto e não posso ir a Lisboa, mas queria organizar no
Porto um protesto, no mesmo dia, à mesma hora, com o mesmo objetivo. Quem
quiser juntar-se a mim no café ( ), apareça no dia ( ), às ( ) horas4 . A
convocatória do protesto disseminou-se no Facebooke manifestaram-se vontades em
expandir a organização a outros pontos do país, em cerca de dez cidades ao
todo. Produziu-se um efeito bola de neve. As cidades aderentes foram somando-
se, em resultado da vontade de indivíduos que, a título individual, se
identificaram com o objetivo do protesto e decidiram reproduzi-lo
autonomamente, convocando-o nas suas cidades. Foram quatro os principais
veículos de divulgação e de disseminação: comunicação social, cartazes,
panfletos e redes sociais. Na cidade do Porto foi constituído um grupo de
trabalho que, dada a proximidade da data escolhida para saírem à rua,
trabalharam intensamente em várias vertentes: produção e distribuição de
materiais de divulgação, mobilização ativa e contactos com outros atores
sociais. Todas as organizações e associações que poderiam levar mais gente ao
protesto foram contactadas (muito embora não tenham sido encetadas articulações
de qualquer tipo). Nem todos os contactos deram frutos. Muitos não responderam,
como foi o caso dos atores sindicais. Esse espaço político não estava ganho,
teria de ser conquistado. Na altura, a questão nem sequer foi considerada muito
relevante, tendo em conta que a matriz do protesto era a participação dos
cidadãos a título individual. A comunicação social foi informada acerca da
intenção de levar a cabo o protesto e foi um aliado de peso para atingir o
surpreendente nível de mobilização. O interesse que os organizadores
conseguiram despertar antes e depois do protesto deveu- se, especialmente, à
novidade do mesmo: o número elevado de pessoas que saíram às ruas, a
heterogeneidade dos participantes e o facto de não haver qualquer respaldo
partidário ou sindical. Uma mobilização deste tipo naturalmente despertou o
interesse até dos mais céticos. Dois outros fatores influenciaram, de forma não
negligenciável, a grande cobertura e simpatia dos mediarelativamente ao
protesto, mas apenas foi possível perceber a sua pertinência à luz de
acontecimentos posteriores, quando compararmos as reações ao 12 de março aqui
referidas com as relativas a um protesto similar que teve lugar meses mais
tarde ' o 15 de outubro ': a crise e o discurso da inevitabilidade. A sua
disseminação era ainda efémera e ainda não tinha penetrado profundamente no
discurso de uma grande parte da sociedade portuguesa. Dizendo de outra forma,
como a inevitabilidade ainda não era certa, como ainda não tinha sido
instituída como realidade única e possível, valia a pena lutar, pois as opções
continuavam, de certa forma, em aberto, não prevalecendo a ideia de um caminho
único. Tal impediu os mediade classificarem a mobilização de inconsequente, e
daí o interesse em perceber do que se tratava. Em poucos meses, a situação
transformou-se radicalmente. A partir do momento em que o discurso da
inevitabilidade foi legitimado, a cobertura mediática passou a ser muito menor
e as iniciativas passaram a ser desvalorizadas. O decréscimo, tanto em
quantidade como em qualidade, da publicidade refletiu-se em adesões mais
modestas. Os objetivos subjacentes à convocatória eram, sobretudo, a luta
contra a precariedade ' os falsos recibos verdes, trabalho temporário,
estágios não remunerados, etc. ', contra o desemprego galopante e contra as
medidas que estavam, na altura, a ser impostas pelo governo de José Sócrates.
Foi redigido um manifesto pelo grupo organizador de Lisboa ' em que expunham os
motivos do protesto e apelavam à mobilização ', ao qual o núcleo de
organizadores do Porto aderiu, ainda que com algumas reservas. Na decisão pela
adesão ao manifesto redigido pelo grupo de Lisboa pesaram fatores de ordem
pragmática: o grupo do Porto temia o desperdício de energias em discussões
infindáveis que, em última instância, apenas prejudicariam a celeridade e
concretização do objetivo definido. Além do mais, a organização do protesto nos
vários pontos do país estava a ser levada a cabo por um grupo heterogéneo de
pessoas que, inicialmente, tinham poucos ou nenhuns vínculos entre si. A
organização do protesto propriamente dito foi privilegiada em detrimento da
discussão aprofundada do seu documento base ' o manifesto ' e dos objetivos
políticos subjacentes. Após o protesto, que levou centenas de milhares de
pessoas às ruas de várias cidades portuguesas, as relações entre as
organizações das várias cidades aderentes mantiveram-se por um curto espaço de
tempo. Poucos dias após a mobilização, foi promovida, em Lisboa, uma reunião
que juntou organizadores de várias cidades aderentes, com o objetivo de fazer
um balanço geral e discutir estratégias futuras. No entanto, foi uma tarefa
difícil. Dada a magnitude da mobilização, esta acabou por escapar ao controle
absoluto dos organizadores e foi decidida a autonomização das várias células de
organização. Sob o guarda-chuva do apartidarismo foi criado o espaço para a
expressão dos vários quadrantes políticos (inclusive de grupos com ligações ao
nacional-socialismo, que marcaram presença no protesto em algumas cidades).
Mesmo dentro do âmbito mais geral das razões originárias, emergiram questões
particulares que se circunscreviam a grupos específicos. Tornou-se difícil
gerar tanta diversidade. A autonomização das células ao nível das várias
cidades acabou por não surtir os efeitos desejados. Em primeiro lugar, porque
deu espaço a que muitas pessoas alheias ao protesto, ao serem confrontadas com
o seu sucesso, reivindicassem inadvertidamente a pertença ao grupo de
organizadores da Geração À Rasca, acabando a situação por fugir nitidamente
das mãos dos organizadores de facto. Foram surgindo, por todo o país, novos
núcleos que apenas tinham em comum a expressão Geração À Rasca. Esta situação
causou grande desconforto aos quatro organizadores de Lisboa e foram adotados
procedimentos que salvaguardassem o grupo e a denominação adotada. Em segundo
lugar, as experiências de organização pós-12 de março não deram frutos, com a
exceção dos dois coletivos de Lisboa e do Porto (o Movimento 12 de março '
M12M, e o CIP ' Coletivo de Intervenção Popular, respetivamente). Apenas nesses
dois casos pode ser apontada a persistência de uma ideia de continuidade e de
necessidade de sistematização e formulação de objetivos e de estratégias
concretas, para além de terem, de certa forma, revertido a despolitização do
12 de março5.
Nas reuniões posteriores ao dia 12 de março ressalta a substituição do discurso
apartidário por um antipartidarismo bem vincado, bem como um discurso anti-
sindical, muito embora este último, em particular, não fosse partilhado pela
totalidade dos ativistas que participaram nas reuniões subsequentes. Obviamente
que o tipo de posicionamento face à esfera institucional limitou, em grande
medida, a gestão da política de alianças, que revelou ser bastante incipiente
ou mesmo inexistente. A verdade é que enveredar por esse caminho afastaria uma
grande parcela dos apoiantes da mobilização, que não se identificam com o
sistema político vigente. A exigência de mais democracia ou de democracia
real são transversais aos discursos do 12 de março. A lógica do apartidarismo
acabou por resvalar para uma lógica de não politização. O 12 de março é
descrito por alguns daqueles que participaram na sua organização como uma clara
manifestação de exaspero com as coisas, tornando óbvio que não há a definição
de objeto de descontentamento específico, traduzindo-se na formulação de
reivindicações vagas e extremamente diversas. Nas palavras de um organizador,
o 12 de março serviu para destilar bílis, o 12 de março foi um protesto de
pessoas que estão numa coisa que não sabem exatamente o que é. Foi uma espécie
de catarse popular, um momento de explosão. Os elementos de análise fornecidos
por Charles Tilly, que foram explicitados, são uma ferramenta que nos permite
responder à seguinte questão: o processo de mobilização que se gerou em torno
do dia 12 de março configura um movimento social? Em primeiro lugar, a
combinação de campanha, repertórioe a demonstração de WUNCé a fórmula que, num
primeiro momento, nos permite afirmar que estamos perante um movimento social.
No caso do primeiro elemento ' a campanha', o 12 de março não preenche a
totalidade dos requisitos elencados. Consideramos que, não obstante as ações de
divulgação e de disseminação direcionadas para a realização do protesto, estas
não se mantiveram para além deste. Foi comprometida a continuidade e
consistência nas ações. Por outro lado, falhou também a definição de um
objetivo concreto: o protesto não propunha alternativas, foi antes uma
expressão de puro descontentamento. E a ligação que deveria ser estabelecida
entre, pelo menos, três tipos de intervenientes ' um grupo de aderentes
autodesignados, um ou mais objetos alvos da reivindicação e um público de algum
tipo ' não é, de forma alguma, clara. Aliás, até ao dia do protesto, não
podemos mesmo falar da existência de uma relação entre estes três
intervenientes. No que diz respeito à existência de um repertório' que implica
o recurso a estratégias e a ações que configuram um padrão que confere
consistência à campanha, integrando um plano estratégico e consequente ',
deparamo-nos com dificuldades em decidir pela sua existência no caso do 12 de
março. Dados os traços de espontaneidade da mobilização, que implica a ação num
curto espaço de tempo, é abusivo falar da existência de um planeamento
estratégico de facto. Apenas podemos falar de estratégias incipientes
sustentadas pelo cyberactivismo, em que o caráter instantâneo das redes sociais
teve um papel determinante.
A fórmula WUNC' que inclui declarações, slogansou etiquetas que implicam
respeitabilidade, unidade, números e compromisso ' não é concretizada na sua
totalidade. Em primeiro lugar, se entendermos a respeitabilidadecomo
reconhecimento dos atores e das reivindicações que formulam, é difícil
decidirmos pela sua verificação. O caráter espontâneo do protesto e a sua curta
prevalência no tempo (mesmo tendo em conta a dinamização posterior) não nos
permitem tomar qualquer conclusão segura quanto a isso. Relativamente à
unidade, não há grandes dúvidas. Os números (os mais de 300 mil que saíram à
rua naquele dia) comprovam-na, muito embora tenha sido de curta duração, uma
vez que a autonomização dos focos de mobilização ocorreu quase de imediato,
logo após o protesto. O compromisso não nos levanta grandes questões: apesar de
existir um compromisso no seio dos grupos que levaram a cabo o protesto, este
esteve sempre sujeito a flutuações, os ativistas não assumiram
responsabilidades permanentes nem de caráter vinculativo, era bastante volúvel
e foi quebrado com relativa facilidade após o protesto. Em boa verdade, de
todos os focos de organização, apenas os de Lisboa e Porto se mantiveram por
algum tempo. Portanto, concluímos que a combinação, que, segundo Charles Tilly,
confirma a existência de um movimento social, não se verifica no caso do 12 de
março. Há, ainda, um último aspeto que gostaríamos de assinalar: o caráter
modulardo 12 de março. Muito embora este não seja um movimento social ' e esse
conceito é aplicado por Tarrow (1998) e por Tilly (2004), no âmbito da análise
dos movimentos sociais ', tendo em conta os elementos empíricos referidos e
outros ainda que não foram incluídos neste artigo, é possível falar de caráter
modular no caso do 12 de março. Por caráter modularentende-se a partilha e
adaptação de objetivos, estratégias e repertórios, criando-se a possibilidade
de transposição de aspetos particulares para outros contextos. No caso do 12 de
março tal verifica-se em duas vertentes: na disseminação do protesto a outras
cidades e na sua reprodução ' não integral e com muitas especificidades à
mistura ' na vizinha Espanha onde, no dia 15 de maio de 2011, milhares de
pessoas saíram as ruas em moldes semelhantes ao 12 de março.
Considerações Finais
São apontadas muitas fragilidades ao 12 de março. Ao protesto faltaram
especificidade, definição de objetivos claros e concretização. O seu caráter
demasiado lato determinou a sua diluição. Não obstante terem sido mobilizadas
mais de 300 mil pessoas por todo o país, estas acabaram por não se organizar em
torno de objetivos concretos e passíveis de operacionalização real, ou se o
tentaram fazer não lhes pode ainda ser atribuído um lugar de destaque. O
caráter espontâneo do protesto e a energia que absorveu não deixaram espaço
para que o dia seguinte fosse pensado. Não havia um plano de continuidade. O
objetivo parecia ser apenas explodir. A perspetiva de continuidade só foi
colocada posteriormente, no rescaldo da mobilização de dimensão inesperada, e
foi acompanhada de autonomizações precoces e de cisões. O elemento-chave que
ressalta da análise do 12 de março é o seu caráter espontâneo, a forma como
surgiu. Apesar de desligado dos mecanismos e canais institucionais, o 12 de
março mobilizou milhares de pessoas em torno de um sentimento de
descontentamento, de rejeição de um sistema político considerado decadente.
Apresentou-se como uma mobilização que se divorcia da esfera política e que
exige novas soluções, sem saber muito bem quais serão. No entanto, e não
obstante uma aparente esterilidade, a mobilização produziu efeitos profundos na
sociedade civil. Abriu novos espaços de discussão e de mobilização.
Indiscutivelmente, o 12 de março marca o início de uma nova dinâmica social '
ou de novas dinâmicas sociais ', e deu um contributo de peso para a
revitalização e/ou redinamização da sociedade civil.
Notas
1 Doutoranda no programa de Doutoramento em Sociologia: Relações de Trabalho,
Desigualdades Sociais e Sindicalismo ' Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra (FEUC) / Centro de Estudos Sociais (CES) (Coimbra, Portugal). E-mail:
dorajfonseca@gmail.com
2 Sobre este tema, consultar Cohen e Arato (2000).
3 A combinação destes quatro elementos é chamada por Charles Tilly (2004) de
fórmula WUNC. Esta será analisada mais à frente.
4 Transcrição a partir da entrevista realizada a um dos promotores do 12 de
março na cidade do Porto.
5 Referimo-nos, concretamente, ao seu envolvimento no processo da Iniciativa
Legislativa de Cidadãos entregue na Assembleia da República.