A precariedade como modo de vida? Recensão crítica do livro
É provável que, quando Nuno de Almeida Alves e a equipa do Observatório das
Desigualdades iniciaram a investigação que veio dar origem a este livro, não
imaginassem a centralidade que o tema da precariedade juvenil iria assumir no
espaço público no ano de 2011. É certo que a problemática das transformações no
mundo do trabalho, das transições difíceis dos jovens, dos processos de
precarização do emprego, de prolongamento da dependência e de adiamento da
emancipação da juventude não só estavam latentes como tinham dado origem, em
anos anteriores, a alguns fenómenos de mobilização coletiva ' de que são
exemplo movimentos como o MayDay, o FERVE, os Precários Inflexíveis, entre
outros. Mas seria a Geração à Rasca e a expressiva manifestação do 12 de
março de 2011 que trariam esse assunto, diretamente, para o centro do debate
público, mediático e político no nosso país. De resto, não foi apenas em
Portugal que estes problemas ' uma condição juvenil marcada pelo desemprego,
pela precariedade, pelo desencanto com as instituições políticas e pela
frustração em relação a um futuro que não parece trazer nenhuma previsibilidade
nem garantia de uma vida melhor ' deram origem a grandes mobilizações.
O último relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre a situação da
juventude refere-se a esta como uma geração perdida. Com a generalização de
formas precárias de emprego, com taxas de desemprego jovem a rondar os 25% no
Norte de África e os 18% na Europa (41,6% em Espanha, cerca de 35% em
Portugal), com a disseminação da pobreza assalariada (onde os jovens surgem de
forma desproporcionada: 23,5%), com os jovens a constituírem já a maioria dos
desempregados de longa duração, a OIT salienta que têm sido eles a pagar o
preço mais alto em termos de emprego ao longo da crise que se instalou desde
2008 e que os protestos que este ano tiveram lugar no Norte de África, mas
também em Espanha, Inglaterra ou Grécia, encontram aqui a sua raiz fundamental
(OIT, 2011: 3-6).
O livro Jovens em Transições Precáriastraça um retrato deste fenómeno a partir
de entrevistas a 80 indivíduos entre os 18 e os 34 anos que se encontram em
postos de trabalho pouco qualificados e de baixa remuneração, refletindo sobre
o modo como as suas trajetórias têm impacto não apenas na esfera laboral mas na
instalação da precariedade como modo de vida, com quotidianos marcados pela
imprevisibilidade, por um estado de limite quase permanente, com uma relação
problemática com o futuro, tornando-se difícil projetar prospetivamente a vida.
Uma das maiores virtualidades deste livro passa precisamente por trabalhar uma
amostra em que os jovens licenciados não são dominantes, ao contrário do peso
que têm tido no espaço público e na construção das representações e dos
discursos sociais sobre este tema no espaço mediático, talvez pelo protagonismo
que aquele segmento tem tido nos movimentos que surgiram ao longo de 2011.
Assim, a presente investigação permite desconstruir a ideia da homogeneidade
das transições precárias, e fá-lo através de uma tipologia que cruza formação
escolar acumulada e profissão desempenhada, dando origem a quatro categorias de
jovens trabalhadores: executantes de escolaridade superior, executantes de
escolaridade intermédia, executantes de escolaridade elementar e operários. Sem
negar que haja alguns elementos de tipicidade juvenil (e eles existem!), o
estudo permite perceber que, ao nível das inserções laborais, das estratégias
mobilizadas, das trajetórias familiares e de pares, dos rendimentos, dos graus
de autonomia (nomeadamente residencial e financeira) e do modo como se projetam
os futuros laborais, cada um destes grupos vive a precariedade e a transição
para a vida adulta de forma muito diversa.
Ainda que centrado nos testemunhos e nas experiências dos 80 jovens com
trabalhos pouco qualificados e com baixa remuneração que foram entrevistados, o
livro enquadra essas narrativas nas tendências de recomposição da estrutura
ocupacional e nas mudanças ocorridas ao nível da educação e da qualificação no
nosso país, em particular no período entre 2000 e 2010. O aumento muito
significativo das qualificações da população empregada, de profissionais e
técnicos, de postos de trabalho pouco qualificados no setor de serviços e a
diminuição do trabalho manual são o pano de fundo destas alterações. O estudo
defende que existe em Portugal uma associação particularmente forte entre
qualificação académica e enquadramento ocupacional (p. 36), dando origem a uma
forte hierarquização credencialista. Esta ocorre, contudo, num contexto em que
o emprego disponível não absorve as qualificações, fazendo com que uma parte da
população mais credenciada só tenha como oportunidade funções menos
qualificadas, ocupando postos de trabalhos intermédios, o que funciona como
forma de compressão salarial e pressão sobre os que detêm qualificações
intermédias, que ocupam postos desqualificados. Esta realidade pode gerar
situações diferenciadas: adequação entre formação e ocupação, mas com vínculo
precário; inadequação entre a formação e a função desempenhada, mesmo com
vínculo adequado à profissão; e adequação entre formação e posto de trabalho,
mas com remuneração reduzida, com as consequências que se imagina nas restantes
esferas da vida.
Ao nível da precariedade contratual, faz-se uma caracterização da evolução na
última década: aumento da contratação a termo, com particular incidência no
setor dos serviços; proliferação do trabalho informal e irregular, nomeadamente
dos falsos recibos verdes; existência de part-timee de pluriatividade,
sobretudo entre jovens estudantes que acumulam formação e trabalho. Um aspeto
interessante é que as contratações regulares (sem termo, a termo incerto ou a
termo certo) são mais frequentes entre os operários e é entre os executantes de
escolaridade superior que mais proliferam as situações de informalidade e
flexibilidade, nomeadamente o falso trabalho autónomo. Um outro elemento é a
confirmação da associação entre o processo de precarização e a emergência do
que se vem chamando de geração low cost (Chauvel,2008): as recompensas
salariais dos jovens precários situam-se abaixo da média praticada para as
mesmas funções em situação de contratação regular.
Tratando-se de uma amostra de jovens com inserções desqualificadas, seria
expectável que se confirmasse a frequência de percursos de escolaridade curtos,
escolhas de cursos com reduzidas oportunidades no mercado de trabalho e
trajetórias dependentes do (fraco) nível de capital social. É interessante
verificar como, no conjunto dos entrevistados, se chega à conclusão que as
redes familiares e de sociabilidade são absolutamente determinantes na obtenção
de emprego, em particular no caso dos jovens mais descapitalizados. As
tendências de alongamento, complexificação e deslinearização dos percursos de
transição entre escola e trabalho são confirmadas por este estudo, sendo que é
no setor dos serviços que aqueles são particularmente longos, sinuosos e
diversos (p. 68).
No que diz respeito à autonomia e aos rendimentos, o elemento que me parece
mais expressivo é o da importância da família-providência. A rede de suporte
familiar, seja relativamente ao apoio económico, ao auxílio com tarefas
domésticas e guarda de crianças, seja mesmo a ajuda em géneros, é determinante
nos processos de autonomização destes jovens. Trata-se aqui não apenas do
adiamento da saída de casa dos pais, que é um dado recorrente ' um estudo
recente revelava mesmo que cerca de 60% dos jovens adultos entre os 18 e os 34
anos vivem na casa dos seus pais (Eurostat, 2010) ' mas ainda, neste caso, de
um prolongamento da dependência em relação aos ascendentes. Mesmo nas situações
em que já existe autonomia residencial, ela é dependente ou pelo menos apoiada
pelos pais. Claro que, também neste domínio, a classe conta: as estratégias de
autonomização variam consoante a escolaridade, a situação contratual e a
remuneração, podendo este apoio familiar funcionar nalguns casos, como no das
classes mais capitalizadas, como forma de proteção num período de espera por
ofertas de emprego mais qualificadas ou mais satisfatórias.
É porventura em relação ao futuro que se verificam as maiores disparidades. Ele
pode ser para alguns jovens, como assinala esta obra, um horizonte fechado a
partir do qual não conseguem perspectivar um caminho ou possibilidades
alternativas (p. 110) ou pode ser, para outros, um campo mais ou menos viável
e realizável de oportunidades (ibidem). A opção dos autores é criar uma
tipologia de projeções cumulativas ' que passam pela mobilização
estrategicamente orientada dos recursos que se possuem ou pela aquisição de
novos recursos ' e de projeções não cumulativas ' independentes de qualquer
mobilização de recursos. A maioria dos entrevistados formulam projeções deste
último tipo, sejam elas contingentes (não posso ver o dia de amanhã, porque
não sei), orientadas para a imobilidade (prolongamento mais ou menos linear da
situação em que se está) ou para a descontinuidade (nomeadamente através de
projetos de emigração). Este capítulo, que é o último do livro, permite
perceber de que forma o tipo de reflexividade destes jovens é marcado pelo
risco de perder o emprego, pelos imprevistos socioeconómicos, pela incerteza,
pelo desgaste do quotidiano. Ou seja, como se situam nos antípodas das teses
mais entusiastas que fizeram a apologia da improvisação reflexiva do futuro e
até do suposto potencial libertador do trabalho flexível e do modelo
biográfico no mundo laboral (estou a lembrar-me, por exemplo, de Giddens e
mesmo de Beck).
Em Portugal, têm-se realizado, nos últimos anos, vários trabalhos importantes
sobre a questão da precariedade laboral, com enfoques diferentes. O campo da
sociologia portuguesa tem produzido dados relevantes e reflexões oportunas
sobre este fenómeno. O livro Jovens em Transições Precáriasé um momento
significativo deste percurso. Para quem, como eu, tem tentado refletir sobre o
cruzamento entre as transformações no mundo do trabalho, o novo regime do
capitalismo marcado pela precariedade, a condição juvenil no nosso país e as
dinâmicas de ação coletiva (movimentos e sindicatos), este livro aguça ainda
mais a vontade de uma investigação que tente desbravar este caminho. Com
efeito, se a precariedade induz dificuldades crescentes de identificação e
mobilização a partir do coletivo de trabalho, se quebra velhas solidariedades
operárias, se se combina com a construção de habitusrealistas e conformistas em
relação ao futuro, a verdade é que, num contexto de agravamento do fosso entre
a crescente escolarização da juventude e a frustração das expectativas de
mobilidade que essa maior qualificação poderia gerar, a precarização, a
dificuldade de autonomização, o alongamento e a complexificação das transições
para a vida adulta geram igualmente sentimentos de frustração e ressentimento
que podem dar origem a fenómenos de ação coletiva. O ano de 2011 demonstrou que
a precariedade é não apenas uma condição laboral e social mas também uma
categoria de mobilização política. Assim sendo, como podem as ciências sociais
contribuir para perceber os processos que produzem essa mobilização? Como
caracterizar as modalidades de ação coletiva que têm sido experimentadas? A
partir de que identidades? Quais as diferenciações e clivagens a que obedecem?
Que narrativas e formas de classificação da realidade se
confrontam na descrição desta realidade? Como reagem a ela as instituições? Eis
algumas outras questões que a sociologia pode e deve tomar como objeto do seu
ofício.