Da Geração à Rasca ao Que se Lixe a Troika: Portugal no novo ciclo
internacional de protesto
Introdução
As mobilizações sociais que têm eclodido desde 2011, de que são exemplo a
Geração à Rascaou o protesto Que se Lixe a Troika, evidenciaram que a cidadania
potencialmente ativa vai muito para além das formas mais clássicas de
organização de interesses nas sociedades contemporâneas ' partidos, sindicatos,
movimentos sociais, Organizações Não Governamentais. Estes acontecimentos
contestatários parecem assumir um caráter fundacional, criando uma cultura e
uma marca identitária próprias. Em função da comunicação em rede e da difusão
na Internet, eles produziram um certo sentido de comunidade imaginada global,
através do qual as experiências de diferentes países se contaminam e inspiram.
Sendo certo que se tratam de fenómenos com motivações, características e
modalidades de ação diversificadas, podemos encontrar elementos comuns: um
discurso centrado na denúncia do sistema económico e na captura das
instituições e agentes políticos pelo poder financeiro; a exigência de mais
ou de uma verdadeira democracia; a juventude precarizada como catalisador de
lutas sociais mais amplas; uma certa recusa da delegação e um ceticismo mais ou
menos ressentido com a ação institucional; a produção de novas referências
plásticas e estéticas; a ocupação transgressiva do espaço público; a
valorização da diversidade de expressão nos protestos de rua; o uso intensivo
das redes sociais; a importância da cultura audiovisual e das novas tecnologias
de informação e comunicação; a busca de formas tendencialmente horizontais de
organização (Hughes, 2011; Pinto, 2011; Taibo, 2011; Writers for the 99%, 2011;
Pickerill e Krinsky, 2012)
Apesar de frequentemente celebrados como sendo uma absoluta novidade, por
contraste com outras formas de protesto e de organização, um estudo mais
cuidado destes fenómenos revela uma disposição para a articulação entre
diferentes atores sociais e uma trajetória de polienvolvimento entre os
protagonistas destes movimentos, que circulam entre velhas e novas militâncias
e acumulam experiências em novas e velhas formas de organização. Neste ensaio,
procuraremos discutir estes fenómenos de mobilização que têm tido lugar em
Portugal, enquadrando-os no contexto da crise capitalista e de instalação das
políticas de austeridade, bem como no ciclo internacional de protesto que se
tem desenvolvido desde o final de 2010 e cujas diferentes expressões têm
simultaneamente pontos de contacto e elementos de diferenciação.
1. Um novo ciclo internacional de protesto
Desde final de 2010 e início de 2011, temos vindo a assistir a um novo ciclo
internacional de mobilizações. Com diferenças significativas nos contextos em
que ocorrem, nas agendas e nas formas de ação, vários dos protestos que têm
eclodido em diversos países partilham um conjunto de características e estão
interligados entre si. Eles revelam, de modo diferenciado, uma crise de
legitimidade dos agentes políticos, um descontentamento generalizado com as
respostas face à crise económica e uma preocupação relativamente aos processos
de precarização laboral que são hoje uma tendência forte à escala global, com
uma expressão muito relevante entre a juventude da Europa do Sul e dos países
árabes.
De formas diversas, a combinação de uma degradação das condições materiais de
uma parte significativa da população, aliada à crise de legitimidade das
instituições políticas responsáveis pela gestão da vida coletiva, é o pano de
fundo desta vaga de mobilizações que teve a sua origem nos países árabes e o
seu começo simbolicamente associado à imolação de um jovem tunisino em dezembro
de 20102, mas que percorreu desde então diferentes países em várias partes do
globo. A experiência da Tunísia e, de modo diferente, a experiência da Islândia
e da sua wikiconstituição3, foram inspiradoras e tornaram-se referenciais para
as mobilizações que se seguiram, porventura também porque, ao conseguirem uma
mudança institucional concreta, mostraram que era possível vencer.
Num livro recente sobre os movimentos sociais na era da Internet, o sociólogo
Manuel Castells tenta identificar os fatores da emergência da revolta na
Tunísia, sugerindo três elementos essenciais: (1) a existência de um
contingente de jovens qualificados e desempregados, capazes de liderarem a
revolta dispensando as tradicionais estruturas de poder e representação; (2) a
existência de uma cultura de ciberativismo muito forte, que permitiu criar um
espaço público crítico do regime ditatorial e com autonomia relativamente à
repressão do Estado; (3) uma taxa de difusão do acesso à Internet
significativa, seja em postos domésticos, seja em cibercafés ou espaços
educativos o que, combinado com a existência de setores juvenis com altas
qualificações e sem emprego, fez da juventude um ator central da revolução
(Castells 2012: 28-29).
No caso tunisino, a primeira das revoluções da Primavera Árabe, não é difícil
aceitar a ideia segundo a qual a existência de uma cultura de Internet feita
de blogs, redes sociais e ciberativismo, foi crucial na capacidade de derrubar
uma ditadura que parecia imutável. Não porque esse processo de mobilização se
tenha desenvolvido apenas no espaço virtual das redes, mas precisamente porque,
ainda seguindo o argumento de Castells, a ligação entre comunicação livre no
Facebook, no YouTubee no twittere a ocupação do espaço urbano criaram um espaço
público híbrido de liberdade que foi uma característica fundamental da rebelião
tunisina, prenunciando os movimentos que teriam lugar noutros países (Castells
2012: 23). Os telemóveis e as redes sociais desempenharam um papel vital na
difusão de imagens e de mensagens que foram importantes para a mobilização. Mas
a rebelião explodiu através da passagem do ciberespaço para o espaço físico,
fazendo com que aquelas ferramentas fossem um meio de expressão e comunicação
da revolta contra o desemprego, a carestia, a desigualdade, a pobreza, a
brutalidade policial, o autoritarismo, a censura e a corrupção. No mundo árabe,
uma nova era de turbulência e sublevação revolucionária teve lugar e a
aspiração democrática levou milhares de pessoas a tomar o destino nas suas mãos
(Khosrokhavar, 2012).
A celebrada Primavera Árabe marcaria assim o início de um conjunto de
mobilizações que começaram na Tunísia, e um pouco antes na Islândia, mas que
depois tiveram expressão no Egito e na sua revolução, em Portugal com a Geração
à Rascae o que se seguiu, em Espanha com as Acampadase os Indignados, na Grécia
com o movimento das Praças, nos Estados Unidos com o movimento Occupy, entre
outros. Estas mobilizações não parecem ser apenas uma sequência de
acontecimentos, mas um conjunto de protestos em interligação e comunicação,
onde os efeitos de contágio e de inspiração se revelam evidentes. Quando propôs
a noção de ciclo de mobilização(cycle of protestou cycle of collective action),
Sidney Tarrow (1995) identificou cinco elementos que dariam corpo ao conceito:
uma intensificação do conflito; a sua difusão geográfica; o desencadeamento de
ações inorgânicas mas também de novas organizações; a emergência de novos
símbolos, interpretações do mundo e ideologias; o alargamento, em cada ciclo de
protesto, do repertório de ação disponível. Ora, parece ser razoável o
entendimento de que vivenciamos um processo deste tipo. Em qualquer um dos
casos ' da Tunísia ao Egito, da Grécia aos Estados Unidos da América, passando
por Portugal ou Espanha ', a ação coletiva intensificou-se, difundiu-se,
apareceram novas modalidades de ação e novas organizações, com referências
comuns a um nível global e dinâmicas de solidariedade que ocorrem à escala do
Estado-Nação, mas se mantêm conectadas à escala internacional em tempo real
pelo espaço da Internet. Desse ponto de vista, parece existir uma espécie de
efeito de cicloque agiu pelo contágio e onde as diferentes escalas geográficas
' local, nacional, regional e global ' se articularam. Na Tunísia, na praça do
Governo para onde confluíram os manifestantes nos primeiros dias de 2011, havia
palavras de ordem em árabe, inglês e francês, revelando uma certa disposição
internacionalista do protesto, que parece não estar desligada da consciência da
importância do apoio da comunidade internacional. Por sua vez, nas primeiras
ocupações da praça Tahrir, na capital do Egito, gritava-se Tunísia é a
solução. Nos Estados Unidos da América, a primeira convocatória onlineque
daria origem ao movimento Occupy, que data de julho de 2011, incitava à
ocupação de uma praça na baixa nova-iorquina, coração do capitalismo
financeiro, perguntando Are you ready for a Tahrir moment?. Nas mobilizações
europeias, a silenciada revolução islandesa servia como exemplo de
resistência cidadã ao ataque do setor financeiro sobre os estados: Menos
Irlanda, mais Islândia, podia ler-se em cartazes durante as mobilizações em
Portugal. Em meados de fevereiro de 2012, em mais de uma dezena de países houve
concentrações cuja palavra-de-ordem era Somos todos gregos.
2013 assistiu à continuação destes processos. No Egito, no verão deste ano, uma
nova vaga de manifestações pôs em causa o regime autoritário apoiado pelas
potências ocidentais, que foi a solução política que sucedeu aos protestos
anteriores. Na Europa, as mobilizações continuam ao ritmo de novos pacotes de
austeridade. Mas este ano viu também emergir mobilizações inéditas em países
cujas condições económicas e políticas são bastante diferentes das que existiam
quer nas ditaduras árabes quer nos estados europeus mergulhados na austeridade.
Em maio, na Turquia ' país recorrentemente louvado, na Europa, pela sua
prosperidade económica e pelo seu islamismo moderado ', o abate de centenas
de árvores e a destruição de um jardim para construir um centro comercial no
centro de Istambul motivou um ato de resistência que foi a faúlha que incendiou
a revolta. Erguendo-se contra a comercialização do espaço público, ela
rapidamente se transformou num amplo movimento contra o autoritarismo político
e religioso, de oposição ao primeiro-ministro Erdogan e pela defesa da
liberdade de expressão.
No verão de 2013, no Brasil, mobilizações de centenas de milhares de pessoas
ocuparam as ruas das principais cidades. Iniciado pelo Movimento Passe Livre,
que contestava o aumento do preço dos transportes públicos e reivindicava o
direito à mobilidade no espaço urbano, o movimento foi o espaço de expressão de
outras agendas relacionadas com a questão urbana ' como a segregação espacial,
a política dos mega- eventos (no caso, em particular, os Jogos Olímpicos), as
lógicas de gentrificação ' ou com a crítica da representação política. Tendo
lugar num país em pleno crescimento económico, onde se assiste à expansão da
classe média e onde, na última década, se ampliaram alguns direitos sociais, os
protestos parecem ter acontecido de surpresa, pelo menos para os mais
desatentos. Para Ruy Braga (2013), tratam-se de revoltas de quem está
empregado, mas não vê associadas a esse trabalho perspetivas para o futuro, em
resultado dos baixos salários, das precárias condições de vida nas periferias
da cidade, da perseguição policial às famílias trabalhadoras, o que faz com
que, como afirmou na apresentação do livro4, uma vitória individual da
conquista de um emprego formal se transforme num alarmante estado de
frustração social. Com uma forte presença dos jovens, as denominadas jornadas
de junho brasileiras têm em comum com os outros acontecimentos a que nos vimos
referindo não só esse protagonismo mas também a centralidade da ação direta e
da ocupação do espaço público (Harvey et al., 2013), bem como terem-se feito à
margem das estruturas tradicionais. Mas os significados destes protestos, que
abalaram o aparente clima de prosperidade e paz social naquele país, estão
obviamente ainda em disputa, não apenas no campo sociológico mas no próprio
campo dos agentes que os protagonizaram5.
Em qualquer um destes exemplos, a ação coletiva não nasceu espontaneamente do
agudizar das dificuldades e do agravamento das condições de vida, mas precisou
de aproveitar momentos e oportunidades políticas, implicou uma mobilização
emocional capaz de transformar o desespero em raiva e a revolta em entusiasmo e
espaços de comunhão e de reconhecimento coletivo. O espaço público híbrido
(Castells, 2012) constituído neste ciclo de protesto, formado da articulação
entre a ação nas redes sociais onlinee a ocupação do espaço público físico das
cidades, deu origem a novas escalas de ação, a novas formas de mobilização e
organização, marcadas pela cultura da rede, pela comunicação horizontal, por
mecanismos colaborativos de trabalho, pela tentativa de evitar lideranças, pela
mistura e combinação de referências internacionais. Para Slavoj Zizek, estes
diferentes movimentos têm a uni-los uma oposição a diferentes aspetos e
configurações do capitalismo global, que expande o reino do mercado através da
mercantilização do espaço público e dos serviços sociais (saúde, educação...) e
que se apoia em formas de poder político autoritário. Na sua opinião, todos
estes protestos lidam com pelo menos duas questões: uma económica, de maior ou
menor radicalidade (de temáticas que variam de corrupção e ineficiência até
outras francamente anticapitalistas), e outra político-ideológica (que inclui
desde reivindicações pela democracia até exigências para a superação da
democracia multipartidária usual) (Zizek, 2013). Será que estes elementos
comuns nos permitem falar de um novo tipo de ação coletiva?
2. Portugal: precarização, sociedade da austeridade e desafeição pelas
instituições políticas
Em Portugal, este ciclo teve o seu momento fundacional com a manifestação do 12
de março de 2011. Organizada a partir de um apelo inicial no espaço dos fluxos
da Internet, foi o primeiro protesto convocado fora de qualquer estrutura
tradicional que encheu as ruas de várias cidades do país, tendo tido a adesão
de cerca de meio milhão de pessoas. A identificação de uma condição comum
associada à precariedade entre os jovens ' a denominada Geração à Rasca'
produziu um sentimento de união e de reconhecimento que ultrapassou o
ciberespaço e se materializou na ocupação do espaço público urbano. Essa
manifestação foi intergeracional na sua composição e muito diversa no tipo de
reivindicações que ali se exprimiram, com as questões do trabalho e do emprego
a terem predominância, mas onde o descontentamento face ao Governo, aos agentes
políticos em geral e à corrupção tiveram também um peso relevante6.
No contexto internacional, o caso português tem especificidades relacionadas
com a condição semiperiférica do país, com os ritmos próprios do seu processo
político, da sua história e da sua estrutura institucional. Há todavia um
conjunto de características que aproximam a manifestação do 12 de março de
outros fenómenos que compõem este ciclo de ação coletiva, designadamente a
informalidade, a procura de horizontalidade, a presença de lógicas de
contaminação e fluxos transnacionais, o protagonismo da juventude qualificada e
precária ou desempregada, a utilização intensiva das redes sociais, a criação
desse espaço público híbrido que combina onlinee offline, bem como uma certa
fluidez programática e um desejo de experimentação democrática.
Este ciclo de protesto iniciado em Portugal a 12 de março de 2011 tem tido uma
sequência feita de altos e baixos, mas é possível e útil identificar algumas
das datas mais marcantes. Por ordem cronológica, o 15 de outubro de 2011 (Dia
de Ação Global), a greve geral de 24 de novembro de 2011 (organizada
conjuntamente pela CGTP e pela UGT), a Primavera Globalde 12 de maio de 2012, o
15 de setembro de 2012 (Que se Lixe a Troika), o 13 de outubro de 2012
(manifestações culturais do Que se Lixe a Troika) e a greve geral com dimensão
europeia de 14 de novembro de 2012 (que aconteceu em Portugal, Grécia, Espanha,
Malta e Chipre). Trata-se de uma dinâmica marcada por diferentes lógicas e
acontecimentos, cuja importância para cada mobilização é diversa e cuja
temporalidade nem sempre é coincidente. Todavia, e numa tentativa de
sistematização, poderíamos caracterizar o pano de fundo no qual irrompe esta
onda de ação coletiva a partir de três grandes tendências: (1) a precarização
do trabalho e a instalação em força do desemprego de massa, nomeadamente entre
os mais jovens; (2) a crise económica e a estratégia austeritária; (3) a des-
democratização da democracia e a desafeição relativamente à representação
política e institucional.
Comecemos pelo primeiro. Desde há mais de uma década, o desemprego estrutural e
a precariedade vêm-se instalando como um regime permanente e como a tendência
dominante de evolução do capitalismo (Castel, 2009). O processo de precarização
é uma das tendências mais fortes da grande transformação (para retomar a
expressão celebrizada por Karl Polanyi) que está em curso no regime do
capitalismo, que afeta as suas formas de produção, de troca e o seu modo de
regulação. Na última década, em Portugal, ele acentuou-se e ganhou novos
contornos. O desemprego era, no início deste ciclo de protesto, superior a 14%.
No quarto trimestre de 2012, atingia já 16,9%, ou seja, cerca de um milhão de
pessoas, e entre os jovens (15 a 24 anos) era de 40% (INE, 2013). No nosso
país, a percentagem de trabalho precário é próxima dos 30% do volume global de
emprego. De acordo com fontes oficiais, em 2010 havia 37,6% de trabalhadores na
faixa etária dos 15-34 anos com contratos a prazo e, se considerarmos o grupo
etário de 15-24, esta percentagem passa para perto de 50% (Carmo, 2010;
Estanque, Costa e Soeiro, 2013). O trabalho temporário foi o que mais cresceu
neste período, com maior expressão nos trabalhos desqualificados no setor dos
serviços e do comércio. De acordo com os dados do IEFP (2011), abrangia 280 mil
trabalhadores em 2010, mas é provável que chegue hoje, na realidade, a quase
meio milhão pessoas e a tendência é que este enquadramento se vá expandindo,
dado que tem sido a única modalidade de emprego a aumentar em termos absolutos
em contexto de crise. Entre os jovens, a pluriatividade e o trabalho informal
ou clandestino são um fenómeno de larga escala (Guerreiro e Abrantes, 2007;
Alves, Cantante, Baptista e Carmo, 2011), multiplicando-se os famosos ganchos
e biscates (Pais, 2001).
Por outro lado, o peso da economia informal e subterrânea e a persistência de
traços característicos dos regimes pré-fordistas de organização do trabalho não
são em Portugal um mero resquício do passado, mas um fator estrutural e
estruturante das relações económicas e sociais, justamente responsáveis por uma
parte não negligenciável das situações de subemprego e de emprego desprotegido
e sem fatores de satisfação e reconhecimento ao nível do seu conteúdo (Pinto,
2005). Esta desregulação de factocria também verdadeiras zonas francas do
direito laboral e é uma das patologias da democracia laboral em Portugal
(Ferreira, 2009).
A massificação da precariedade tem consequências relevantes em termos de modo
de vida, nomeadamente para a juventude, particularmente exposta ao fenómeno.
Ela significa, entre outros processos, (1) uma maior vulnerabilidade a
processos de exclusão persistentes, (2) o alongamento, a deslinearização e a
complexificação das transições juvenis, (3) a generalização de estados de
stand-byem termos de projetos de vida, (4) a dificuldade de emancipação e
ausência de autonomia habitacional (com o prolongamento ' e mesmo o regresso '
a casa dos pais), (5) o desfasamento entre as expectativas de mobilidade social
associadas a maiores níveis de qualificação e a estrutura objetiva de
oportunidades do mercado de trabalho, (6) a sobre-exposição ao subemprego e à
ausência de acesso a proteção social, (7) a emigração forçada, (8) o
esgotamento emocional resultante da permanente imprevisibilidade do futuro
(Alves, Cantante, Baptista e Carmo, 2011; Soeiro, 2012; Nico, 2012).
Para além da precarização, a segunda grande característica deste tempo é a
crise financeira, rapidamente transubstanciada em crise das dívidas soberanas
em resultado da recapitalização, pelo Estado, do setor financeiro, cujo efeito
foi transferir para os cidadãos os custos dessa recuperação (Reis e Rodrigues,
2011). Estas orientações fazem parte de uma estratégia de austeridade, que
corresponde a uma espécie de política de requisição civil, segundo a qual as
soluções para a crise se encontram através dos indivíduos e das suas privações
subjetivas e objetivas (Ferreira, 2011: 119). Assim, como defende Casimiro
Ferreira (2011) a sociedade da austeridade opera através da combinação de
atores eleitos e não eleitos (no caso português, o Governo e a Troika),
recorrendo a um direito de exceção e a uma forma de governação orientada por um
processo de legitimação baseado no medo. Os seus efeitos políticos são o
desmantelamento do Estado Social, pela tripla via da privatização dos bens
públicos, da individualização dos riscos sociais e da mercadorização da vida
social. Na sociedade da austeridade, à fórmula conhecida de contenção das
despesas do Estado, privatização do setor público, aumento dos impostos,
diminuição dos salários e liberalização do direito do trabalho corresponde uma
lógica sociológica de naturalização das desigualdades (Ferreira, 2011: 120).
Deste modo, é invocado um Estado de Emergência Social cuja retórica assenta
no clamor pelos sacrifícios em nome do bem comum, resultando contudo evidente
que são precisamente as classes subalternas e os escalões mais pobres aqueles
que têm sido os sacrificados neste processo de transferência massiva de
rendimentos do trabalho para o capital. Os resultados económicos das políticas
de austeridade são, por isso, a compressão forte da procura e do poder de
compra, a recessão, a descida de salários, o acréscimo de assimetrias na
relação laboral, a redução da capacidade produtiva e o aumento das
desigualdades (Reis, 2012: 33-34).
A esta dinâmica de austeridade soma-se uma outra, aliás reforçada pela
instalação deste estado de exceção: a desafeição e um distanciamento
relativamente à representação política e às suas instituições. Em Portugal, um
recente estudo sobre a qualidade da democracia revelava que 78% dos cidadãos
inquiridos estavam de acordo ou muito de acordo com a ideia segundo a qual os
políticos preocupam-se apenas com os seus próprios interesses e as decisões
políticas no nosso país favorecem sobretudo os grandes interesses económicos,
sendo evidente a desconfiança face aos partidos políticos pela cartelização do
Estado e aparecendo os movimentos sociais de protesto acima destes enquanto
capazes de dar voz às preocupações populares (Pinto, Magalhães, Sousa e
Goburnova, 2012: 35). Ao mesmo tempo, as expectativas em relação ao Estado e à
democracia enquanto sistema de redistribuição de bens são muito altas, o que
reforça as frustrações face à incapacidade das políticas públicas responderem
aos principais problemas identificados nesse mesmo inquérito, a saber, o
desemprego (37%), a pobreza e a exclusão (16%), a dívida do Estado (13%) e o
crescimento económico (11%) (Pinto, Magalhães, Sousa e Goburnova, 2012: 29). No
contexto europeu ' e tivemos os exemplos eloquentes da Grécia e da Itália ' não
apenas fica a sensação de impotência ou da complacência dos poderes eleitos em
relação às lógicas dos mercados financeiros, mas foi possível assistir a uma
espécie de golpes de estado pós-modernos através dos quais, no período
imediatamente posterior à eclosão da crise, a sua gestão passou por uma
estratégia pós-democrática que operou através da nomeação ou imposição de
governos tecnocráticos não eleitos (Sevilla, Fernandes e Urbán, 2012).
O exemplo português é pois interessante para refletir sobre as condições da
ação coletiva em sociedades marcadas, do ponto de vista económico, pela
recessão e por um processo galopante de precarização, do ponto de vista
político pela fragilização da democracia face às agendas das instituições
internacionais e dos mercados financeiros e do ponto de vista social por
lógicas fortes de individuação.
3. Do 12 de março à greve geral europeia: retomando a cronologia dos
acontecimentos
Algumas perspetivas sociológicas mais estruturalistas tendem a desvalorizar as
abordagens centradas no acontecimento ou na exploração de episódios
concretos, como se estas estivessem mais próximas da arte do que da ciência.
Ora, como defende Luc Boltanski num artigo recente acerca das teorias da
revolta, a reabilitação do acontecimento e do episódico é uma tarefa importante
para as ciências sociais (Boltanski, 2012: 108). Com efeito, o momento em que
se desencadeia uma revolta é sempre do domínio do imprevisível, é sempre uma
singularidade. Os acontecimentos catalisadores das mobilizações podem ser tão
diversos quanto a representação de uma música (no caso português ou no caso
islandês), um ato desesperado (a autoimolação no caso tunisino) ou a indignação
face à violência da repressão policial (como aconteceu em junho de 2010 no
Egito, ou um ano e meio antes, na Grécia, com o assassinato do jovem Alexis
Grigoropoulos). Por isso, os fenómenos de protesto e os seus ciclos devem ser
apreendidos levando em linha de conta quer os contextos históricos e as
tendências de longa duração que ajudam a explicá-los (no caso, por exemplo, as
transformações no trabalho, a imposição da austeridade e o esvaziamento da
democracia), quer a densidade dos episódios concretos que, como diria Walter
Benjamin, fazem explodir a continuidade da história, introduzindo o
acontecimento de forma disruptiva no tempo homogéneo e vazio dos relógios
(Benjamin, 2012:139).
Em Portugal, mais do que movimentos sociais ' que implicariam a existência de
um adversário claramente identificado, de um objetivo comum, de formas de
mobilização de recursos capazes de sustentar uma luta prolongada e de modos de
organização com alguma continuidade ' este ciclo de ação coletiva tem sido
marcado sobretudo por grandes manifestações e acontecimentos contestatários.
Vale por isso a pena tentar enumerá-los brevemente, tentando identificar a
estrutura de oportunidades políticas que os explica e procurando reconstituir
as ligações entre essas mobilizações e o ciclo internacional nas quais parecem
integrar-se, quer do ponto de vista das suas referências quer relativamente ao
seu repertório de ação.
O 12 de março correspondeu a uma gigantesca manifestação onde convergiram a
juventude atingida pela precarização, as gerações mais velhas também precárias
ou solidárias, organizações sociais (feministas, LGBT, entre outros), setores
organizados da esquerda anticapitalista (como o Bloco de Esquerda), alguns
setores da direita (como a JSD), e onde marcaram também presença, por exemplo,
o líder à época da maior central sindical portuguesa (CGTP), Carvalho da Silva,
e até alguns elementos de extrema-direita. Essa amplitude na rua não significa
que a convocatória do protesto não tivesse contornos definidos ou que os seus
organizadores ' os quatro jovens que criaram o evento no Facebook' não tenham
insistido nessas características, a saber: uma manifestação democrática,
laica, apartidária e pacífica, centrada em torno da exigência de maior
transparência e de respostas contra o desemprego e a precariedade da juventude,
rejeitando apropriações, combatendo o discurso antissindical ou a narrativa
liberal da guerra de gerações. O 12 de marçoteve a capacidade de marcar a
agenda política e determinar os temas do debate público, sobretudo em torno das
questões da precariedade. Contudo, vale a pena discutir a sua eficácia na
marcação dos termos desse debate. A fluidez programática foi frequentemente
considerada simultaneamente a sua força e a sua fraqueza, na medida em que as
consequências imediatas destas mobilizações ficam dependentes do modo como
reagem os agentes institucionais e como se redefinem as relações de força no
campo político.
A 15 de maio de 2011, mais de 100 mil pessoas responderam ao apelo da
Democracia Real Ya!, um pouco por todo o estado espanhol, com manifestações
expressivas em Barcelona, Madrid ou Sevilha. Na sequência destas manifestações
de 2011, cerca de 200 pessoas decidem acampar na Puerta del Sol, dando origem
às Acampadas, que se estenderiam depois a várias cidades espanholas (Granada,
Barcelona, Sevilha, Bilbao, Compostela, entre outras). Em Portugal, houve uma
tentativa de replicar este fenómeno, mas as acampadas não tiveram uma expressão
forte como no Estado vizinho. A acampada do Rossio, em Lisboa, começou no dia
20 de maio e contou, nessa noite, com 37 pessoas que dormiram na praça. Durou
12 dias, mas nunca atingiu uma dimensão próxima da que teve em Espanha, e os
grupos que se assumem da sua continuidade (como os Indignados Lisboa) têm uma
dimensão muito reduzida do ponto de vista numérico. Em 10 de julho, elementos
das acampadas promoveram uma reunião internacional em Lisboa que juntou 130
ativistas e cujo principal resultado prático foi a convocação da jornada de 15
de outubro.
A 15 de outubro teve lugar uma manifestação internacional pela mudança
global, também chamada Global Day of Action. A data coincidia,
propositadamente, com os cinco meses da primeira acampada em Espanha. O
protesto teve lugar em 951 cidades em 82 países do mundo. Na Europa, as maiores
manifestações foram em Espanha, Portugal e Itália. Em Madrid, estiveram cerca
de 500 mil pessoas segundo os organizadores, em Barcelona 250 mil, em Sevilha
50 mil, em Bilbao mais de 10 mil. Em Portugal, o 15 de outubrobeneficiou não
apenas da sua dimensão de convocatória internacional, mas ainda de outros dois
fatores. Por um lado, o anúncio feito pelo primeiro ministro, nas vésperas da
manifestação, de um novo programa de austeridade que implicava o corte do
subsídio de férias e de natal (isto é, na prática, de dois salários). Por
outro, a visibilidade e o novo fôlego trazido pelo movimento Occupy Wall
Street, que tivera início em meados de setembro no coração do bairro financeiro
de Nova Iorque, um dos centros nevrálgicos do sistema capitalista global, e que
adotou essa data como sua também. Em relação ao 12 de março, destacam-se duas
diferenças importantes. Por um lado, uma convocatória mais definida
politicamente. Por outro, a presença forte de setores politicamente
organizados, sendo o manifesto assinado não por alguns indivíduos mas sim por
41 associações ou coletivos, sobretudo ligados às organizações que protagonizam
uma parte importante dos movimentos sociais existentes no país (GAIA, Umar,
Panteras Rosa, SOS Racismo, Zeitgeist, Opus Gay, Pagan, Associação José Afonso,
entre outras) e organizações ligadas à esquerda radical (nomeadamente à
esquerda extraparlamentar). A manifestação teve lugar em várias cidades, entre
as quais Angra do Heroísmo, Braga, Coimbra, Évora, Faro, Ponta Delgada e
Santarém e Porto. Em Lisboa a organização apontou para 100 mil o número de
pessoas que desfilaram pelas ruas.
A 24 de novembro ocorreu a greve geral convocada pelas duas centrais sindicais,
CGTP e UGT (a sétima greve geral desde 1974 e a terceira convocada em conjunto
por ambas as centrais). As principais razões invocadas prendiam-se com as
medidas de austeridade contidas na proposta de Orçamento de Estado anunciada
pelo Governo em meados de outubro de 2011, em particular os cortes de salário,
a eliminação de feriados e o aumento do horário de trabalho (através, por
exemplo, do aumento de meia hora por dia de trabalho). Com uma adesão
significativa, sobretudo no setor dos transportes e nos serviços públicos, a
greve foi considerada pelos porta-vozes sindicais como a maior Greve Geral de
sempre, com os trabalhadores a demonstrarem a sua indignação e o seu protesto
pelo brutal ataque que o governo e agentes estrangeiros estão a fazer aos seus
direitos, à democracia e à liberdade 7. Um dado relevante foi o facto de a
greve ter contado com o apoio explícito e a mobilização de alguns dos
movimentos envolvidos na convocatória do 15 de outubro. Nesse dia, houve pela
primeira vez uma manifestação convocada pelas organizações sindicais. Essa
decisão inédita, que permitiu que a greve tivesse uma expressão de rua, não é
estranha à pressão dos próprios movimentos e à sua insistência na ocupação do
espaço público. A convergência, ainda que não isenta de tensões, do movimento
sindical e de outros protagonismos sociais, como estudantes e movimentos de
trabalhadores precários, que se juntaram frente à Assembleia da República, foi
o testemunho de uma aliança concreta entre os chamados velhos e novíssimos
movimentos, contrariando a ideia de uma absoluta concorrência ou incomunicação.
A 12 de maio de 2012 teve lugar a Primavera Global, um protesto Pela
Democracia Global e pela Justiça Social. Juntando alguns dos protagonistas das
anteriores mobilizações, e em face de divergências internas e de um certo
esvaziamento da plataforma 15 de outubro, criou-se uma nova plataforma para
convocar este protesto, que aconteceu em Braga, Coimbra, Évora, Faro, Porto,
Santarém e Lisboa. Com uma adesão muito mais modesta, em termos quantitativos,
que os protestos anteriores, esta data coincidiu com o aniversário do movimento
das praças em Espanha.
15 de setembro de 2012 é a data de um novo protesto. Um grupo de 29 cidadãos
lançou uma convocatória nas redes sociais para uma manifestação nesse dia sob o
lema Que se lixe a Troika! Queremos as nossas vidas de volta!. No manifesto da
iniciativa podia ler-se um diagnóstico muito crítico sobre as escolhas
políticas recentes: depois de mais um ano de austeridade sob intervenção
externa, as nossas perspetivas, as perspetivas da maioria das pessoas que vivem
em Portugal, são cada vez piores porque a austeridade que nos impõem e que
nos destrói a dignidade e a vida não funciona e destrói a democracia. O apelo
à insubmissão cidadã ' se nos querem vergar e forçar a aceitar o desemprego, a
precariedade e a desigualdade como modo de vida, responderemos com a força da
democracia, da liberdade, da mobilização e da luta ' acabou por ter eco e
materializar-se em mais de 30 manifestações que terão juntado cerca de um
milhão de pessoas em várias cidades portuguesas.
Esta data foi aquela que teve uma participação mais massiva desde o início
deste ciclo de protesto iniciado em 2011, quer em termos de extensão
territorial quer de adesão, ultrapassando, segundo vários analistas, as
manifestações ocorridas no 1.º de maio de 1974. Uma das razões que explica o
sucesso da mobilização prende-se com o anúncio, pelo Governo, de alterações à
Taxa Social Única, reduzindo as contribuições patronais para a segurança
social, aumentando a proporção das contribuições dos trabalhadores e tendo
associado um aumento do IVA. Esta medida gerou uma onda de indignação muito
expressiva, merecendo a oposição de setores que tradicionalmente se opunham à
estratégia e ao programa político do Governo (centrais sindicais, partidos da
oposição), mas também de outro tipo de atores sociais, como os representantes
dos comerciantes (por exemplo, a Confederação do Comércio e Serviços de
Portugal), alguns grandes empresários e várias figuras destacadas do bloco
social que apoia o Governo das Direitas, entre as quais dirigentes e ex-
dirigentes do PSD e do CDS. Na sequência desta manifestação e de um aparente
esboroamento do apoio social do Executivo, é convocado um Conselho de Estado,
de onde saem indicações, por parte do Governo, de uma disponibilidade para
estudar alternativas à medida, nomeadamente sob a forma de aumento de impostos.
Na sequência do sucesso desta mobilização, o grupo Que se Lixe a Troikaconvocou
para 13 de outubro novos protestos, desta vez sob a forma de manifestações
culturais, que acabariam por ocorrer em 23 cidades (nomeadamente Porto,
Coimbra, Braga, Aveiro, Viseu, Faro, Viana do Castelo, Beja, Portimão e
Lisboa), contando com a adesão de figuras muito significativas do mundo das
artes do espetáculo e do audiovisual. No manifesto, lido no próprio dia pelos
organizadores, afirmava-se No dia 15 de setembro, rompemos o silêncio e
enfrentámos o medo. O Governo tremeu. O povo derrotou a política da Troikae a
TSU, mas ainda não vencemos a guerra e lançava-se um apelo à participação em
todas as formas de resistência e pressão que nos próximos 15 dias vão tomar
forma, até derrubarmos este orçamento, esta política e este governo. A escolha
do dia teve também uma simbologia no quadro das referências transnacionais do
protesto, dado que, nesse mesmo dia, em centenas de cidades do mundo, teve
lugar o Ruído Global (Global Noise) contra as políticas de austeridade.
A primeira greve geral com dimensão europeia aconteceu a 14 de novembro de
2012. Organizada pela Confederação Europeia dos Sindicatos sob o lema
"Pelo emprego e a solidariedade na Europa, não à austeridade",
mobilizou cerca de 40 organizações sindicais, através da paralisação em
Portugal, Grécia, Espanha, Malta e Chipre e de protestos e manifestações
importantes em vários outros países como França ou Bélgica. Em Portugal,
juntaram-se aos sindicatos no apelo à mobilização organizações e movimentos
como os Precários Inflexíveis, os Intermitentes do Espetáculo, os Estudantes
pela Greve, a Plataforma 15 de outubro, os estivadores, os Cidadãos pela
Dignidade ou o Movimento 12 de março. A greve ficou marcada pela intervenção
policial realizada frente ao Parlamento, com a detenção de centenas de
manifestantes em condições de legalidade duvidosa, no que foi considerado pelos
movimentos como uma operação política e policial, que pretendeu por em causa
o direito de manifestação, criminalizar a contestação social e fazer esquecer
as medidas de austeridade imposta8.
4. Hipóteses prévias de interpretação sociológica sobre o atual ciclo de ação
coletiva em Portugal
A mera descrição deste conjunto de acontecimentos e de experiências de
mobilização seria insuficiente para construir uma interpretação sobre o seu
significado sociológico no quadro do ciclo de ação coletiva a que nos vimos
referindo. Assim, pretendemos de seguida, a partir deles, identificar algumas
características e enunciar de modo provisório e aproximativo alguns debates,
procurando salientar os elementos latentes, as emergências, as potencialidades
e as tendências que estas mobilizações parecem revelar.
1. Naquele que acabou por tornar-se o paradigma dominante de interpretação dos
novos movimentos sociais (Touraine, 1978; Melucci, 1980), vingou a ideia
segundo a qual os valores pós-materialistas e as questões identitárias
estariam, desde as décadas de 1960 e 1970, no centro das novas formas de
mobilização social. Na análise da ação coletiva da juventude, essa centralidade
das questões pós-materiais foi várias vezes enfatizada. Contudo, um dos
elementos mais fortes do atual ciclo de protesto é o regresso das questões
materialistas, nomeadamente relacionadas com o trabalho e o emprego, ao topo
das preocupações e das causas da indignação das pessoas, constituindo-se como
poderosos fermentos da ação coletiva.
Nos dias anteriores à manifestação do 12 de março, os organizadores fizeram um
apelo para que cada participante levasse consigo, no próprio dia da
manifestação, uma folha A4 ou um cartaz que identificasse um problema e
apresentasse uma solução. Estes documentos seriam depois remetidos aos
responsáveis políticos. Cerca de 2 mil pessoas entregaram esses papéis aos
organizadores, que os depositaram no Parlamento para que os deputados pudessem
consultá-los. Dados preliminares de um estudo que realizei a partir das folhas
entregues na Assembleia da República revelam alguns elementos interessantes9.
Em primeiro lugar, os temas sócio-laborais são, de longe, aqueles que mereceram
mais referências nos protestos da Geração à Rasca. Cerca de metade das
referências (49%) são sobre trabalho, sendo que, dentro desta categoria, os
recibos verdes, a precariedade em geral, os estágios não remunerados e o
desemprego são as categorias mais presentes. Estes documentos revelam também
que as questões do sistema político (14%) e da transparência e combate à
corrupção (9%) estão entre as mais mencionadas sendo que, dentro destas, a
crítica ao nepotismo e às cunhas, aos privilégios dos políticos e a
redução do número de deputados são das mais frequentes.
Este mesmo elemento pode ser encontrado nas outras mobilizações. No 15 de
outubro e na greve geral de novembro de 2011, teve centralidade a rejeição dos
cortes salariais anunciados e das políticas de austeridade. No 15 de setembro,
foi muito relevante, em termos da mobilização, a oposição à perda de salário e
de rendimento para os trabalhadores que implicava a proposta governamental de
alteração das contribuições para a segurança social. A primeira característica
deste ciclo parece ser, assim, o regresso das questões materiais como os
elementos centrais da mobilização política e da construção de identidades de
luta. Às transformações associadas ao trabalho, caracterizadas sobretudo pela
instalação de taxas de desemprego inéditas e por um galopante processo de
precarização das relações laborais, somam-se as dinâmicas introduzidas pelas
políticas de austeridade, cujos efeitos passam pelo corte de salários e apoios
sociais, pelo encolhimento das funções sociais do Estado e pelo agravamento do
problema do endividamento, resultado da transformação da crise do sistema
financeiro numa crise de dívidas soberanas dos Estados.
2. Estes protestos não se dirigem apenas ao funcionamento da economia, mas são
reveladores, também, de uma crise de legitimidade das instituições políticas.
Com efeito, se este ciclo de mobilizações se iniciou com movimentos
democráticos em países do chamado mundo árabe cujos regimes políticos eram
claramente autoritários, a sua expressão nos países do Sul da Europa ou o modo
como emergiu do outro lado do oceano, nos Estados Unidos da América, faz
transparecer uma desconfiança dos cidadãos relativamente aos responsáveis
políticos e a exigência de uma democracia real (para recorrer à expressão dos
Indignadosespanhóis). A diversidade em termos políticos e até uma certa fluidez
programática podem ser identificados em vários destes protestos. Percorre-os,
sem dúvida, um descontentamento acentuado com as formas amputadas da democracia
atual, que se dirige em relação ao Estado e às instituições. Mas estas
mobilizações trouxeram uma dimensão nova, que é um desejo de experimentação
democrática. Em espaços de autonomia e com práticas assembleárias e
horizontalistas, essa experimentação tenta prefigurar no presente o tipo de
democracia de alta intensidadepela qual se luta, numa tensão por vezes
problemática por vezes criativa entre o agora e o futuro, o institucional e as
práticas insurgentes e disruptivas.
3. Ainda que de forma diferenciada, a Internet e os dispositivos de comunicação
sem fios desempenharam, neste ciclo de lutas, um papel fundamental, não apenas
como meios de comunicação, mas como elementos que prefiguram as formas de
organização, de deliberação e de participação políticas, dando lugar a novas
práticas colaborativas, à reinvenção democrática e à abertura de novos
horizontes políticos (Alcazan et al., 2012). A reapropriação multitudinária das
redes sociais e da comunicação sem fios pode ser caracterizada como um
mecanismo de auto-comunicação de massas (Castells, 2012). A produção da
mensagem é decidida autonomamente pelo emissor, mas este comunica com muitos,
potencialmente com milhões. Dependendo da difusão através da Internet e das
redes sem fio, utilizadas como plataformas de comunicação digital foi possível
criar, em muitas circunstâncias, fenómenos virais.
As redes de comunicação virtual permitiram que se organizassem protestos de
massa à margem das estruturas tradicionais pré-existentes e que se construíssem
espaços públicos autónomos, constituindo-se como fatores determinantes do
empoderamento dos indivíduos. Foram, além disso, uma condição indispensável da
contaminação internacional de uns movimentos por outros. A ocupação de espaços
públicos como ruas, praças, edifícios simbólicos ou outros, aliada aos espaços
virtuais ' redes sociais, fóruns participativos, aplicações de telefones ou
outros dispositivos ' criou novas esferas públicas. Estas, seja nas redes de
Internet seja nos espaços libertados das praças ocupadas ou das Acampadas,
foram uma fonte de autonomia imprescindível, ao potenciar processos de
comunicação que escapavam ao controlo daqueles que detêm o poder institucional.
4. À semelhança de outros países, a juventude portuguesa tem estado entre os
segmentos da população que mais se ressente com um contexto de recessão
económica e encontra-se particularmente desprotegida, do ponto de vista sócio-
laboral, para poder enfrentar esta conjuntura com um mínimo de segurança. Não
surpreende, por isso, que os jovens, em particular os jovens com altas
qualificações e com uma inserção subalterna no mercado de trabalho, estejam
entre os mais ativos protagonistas das primeiras mobilizações e que tenham
conseguido ser catalisadores de um descontentamento geral. O sentimento de
perda de qualidade de vida, seja em relação a níveis anteriormente
experimentados, seja tomando por referência as expectativas ou aquilo que
legitimamente se esperaria dado o acréscimo e o investimento em qualificação, é
um dos fatores que ajuda a explicar o atual ciclo de mobilizações. Mas a
tendência é para que os próprios organizadores dos protestos sejam
crescentemente diversos, nomeadamente do ponto de vista geracional. Estes
segmentos escolarizados e precários, cujos limites etários se vão estendendo
cada vez mais, têm revelado uma desconfiança em relação a formas tradicionais
de organização, como os sindicatos e os partidos.
5. A eclosão de fenómenos de mobilização inorgânica com grande capacidade de
atração da massa dos descontentes tem reconfigurado o campo do protesto,
obrigando partidos e organizações sindicais a posicionarem-se, numa relação
marcada por ambiguidades, tensões e disputas. Como salienta Boaventura Sousa
Santos (2011: 106), estes fenómenos evidenciaram que as formas de organização
de interesses nas sociedades contemporâneas (partidos, sindicatos, movimentos
sociais, ONG) não captam senão uma pequena faixa da cidadania potencialmente
ativa e inauguraram por isso um novo pólo de contestação. Este facto coloca
desafios importantes aos atores sociais que tradicionalmente representam os
interesses dos grupos subalternos, como sindicatos ou partidos de esquerda.
Além disso, desafia a sociologia a interpretá-los à luz das contradições da
sociedade portuguesa e das teorias sobre movimentos sociais e ação coletiva.
6. Um dos debates estratégicos mais importantes passa por saber que tipo de
convergências existem ou podem desenvolver-se entre estas novas dinâmicas de
mobilização e as organizações e movimentos existentes, sejam os sindicatos,
seja o que se convencionou designar de novos movimentos sociais. Em Portugal,
muitos dos principais dinamizadores da Geração à Rasca(M12M, Precários
Inflexíveis e outros) e do 15 de outubroparticiparam em ações com a CGTP e
apelaram à presença dos jovens indignados na greve geral de novembro de 2011.
O apelo por parte desses movimentos para que houvesse manifestações no dia da
greve foi aliás um fator de condicionamento da central sindical, que acabou por
decidir, pela primeira vez, que as greves gerais teriam de ter uma expressão de
rua para além dos piquetes. É evidente que nem todas as relações são fáceis.
Ao disputar aos velhos movimentos e até a alguns dos chamados novos
movimentos e às suas organizações o monopólio da mobilização social, estes
novíssimos movimentos suscitam também reações adversas entre setores
políticos e sindicais cuja atitude oscila entre a cooptação e a tentativa de
isolamento. Por outro lado, da parte da multidão dos indignados há também, por
vezes, alguma hostilidade, desconfiança, vontade de diferenciação ou de
demarcação em relação a outras formas de organização, sejam elas associações ou
sindicatos e, acima de tudo, como é óbvio, em relação aos partidos. Entre os
que defendem uma diferenciação absoluta, estão os que consideram que os
movimentos devem esgotar-se nos espaços libertados de sociabilidade que geraram
e que isso é diametralmente oposto a qualquer lógica das organizações ou de
representação10. Estão, ainda, alguns setores anarquistas que rejeitam o
diálogo com as principais organizações sindicais. Exemplos de convergência com
tensão e conflito existiram na greve geral portuguesa de março de 2012. Mesmo
havendo uma convergência na data ' a plataforma 15 de outubroconvocou uma
manifestação no dia da greve para que as duas dinâmicas coincidissem ' o
resultado acabou por ser uma manifestação partida em dois e confrontos entre
manifestantes ' nomeadamente, entre o cordão de segurança da central sindical e
membros de outros movimentos. A favor da convergência têm estado muitas das
organizações políticas e sociais com maior continuidade, havendo recentemente
também uma maior abertura do discurso sindical em relação a estes fenómenos.
7. Algumas análises sociológicas tendem a salientar aquilo que distingue, em
termos de características e protagonistas, os velhos, os novos e os
novíssimos movimentos. Contudo, para compreender o atual ciclo de ação
coletiva, é importante problematizar estas tipologias e questionar a
heuristicidade e a operacionalidade destas categorias. Em particular no caso
português, esta distinção é contrariada por alguns elementos importantes. O
primeiro é de ordem histórica. Como explica Santos (2012:693), no nosso país,
os velhos e os novos movimentos surgiram praticamente ao mesmo tempo. Do
mesmo modo, as diferentes gerações de direitos conceptualizados por Marshall
(2009 (1950)) ' cívicos, políticos e económicos ' nasceram todos no mesmo
período, com 25 de Abril de 1974.
O segundo é de ordem prática. Estudos realizados noutros países demonstraram a
existência de uma importante circulação de ativistas entre velhos, novos e
novíssimos movimentos sociais, facto que uma análise das trajetórias longas
de militância e das dinâmicas de polienvolvimento revela (Sawicki e Siméant,
2009:100). Em Portugal, o campo dos movimentos sociais é particularmente
diminuto e constituído por um número relativamente escasso de agentes. O que
temos verificado, no caso português, é que grande parte dos organizadores
destas mobilizações adquiriram as suas competências militantes em
organizações sindicais e/ou partidárias, por terem sido, no passado, membros
dessas organizações ou por acumularem, no presente, diferentes tipos de
compromisso militante. Esse facto, em si mesmo, nada diz da autonomia dos
movimentos relativamente à agenda de determinada organização, mas desmente uma
interpretação dos diferentes movimentos como pertencendo a esferas e
universos sociais estranhos e paralelos. Contrariando algumas simplificações do
senso comum e do discurso mediático, uma análise sociológica mais fina desvenda
que existe, entre as diferentes modalidades de militância, um contato muito
mais estreito do que por vezes se afirma.
Notas
1 Sociólogo. Doutorando na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(FEUC) / Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) (Coimbra,
Portugal). Endereço de correspondência: Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis,
Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal. E-mail: josemourasoeiro@gmail.com
2 A 17 de dezembro, um jovem vendedor tunisino imolou-se pelo fogo frente a um
edifício governamental. Poucas horas depois desse acontecimento, centenas de
jovens que sofriam o mesmo tipo de humilhações concentravam-se em protesto
frente ao mesmo edifício. O primo de Mohamed Bouazizi fez um vídeo desses
protestos que se tornou viral e, nos dias que se seguiram, várias manifestações
tiveram lugar de forma espontânea um pouco por todo o país. A partir de um
acontecimento catalisador, desenvolveu-se um processo de mobilização
revolucionária.
3 A Islândia assistiu, desde janeiro de 2009, a um processo inédito de
mobilização popular contra o resgate das dívidas da banca privada e as decisões
das instituições políticas. O protesto cidadão conduziria à nomeação, pelo
Parlamento, de um grupo de 25 cidadãos independentes para fazerem o projeto de
uma nova constituição. Esta comissão lançou um processo participativo, através
das redes sociais e da Internet que recolheu mais de 16 mil sugestões. Ao fim
de 4 meses, aquele grupo apresentou um projeto de Constituição, que ficou
conhecido como uma wikiconstituição, dado que foi feito recorrendo às
plataformas interativas e colaborativas permitidas pelo ciberespaço.
4 Cf. http://www.boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-
341-7
5 De acordo com Raquel Rolnik (2013: 19), estes protestos não tiveram nem uma
causa nem uma voz unificada, sendo antes um concerto dissonante, múltiplo, com
elementos progressistas e de liberdade mas também de conservadorismo e de
brutalidade. Reivindicações associadas ao direito à cidade, ao combate às
desigualdades no território, às dinâmicas de exploração no trabalho ou à defesa
do investimento público na educação e na saúde juntaram-se a outras mais
relacionadas com a ausências de canais de representação ou com a identificação,
de forma frequentemente conservadora, dos políticos como sendo a origem do
mal, numa narrativa construída, geralmente, a partir dos escândalos de
corrupção. O episódio da agressão de militantes de partidos políticos por
outros manifestantes ficaria marcada como uma das expressões das grandes
contradições que atravessaram as mobilizações.
6 No último ponto apresentamos os dados preliminares de uma investigação em
curso que demonstra o peso relativo de cada um destes temas nas folhas e
cartazes dos manifestantes do 12 de março.
7 De acordo com a declaração feita pela CGTP na sua página oficial no
Facebookno dia 24 de novembro de 2011, num postpublicado às 18h40.
8Cf. Jornal i, Movimentos sociais condenam violência gratuita e
indiscriminada' da polícia no dia 14, 20 de novembro de 2012.
9 Este levantamento reporta-se às folhas entregues na Assembleia da República
no dia 25 de março de 2011 pelos organizadores da manifestação. Incide sobre a
totalidade dos documentos entregues e registou um total de 2083 referências. A
partir de uma grelha de análise categorial, classificaram-se as referências e
fez-se um tratamento quantitativo e qualitativo, distribuindo-as pelas
categorias de Educação, Ética, Transparência e Combate à Corrupção,
Sistema Político, Fiscalidade e Outros. Este trabalho é realizado no
âmbito de um projeto de doutoramento Geração Precária? Trajetórias, vivências,
subjetividade coletiva e discurso público sobre a precariedade dos jovens em
Portugal, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH / BD /
48470 / 2008).
10Seria interessante analisar, a este nível, o ressurgimento de coletivos
libertários, nomeadamente vinculados a determinadas subculturas musicais e
urbanas.