Condições e trajetórias de vida de reclusos e reclusas de etnia cigana em
Portugal
Introdução
As questões étnicas e criminais quando aparecem interligadas são alvo de
controvérsia e discussão entre cientistas sociais, nomeadamente sociólogos.
Alguns académicos recusam-se a participar em estudos que associem estes
fenómenos porque, sustentam, tais trabalhos reificam conceitos como etnicidade
e raça, podendo ter implicações indesejáveis por ligar criminalidade e grupos
étnicos, forjando assim uma associação artificial de causa-efeito entre os dois
termos. No entanto, para outros, não são os sociólogos ou outros cientistas
sociais os responsáveis por esta associação, pois existe uma abundância de
noções de senso comum sob forma de anedotas, narrativas jornalísticas e
expressões de sabedoria de rua' (street wisdom) sobre os imigrantes, os grupos
étnicos e a criminalidade (Marshall, 1997: 225; Silva e Silva, 2002: 71). Se as
associações entre crime e etnicidade estão presentes nos discursos
institucionais e populares, cabe aos cientistas sociais investigar a
emergência, a cristalização e o porquê dessas associações, por forma a dar o
seu contributo num assunto tão premente, confirmando ou infirmando e
desconstruindo parte ou a totalidade das convicções construídas.
Assim, neste artigo pretende-se abordar a questão do crime associado a
etnicidades, especificamente as práticas criminais do grupo étnico cigano e o
seu contexto, de modo a identificar os fatores coestruturantes dessas práticas.
Começamos por fazer uma breve introdução aos estudos que relacionam o crime e o
grupo étnico cigano, para dar uma visão geral das limitações destes estudos nos
contextos português e espanhol e, logo de seguida, defendemos a importância do
uso analítico da interseccionalidade no estudo do crime, relevando a variável
étnica, mas também a de classe e a de género, para a compreensão e explicação
das práticas criminais. Posto isto, passamos para as questões de ordem
metodológica e para os resultados em si, explorando as condições e trajetórias
de vida de reclusos e reclusas de etnia cigana a cumprir pena em
estabelecimentos prisionais portugueses, tentando deslindar, a partir daí,
quais os fatores que levaram estes homens e mulheres ao envolvimento com o
sistema de justiça criminal.
1. Crime e grupo étnico cigano: alguns estudos
Em Portugal existem poucos estudos que analisem as questões criminais quando
associadas aos grupos étnicos. Um dos primeiros trabalhos surgidos em contexto
português, relacionando o meio prisional com uma população étnica, é o de
Moreira (1999). Este autor caracteriza sociologicamente os reclusos de etnia
cigana presentes no sistema prisional em 1998. As diferenças encontradas entre
as características sociais, criminais e penais dos reclusos de etnia cigana e
da restante população reclusa levaram- no a sustentar que há um conjunto de
traços diferenciadores que extravasam o suporte cultural que transportam para o
interior das prisões e, por isso, dever-se-ia, na sua perspetiva, pensar na
problemática da privação da liberdade de indivíduos pertencentes a minorias
étnicas e culturais. Mais tarde, Fonseca e Neto (2006) corroboram este
pensamento, defendendo que o fator etnia é relevante em meio prisional. Ao
debruçarem-se sobre a atitude de reclusos de etnia cigana e de reclusos não-
ciganos face ao ensino recorrente em vários estabelecimentos prisionais
portugueses, mostram que o nível de autoconfiança na frequência escolar é maior
nos não-ciganos do que nos ciganos (Fonseca e Neto, 2006). Cunha (2005) faz
também saber que a categorização étnica pode não explicar por si só as
dinâmicas de sociabilidade intraprisionais, mas acaba por ilustrar como as
aceções essencializadoras de etnicidade são reproduzidas e estão presentes na
realidade intraprisional. Apoiando-se nestes três estudos, Resende (2008)
considera ser possível afirmar que há, certamente, um continuumde preferências
e opções individuais/grupais que são transportadas do meio exterior
(relativamente) livre para o meio prisional.
Cunha (2010) continua a produzir estudos nesta área e reforça a ligação
existente entre três fenómenos: a classe social, a área geográfica (vg. bairro
social urbano) e a raça/etnia. Segundo a autora, os bairros urbanos, onde se
desenvolve a economia retalhista da droga, fazem emergir a interação entre
atores sociais marcados pela condição de classe e pertença étnica. A pobreza
acaba por congregar populações etnicamente diversas numa posição de classe
relativamente similar (Cunha, 2010). Salienta ainda que, em Portugal, a
etnicidade, à semelhança do género, não determina ou restringe o envolvimento
na economia retalhista da droga. Assim, na base do mercado, o tráfico de
estupefacientes tornou-se um dos vetores de nivelamento social interétnico
(Cunha, 2010).
Os estudos também vêm mostrando que o grupo étnico cigano está
sobrerrepresentado no sistema de justiça criminal. Em Portugal, Moreira (1999)
conclui que a proporção de indivíduos ciganos atrás das grades era de 5 a 6 por
cento da população reclusa, sendo a sobrerepresentação ainda mais vincada no
caso da reclusão cigana feminina. Em Espanha, Barberet e Garcia-España (1997)
debruçam-se sobre o envolvimento criminal dos indivíduos de etnia cigana. As
autoras mencionam que as estatísticas policiais, judiciais e prisionais não
reportam variáveis étnicas, à semelhança do que acontece em Portugal1. No
entanto, profissionais da justiça criminal e líderes ciganos entrevistados para
o estudo das autoras foram unânimes em concordar que os ciganos estão
desproporcionalmente representados nas detenções policiais, nas audiências em
tribunal e na população prisional. Concordaram também que os ciganos tendem a
ser detidos, processados e recluídos por um subconjunto de crimes e em
circunstâncias muito particulares: os ciganos estão envolvidos em crimes
relacionados com drogas, nomeadamente na escala de pequena e média dimensão de
tráfico de droga, em crimes contra a propriedade ' que são o resultado da
adição à heroína ou a necessidades económicas ' e em crimes violentos, que
ocorrem como resultado de brigas familiares (Barberet e García-España, 1997:
180-181).
2. A análise intersecional no estudo do crime
A perspetiva da interseccionalidade é uma ferramenta que ajuda a deixar de
pensar as questões de género apenas em termos binários, relacionando género e
poder (Branco, 2008), para passar a observar determinado fenómeno à luz de um
cruzamento entre género e outras variáveis, nomeadamente classe (Crenshaw,
2001; Coster e Heimer, 2006; Silva et al., 2006). Criminólogos feministas têm
vindo a chamar a atenção para a importância da interseccionalidade da
etnicidade, classe e género, para a abordagem das experiências do crime (Coster
e Heimer, 2006; Burgess-Proctor, 2006; Britton, 2000). Estas variáveis
analíticas são mais do que a soma de variáveis separadas (Crenshaw, 2001); elas
produzem efeitos combinados no crime que necessitam de ser examinados em
conjunto, numa matriz de relações sociais múltiplas.
Para esta investigação é de uma enorme relevância dar corpo à
interseccionalidade entre género, etnia e classe, já que o nosso objeto de
estudo são homens e mulheres de um determinado grupo étnico que, não raro,
pertencem a classes desfavorecidas envolvidas em percursos desviantes. Logo,
não é possível estudar separadamente pessoas que sofrem duplas e triplas
experiências de discriminação (Collins, 2000) assentes numa experiência de
múltipla opressão e/ou discriminação marcada pela pertença de género, classe e
etnia (Oliveira, 2010). A interseccionalidade é uma designação que visa tornar
visível o posicionamento múltiplo que os indivíduos possuem na sua vida
quotidiana e as relações de poder que isso origina (Phoenix, 2006: 187),
podendo explicar quer as suas ações, quer as ações dos outros em relação aos
mesmos. Assim, de uma forma simples, para avançar com uma análise do género,
crime e justiça, tem de se examinar as ligações existentes entre desigualdades
e crime, usando um enquadramento teórico intersecional (Burgess-Proctor, 2006:
28). Mattos (2012) completa ainda que a abordagem intersecional tem a vantagem
de realizar um diagnóstico mais preciso a respeito das causas e dos efeitos das
desigualdades sociais nas diversas matizes, por considerar uma multiplicidade
de categorias de diferenciação.
Se é certo que a abordagem intersecional tem vindo a ser sustentada em
abordagens sobre etnicidade e sobretudo em estudos de género, poder-se-ia com
justeza remeter para a metodologia weberiana (Roth e Wittich, 1978), a qual
aponta para a multidimensionalidade e para a pluricausalidade na compreensão e
na explicação dos fenómenos sociais, incluindo por certo os comportamentos e as
relações interétnicas.
3. Método de recolha e análise dos dados
Tendo como objetivo a análise das práticas criminais de homens e mulheres de
etnia cigana, através do estudo das suas trajetórias de vida, optámos por
entrevistar reclusos/as condenados/as com penas efetivas em estabelecimentos
prisionais portugueses.
Definiram-se como campos de análise seis estabelecimentos prisionais
portugueses: quatro masculinos e dois femininos, nos distritos Judiciais do
Porto e de Lisboa2. O trabalho de campo foi desenvolvido no ano civil de 2010,
começando em janeiro e terminando em dezembro3. Aplicaram-se entrevistas
semiestruturadas a 17 reclusos e 8 reclusas de etnia cigana e foram
selecionados/as reclusos/as com características distintas ao nível dos crimes
por que tinham sido condenados, a duração da pena, a reincidência, a idade e,
por vezes, a escolaridade dos indivíduos4. A técnica utilizada para a análise
das entrevistas foi a da análise de conteúdo. Este instrumento metodológico
aplica-se às narrativas, com o intuito de tornar o que pode parecer facto
social consumado em incerteza, em dúvida, em questão (Bardin, 1995). Portanto,
pretende-se com este instrumento compreender para além dos significados
imediatos das narrativas, dar um contributo mais enriquecedor ou até mesmo
revelador do que algumas mensagens pretendem comunicar, originando informação
rica, rigorosa, objetiva e aprofundada e discutir acerca do que foi
selecionado, produzido e comunicado nas narrativas (Ericson et al., 2010).
Através da análise das condições objetivas de vida de mulheres e homens ' ao
nível familiar, escolar, profissional e residencial ' pertencentes ao grupo
étnico cigano e das suas experiências criminais, tentámos perceber até que
ponto determinados crimes são efeitos conjugados de processos de exclusão
social, de preconceitos e de racismo institucional e quotidiano. Procurámos
ainda saber em que medida estes processos podem originar comportamentos
desviantes e/ou detenções, condenações e reclusão. Tendo por base, como
referido, uma abordagem pluricausal, na esteira weberiana, as suas experiências
criminais foram vistas à luz da interseção de variáveis fundamentais para a
construção de um retrato mais completo do crime, relevando assim, em termos
explicativos, a pertença de classe, a etnia e o género, articulando situações
de desigualdade e processos vários de exclusão e de marginalização sociais.
4. Seleção dos entrevistados ' identificando os reclusos e as reclusas
Dentro do grupo de reclusos/as de etnia cigana foi possível selecionar casos
bastante distintos. Ainda assim, no seu conjunto, engloba características
claramente vincadas e que lhe dão unicidade.
Foram dezassete os reclusos de etnia cigana entrevistados. Eles têm idades
muito díspares entre si, compreendidas entre os 19 e os 80 anos. Este grupo de
entrevistados é, no entanto, na sua maioria relativamente homogéneo no que diz
respeito à escolaridade e à atividade profissional exercida: há um grande
número de reclusos analfabetos ou com o 4º ano concluído, um recluso com o 5º,
dois com o 6º e outro com o 7º ano de escolaridade; todos os reclusos, com a
exceção de um estudante, um construtor civil e um serralheiro, eram vendedores
ambulantes antes de serem detidos. Os crimes por que foram condenados têm penas
que oscilam entre os três anos e dois meses e os dezoito anos e seis meses de
pena efetiva de prisão. O que os levaram à prisão foram os crimes de homicídio,
para as penas mais elevadas, e de tráfico de estupefacientes, furto, roubo,
condução sem habilitação legal, sequestro, ofensa à integridade física,
detenção de arma proibida, coação e resistência sobre funcionário, evasão,
burla, cheque sem provisão, recetação e aquisição de moeda falsa para as
restantes penas.
Por seu turno, foram entrevistadas oito reclusas de etnia cigana. Tal como os
reclusos, elas são, na sua maioria, analfabetas ou frequentaram o 1º ciclo e
dedicavam-se à venda ambulante antes de serem detidas. Temos, no entanto, o
caso de duas domésticas e de uma reclusa que tinham concluído o 9º ano de
escolaridade. As idades vão desde os 23 até aos 60 anos. O crime mais
recorrente é o tráfico de estupefacientes, combinado com coação, sequestro ou
condução sem habilitação legal, mas também foram entrevistadas reclusas
condenadas por roubo, furto e homicídio. No caso do homicídio, a pena de prisão
é de 21 anos. Nos outros casos, as penas vão dos dois anos e sete meses até os
doze anos de prisão efetiva.
5. Contextos pré-prisionais: trajetórias de exclusões sociais naturalizadas
Os participantes neste estudo ' apresentados aqui com nomes fictícios ' expõem
nos seus relatos as circunstâncias em que nasceram, cresceram e foram, depois,
recluídos. Há bastantes indivíduos que contam as suas histórias, ligando-as a
percursos de pobreza e de exclusão social. A maior parte dos reclusos é
originária de famílias compostas por eles próprios, respetivas esposas e
filhos. As idades de contração do casamento variam dos 9 aos 21 anos de idade
e, para os que já constituíram família, o número de filhos varia entre os dois
e os onze filhos.
Os casamentos dão-se maioritariamente entre indivíduos do mesmo grupo étnico
(Mendes, 1998; Silva e Silva, 2002; Casa-Nova, 2009; Magano, 2011). No entanto,
do ponto de vista familiar, parece haver já um conjunto de mudanças: há relatos
da existência de casamentos exogâmicos5 e há também reclusos que contraíram
casamentos entretanto terminados, quer por não haver possibilidade de ter
filhos num primeiro casamento ' condição que, quando verificada, é recorrente e
considerada como fundamento legítimo de separação ou divórcio nas comunidades
ciganas6 ', quer quando isso não decorre. Paulino (45 anos, ensino primário),
por exemplo, é separado da mulher e tem dois filhos desse casamento, o que nos
leva a concluir que as regras ciganas têm vindo cada vez mais a ser permeáveis
e flexibilizadas ao longo dos anos.
Um aspeto que parece não mudar com o passar do tempo é a exposição de algumas
famílias ciganas a situações de pobreza. Os seus percursos de vida são, na
maior parte dos casos, pautados pelo trabalho na venda ambulante7, que se
iniciam muito cedo: Prontos a minha vida sempre foi família pobre mas pronto.
Trabalhei na feira e ganhava o pão do dia a dia. Sempre fui vendedor
ambulante. ' conta-nos Agostinho, com os seus 80 anos de vida (Agostinho, 80
anos, analfabeto).
Tal como a família, o trabalho tem um papel central na vida dos indivíduos
ciganos. Sendo o trabalho desenvolvido no âmbito de uma economia familiar, no
discurso dos homens ciganos estas duas dimensões não são separadas. As duas
esferas estão de tal forma interligadas que elas aparecem, em regra, associados
ao quotidiano e aos objetivos de vida dos entrevistados. Para além de familiar,
a economia caracteriza- se pela sua simplicidade e quotidianidade. Decorrente
desse facto e de serem cada vez menos os espaços de venda, a venda ambulante
não é descrita como lucrativa, deixando as famílias com pouco dinheiro.
Apesar de a venda ambulante estar inscrita na vida de muitos dos ciganos em
Portugal desde a sua infância, pelas características que a mesma apresenta, há
já indivíduos ciganos que, tentando distanciar-se do modo de vida tradicional
cigano, se dedicam a outras atividades8. Gilberto (26 anos, ensino primário),
por exemplo, apesar de os seus pais serem feirantes e de ele próprio ter feito
feiras com eles e, depois, com a sua mulher, acabou por afastar-se desta
atividade e envolver-se noutras. Enumerando as atividades que foi
desempenhando, ele refere que foi mestre de trolha em Paris, que trabalhou na
apanha da batata, no Luxemburgo, e que participou em alguns cursos de formação
profissional, incluindo o de jardinagem. Na realidade, Gilberto mantém-se no
âmbito das atividades profissionais não qualificadas e mal remuneradas, ainda
que inseridas na economia formal.
A maior parte dos entrevistados conta-nos histórias de grande dificuldade
económica. Tércio, por exemplo, diz que as grandes dificuldades da sua família
se prendem com a pobreza: Dificuldades isso é o que qualquer pessoa pobre
tem (Tércio, 53 anos, analfabeto). Apesar de o depoimento de Tércio ir no
sentido de as suas dificuldades se deverem à sua condição de pobreza e não pelo
facto de ser cigano, não diferenciando, portanto, entre grupos cigano e não-
cigano, há entrevistados que nos relatam que a pobreza se deve a entraves que,
do seu ponto de vista, resultam de ser cigano. Por exemplo, Joaquim (52 anos,
6º ano) refere os bloqueios ao desenvolvimento da atividade profissional, dando
o exemplo da fiscalização, levada a cabo por organismos como a Autoridade de
Segurança Alimentar e Económica (ASAE), que apreende muita mercadoria e que os
deixa sem ter o que vender e, consequentemente, sem fonte de rendimento. Do
ponto de vista de Joaquim, isto é uma forma de perseguição aos indivíduos de
etnia cigana, já que a maior parte, na sua opinião, se dedica à venda
ambulante.
Para além dos entraves ao exercício da sua atividade profissional, os
entrevistados, como Ximeno (36 anos, 6º ano) e Roberto (27 anos, ensino
primário), mencionam também que o facto de serem ciganos cria bloqueios à
compra ou arrendamento de habitação. Roberto conta duas situações: uma em que
tentou arrendar e outra em que tentou comprar uma casa e que não lhe foi
permitido pelo facto de ser cigano. As histórias narradas denunciam situações
de racismo flagrante9. A pertença étnica é usada como fator de exclusão para os
negócios imobiliários com ciganos, fazendo crer que estes não são pessoas em
quem se confie ou com quem se possa ou deva fazer negócios, podendo também
impossibilitar a venda ou arrendamento das casas próximas das dos ciganos. Este
é apenas um dos motivos por que Ximeno afirma que em Portugal existe racismo.
Quando se fala em práticas de racismo flagrante existentes nas relações
interétnicas, há autores em Portugal que trabalham essas questões há alguns
anos e que têm demonstrado a existência e consistência de um certo racismo
historicamente enraizado, bem como da designada ciganofobia (ver Mendes, 2007 e
Bastos, 2012).
Assim, percebemos que, para além das dificuldades económicas sentidas pelos
indivíduos de etnia cigana, juntam-se ainda as dificuldades decorrentes do
facto de pertencerem ao grupo étnico cigano e sofrerem tratamento
discriminatório em algumas áreas da vida social, como a habitação ou a
fiscalização da sua atividade profissional.
Mais, entre as faixas etárias mais jovens, começa a ser visível o fenómeno da
toxicodependência. Ao nível dos valores ciganos, o consumo de drogas pode ser
reprovável, sobretudo pelos mais velhos (Silva e Silva, 2002), mas esta adição
vem trazer para o seio da comunidade uma realidade muito próxima da vivida por
outros jovens portugueses, com a agravante de servir de motivo adicional para o
abandono escolar.
No caso das mulheres ciganas, elas também partilham muitas das histórias
narradas pelos homens, no que diz respeito à pobreza e à discriminação étnico-
racial e social. Além disso, as suas trajetórias são vincadamente marcadas
pelas suas pertenças de género, muito ligadas ao seu papel de mãe e de mulher,
frisando os seus papéis de cuidados familiares mais do que os homens. É visível
como a sua tripla pertença ' mulher, cigana e pobre ' molda as trajetórias de
vida narradas.
A maior parte destas mulheres casam cedo e são mães em idades precoces. As
mulheres que se casaram com menor idade foram Lídia (42 anos, analfabeta) e
Isabel (30 anos, 9º ano), que se casaram com 12 anos. Os casamentos são
caracterizados por serem endogâmicos na maior parte das vezes e por serem
celebrados de acordo com a lei cigana. Josefina (59 anos, analfabeta), por
exemplo, refere que é a lei cigana que é válida para o casamento entre os
ciganos, não necessitando de haver outros registos acerca do mesmo.
São várias as narrativas que sintetizam e interligam os dois pilares centrais
na vida destas mulheres ' o trabalho e a família ' na descrição do seu
quotidiano. A família e os seus hábitos acabam por ser também a explicação das
mulheres para não terem frequência escolar ou terem abandonado os estudos. Quer
a idade de casamento, quer o papel feminino desempenhado no seio da comunidade
' ajuda às mães nas atividades domésticas ', são obstáculos reais. E isto
acontece, quer com as filhas mais velhas, que têm de ajudar a mãe a cuidar dos
irmãos mais novos, quer com as filhas seguintes, pois à medida que as irmãs
mais velhas vão casando, elas terão de deixar a escola para assumirem o seu
papel, a que acresce a tradição de não frequentar a escola a partir de certa
idade para não relacionar-se com outros rapazes (casos de Olinda e Vanda).
A venda ambulante ocupa um lugar de destaque na atividade profissional destas
mulheres. Para além da venda ambulante nas feiras, há um caso de uma mulher que
afirma ter feito trabalho sazonal fora do país. Lídia (42 anos, analfabeta)
conta que ia para Espanha para a apanha da azeitona e assim, mas que, dentro
da comunidade cigana, a tradição diz para ser vendedor ambulante. E, assim
sendo, apesar de fazer esses trabalhos esporadicamente para ganhar algum
dinheiro, não admite abandonar a venda ambulante porque esse é o seu modo
tradicional de obter rendimentos.
A opção por trabalhos esporádicos prende-se com o facto de os rendimentos
através da venda ambulante serem insuficientes. Mas que alternativas são
possíveis para os indivíduos ciganos e, especificamente, que alternativas estão
acessíveis para as mulheres ciganas? Olinda (35 anos, analfabeta) dá o seu
testemunho:
Hum tentei andar nas feiras mas a vida das feiras não dava. Fui ao
centro de emprego inscrever-me ( ) porque eu fazia qualquer coisa.
Mas que qualquer coisa fazia eu que não sei ler nem escrever? Só se
fosse para limpezas, ou para trabalhar num lar, que é uma coisa que
que, prontos, o que eu gostaria de fazer mesmo era trabalhar num lar
de idosos. Foi o que eu fiz. Consegui trabalhar num lar. Entretanto
juntei-me com este senhor, ( ) A família dele começou a influenciá-lo
e a dizer que aquela vida não era vida de cigano, ( ) que eu tinha
era que estar nas feiras ou a traficar droga, hum mas eu não lhe
dava ouvidos. Sempre continuei a trabalhar. ( ) o Dionísio começou-me
a esperar à porta do trabalho, começava a me insultar, começava-me a
bater, e eu com vergonha das pessoas que lá trabalhavam, nem sequer
me despedi. Não apareci lá mais. Está a perceber?
Dos vários relatos se infere que a discriminação dá-se, em parte, por serem
ciganas, mas também contribui o facto de não terem escolaridade ou ser-lhes
negada a formação profissional com base na pertença étnica, entrelaçando-se num
círculo vicioso vários fatores: tradição, pobreza, falta de escolaridade,
discriminação étnica no trabalho ou na habitação e repetidas exclusões sociais,
culminando, por vezes, no crime.
A habitação tem lugar, geralmente, tal como acontecia com os homens ciganos, em
bairros sociais e em acampamentos. Olinda (35 anos, analfabeta) retrata o que
aconteceu em Braga, com o Bairro do Picoto, onde a política municipal aglomerou
várias famílias ciganas no mesmo bairro, numa colina da cidade, longe dos
olhares dos cidadãos não ciganos:
( ) nós aqui há 13 anos atrás, 13 ou 14 anos atrás, vivíamos em
barracas. Isto em Braga, ao lado do estádio 1º de maio. Vivíamos em
barracas. A câmara deu-nos um bairro, que é o Bairro do Picoto, que
só lá meteu ciganos.
Os discursos dos homens e mulheres de etnia cigana remetem-nos para múltiplas
exclusões, nomeadamente económica, escolar, profissional, institucional e
habitacional. Mesmo que se verifiquem algumas mudanças nos estilos de vida
deste grupo étnico, este continua a ser excluído por parte da sociedade
dominante por atitudes de desconfiança e práticas de racismo flagrante
existentes nas relações interétnicas (Silva et al., 2006). Os preconceitos e as
atitudes discriminatórias estão de tal forma enraizados na sociedade envolvente
que se tornam bloqueios efetivos às expectativas de mudança por parte de
membros da comunidade cigana (Silva et al., 2006; Gomes, 2013). Assim sendo,
percebemos que estamos perante um exclusão naturalizada, quer pela atitude do
grupo não-cigano, quer pela perceção e vivência do grupo étnico cigano.
6. O ato criminoso: os fatores económicos e étnicos na explicação do crime
É sobre o ato criminoso que nos debruçamos neste ponto, especificamente sobre
os fatores indutores do crime, detetáveis através das próprias narrativas e
motivações apontadas pelos/as reclusos/as ciganos/as nas entrevistas.
As razões económicas pautam grandemente as narrativas dos vários indivíduos de
etnia cigana entrevistados, designadamente as dificuldades económicas que
estão na base da explicação dos crimes de roubo e tráfico de estupefacientes. O
roubo e o tráfico de estupefacientes, em alguns casos, aparecem nos discursos
como a alternativa para fazer face às necessidades da família. Enquanto os
roubos são feitos e julgados individualmente (no máximo, envolvem duas
pessoas), o tráfico de estupefacientes é executado e/ou julgado tendo por base
a família. Os processos por tráfico de estupefacientes no seio da comunidade
cigana são comummente processos que envolvem mais do que dois indivíduos, tendo
estes geralmente relações de parentesco entre si, e que resultam de rusgas
efetuadas a bairros sociais ou acampamentos. Por isso, nos estabelecimentos
prisionais, é muito comum encontrar-se várias gerações da mesma família cigana
detidas, tal como verificaram Dias (1995), Moreira (1999), Cunha (2010) e Gomes
(2013) nos seus estudos.
Para além das situações em que os indivíduos se envolvem no tráfico por
dificuldades económicas, temos igualmente o caso de Dionísio (31 anos, ensino
primário) que afirma não precisar de traficar: com farrapos ganho dinheiro,
por assim dizer. Mas as expectativas de poder dar algo mais, para além do
básico, aos seus filhos, movem-no para o tráfico. Portanto, o tráfico de
estupefacientes é uma alternativa para responder às suas ambições face à
família.
Há ainda uma outra motivação ou influência para o tráfico de estupefacientes: é
o caso dos indivíduos toxicodependentes, sobretudo jovens, e que acabam por
traficar para conseguir dinheiro para alimentar a adição. Por exemplo, Quitério
(31 anos, analfabeto) traficava para manter os consumos:
Fui consumidor três anos. Traficava também. Consumia e traficava
também. Já tive uma irmã assim. Um irmão. E então eles a minha irmã
também era pobre. Depois fui com uns amigos. Amigos que não são meus
amigos agora. Os amigos não fazem mal uns aos outros. O mal da droga
é não conseguir ver o que é o bem e o que é o mal. Isso é o que é o
pior.
Se, por um lado, temos o tráfico de estupefacientes e o roubo, que decorrem, de
uma forma ou de outra, dos fatores que explanamos até aqui ' dificuldades
económicas, expectativas familiares ou adições tóxicas ', que podem ser
explicados por vários fatores na relação do endogrupo com o exogrupo,
encontramos igualmente crimes que estão diretamente relacionados com os
problemas que decorrem dentro do próprio grupo étnico. É o caso das rixas em
que os ciganos se envolvem e que, no limite, levam alguns dos indivíduos à
reclusão. Quando as rixas não desembocam em situações e casos extremados e
dramáticos, como o homicídio (como foi o caso de Ximeno), resultam amiúde em
ofensa à integridade física, posse de arma ilegal ou sequestro.
Em termos estatísticos, os indivíduos de etnia cigana têm penas demasiado altas
para o tipo de crime que os levou à detenção (Moreira, 1999; Rodrigues et al.,
2000; Mendes, 2007). Só que há muitos reclusos que têm processos pendentes, com
penas suspensas, devido à condução de veículo sem habilitação legal ou condução
ilegal de veículos. A maior parte dos reclusos ciganos são analfabetos ou
apenas sabem ler ou escrever, o que impede a obtenção de carta de condução. As
carrinhas são o meio de transporte utilizado para o trabalho que desempenham
diariamente nas feiras. Inicialmente começam por ser multados, depois passam
para as penas suspensas, chegando mesmo a haver condenações com pena efetiva,
quando se acumulam processos ou quando se envolvem noutro crime.
As reclusas de etnia cigana denotam as mesmas motivações que os reclusos
ciganos. O crime que mais leva estas mulheres aos estabelecimentos prisionais
portugueses é o tráfico de estupefaciente, juntamente com o roubo. Ambos os
crimes dão-se pelas mesmas razões: ausência de recursos económicos suficientes
para o sustento da família.
Os ciganos, quando são detidos por tráfico de droga, cumprem penas dentro da
média da moldura penal, ou seja, não têm práticas agravadas do crime, mesmo que
depois reincidam (Gomes, 2013). Portanto, os dados mostram que os ciganos
ocupam os patamares mais baixos da rede de tráfico de estupefacientes. Ainda
assim, como nos relata Fátima (31 anos, analfabeta), não obstante o medo
constante de serem apanhados pelas autoridades, pelo menos enquanto traficam
estupefacientes têm sempre dinheiro para a sua família.
Quer dizer, não corria bem. Uma pessoa anda sempre com aquele medo
da polícia, para aqui e para ali, tínhamos sempre o coração nas mãos.
Era sempre um bocado complicado. Olhe, enquanto andei nisto sempre
tive dinheiro para dar de comer aos meus filhos.
Já Isabel (30 anos, 9º ano), mesmo afirmando que começou a traficar por
necessidade, acaba por explicar que o tráfico de estupefacientes funciona quase
como a adição à própria droga. A venda vai sendo feita para satisfazer qualquer
necessidade que no momento pareça importante. É o ciclo vicioso do consumo:
quanto mais se quer comprar, mais dinheiro tem de haver para fazer face a essa
expectativa de consumo. O raciocínio de Isabel é relevante, pois remete-nos
para as necessidades criadas pelas expectativas de consumo. No entanto, esta
ideia merece ser relativizada pelas características de subsistência desta
comunidade. Numa altura em que a economia informal das feiras é pouco rentável,
o tráfico de estupefacientes aparece como forma de fazer face às necessidades
básicas familiares. Mas, a partir daí, geram-se outros patamares de consumo,
não tendo que ver com as motivações primárias ' não é o motivo primeiro ', mas
com as motivações secundárias para o envolvimento no tráfico, ou seja, das
motivações que são consequentes da própria atividade.
Outra situação de vulnerabilidade é a toxicodependência, fenómeno cada vez mais
frequente não só entre homens como em mulheres do grupo étnico cigano,
envolvendo-se algumas (vg. Lídia, 42 anos, analfabeta, e Vanda, 23 anos, ensino
primário) em roubos por adição a drogas pesadas.
Considerações finais
Podemos observar nos diferentes testemunhos dos reclusos e reclusas de etnia
cigana que a privação económica, decorrente das múltiplas exclusões a que estão
expostos, é a principal razão, na sua perceção, que justifica a prática de
crimes de tráfico de estupefacientes e de roubo. A justificação dada é muito
direta, sem tentativas muito elaboradas de explicar o porquê de estarem
reclusos ' para a família poder comer, tem de haver dinheiro. Portanto, o
crime é justificado pela necessidade básica de ter dinheiro para satisfazer as
necessidades da família, quando o trabalho ou a toxicodependência lhes negam a
possibilidade de fazer dinheiro suficiente para a prole. Por outro lado, existe
o fator étnico que coestrutura alguns tipos de crimes tais como homicídio,
condução sem habilitação legal e ofensas à integridade física, uma vez que para
estes últimos também concorrem situações e condições específicas do grupo
étnico cigano.
Alicerçando-nos nas trajetórias narradas e juntando as explicações de ordem
económica e situacional, de privação relativa acrescida da vertente
motivacional para os respetivos crimes que os levaram à condenação e à
reclusão, é possível concluir que estes percursos não estão desligados dos
processos de exclusão e desigualdades sociais, a que acrescem ou que se
interligam com preconceitos e práticas de racismo, ora subtil, ora, mais
amiúde, flagrante. Assim, os fatores económicos e os fatores decorrentes das
especificidades das suas pertenças a um grupo étnico e a um determinado género,
pautaram, de forma sistemática, os discursos dos/as entrevistados/as no momento
de apontar uma explicação para a reclusão. Estes narraram um conjunto de
constrangimentos e oportunidades criminais que foram surgindo ao longo das suas
trajetórias.
De uma forma transversal, as exclusões e as desigualdades sociais nomeadamente
sob forma étnico-rácica moldam, constrangem e coestruturam as trajetórias de
vida dos reclusos e reclusas. Os fatores económicos estão, grosso modo, na base
do envolvimento criminal e da reclusão. Porém, os percursos de grupos têm
especificidades decorrentes de outros elementos para além da classe, como sejam
os fatores étnico-culturais decorrentes das pertenças étnicas e das questões de
género. Portanto, há uma pluricausalidade na explicação dos comportamentos dos
diferentes grupos para o envolvimento criminal e a reclusão. Existe uma
constelação de causas e de pertenças que constrangem e impelem os homens e
mulheres para o crime.
Notas
1 O registo direto ou indireto por parte do Estado de dados relativos à
etnicidade é impedido por lei, de forma a não reforçar estereótipos ou a
racialização da sociedade ' ver Decreto-Lei 28/94 (Cunha, 2010).
2 Os estabelecimentos prisionais (E.P.) onde se realizou a recolha de dados
foram o E.P. Porto, E.P. Paços de Ferreira, E.P. Especial Santa Cruz do Bispo
(feminino), E.P. Lisboa, E.P. Sintra e E.P. Tires (feminino).
3 Entrada nos estabelecimentos prisionais autorizada pela Direção Geral dos
Serviços Prisionais (DGSP).
4 Antes da entrada nos estabelecimentos prisionais foi solicitada uma listagem
de reclusos/as de etnia cigana, com o seu número de identificação, por forma a
aceder aos seus processos individuais. Só através da consulta dos processos
individuais se pôde ter acesso às características usadas para a seleção dos/as
entrevistados/as. A listagem foi fornecida pelos/as técnicos/as que trabalhavam
de perto e conheciam bem os/as reclusos/as, havendo, assim, uma
heteroclassificação dos mesmos. No momento da entrevista teve-se o cuidado de
confirmar a sua pertença étnica, através da autoclassificação.
5 Os casamentos exogâmicos não são bem aceites na comunidade cigana e, quando
acontecem, são mais tolerados os casamentos de homens ciganos com mulheres não
ciganas do que os de mulheres ciganas com homens não ciganos (Casa-Nova, 2009).
6 Geralmente na comunidade cigana admite-se a separação entre o marido e a
mulher se da sua união não resultarem filhos. Ao homem é permitido voltar a
casar com outra mulher, por forma a ter os filhos que não teve no casamento
anterior, mas à mulher essa possibilidade está vedada (Silva et al., 2006).
7 Os estudos mostram que grande parte dos ciganos em Portugal se dedica a esta
atividade (Mendes, 1998; Silva et al., 2006; Castro, 2008; Magano, 2011).
8 Vários estudos em Portugal atestam esta tendência de mudança de atividade
profissional por parte dos indivíduos de etnia cigana: cf. Magano (2011),
Mendes (2007, 2012), Nicolau ( 2010).
9 A expressão racismo flagrante' remete para formas brutais de racismo, às
quais se contrapõem outras formas de racismo subtil', distinção elaborada por
Pettigrew e Meertens (1995) e aplicada por Vala, Brito e Lopes (1999).