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EuPTHUAp0872-34192015000100002

EuPTHUAp0872-34192015000100002

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN0872-3419
Year2015
Issue0001
Article number00002

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Uma etnografia das práticas e dos processos de produção de conhecimento em empresas e laboratórios

Introdução Este artigo tem como objetivo discutir de que forma o método de pesquisa etnográfica foi aplicado no estudo dos processos de criação e transformação de conhecimento científico e tecnológico em contextos de trabalho empresariais e laboratoriais. Nele procurar-se-á discutir a metodologia e respetivas ferramentas utilizadas no âmbito de uma pesquisa sobre redes de produção de conhecimento, colocando em confronto organizações com naturezas e objetivos distintos e enfatizando os seguintes aspetos: i) o uso do método etnográfico no estudo de atividades de produção de conhecimento e, logo, de investigação; ii) a aplicação do método etnográfico a atividades económicas com um certo grau de invisibilidade para quem as estuda, como é o caso da produção de software; iii) a possibilidade do uso de ferramentas comuns de análise da produção de conhecimento em contextos aparentemente tão distintos como são os laboratórios e as empresas.

As atividades de investigação serão analisadas em dois contextos bastante diferenciados. A análise destas dinâmicas é bastante profícua ao nível dos laboratórios de investigação científica (Latour e Woolgar, 1979; Knorr-Cetina, 1981; Lynch, 1985; Traweek, 1988; entre outros). O que se propõe neste artigo é, atendendo à sua natureza, confrontar o que é etnografar a produção de novo e renovado conhecimento nos contextos referidos, atendendo ao facto de as empresas integrarem, nas suas atividades de Investigação e Desenvolvimento (I&D), a investigação.

A pesquisa tomou como unidade de análise projetos de Ciência e Tecnologia (C&T) desenvolvidos em empresas e laboratórios, tendo na sua base a aceção de Hoholm (2011), para quem o estudo dos processos de inovação implica () estudar um objeto ou prática emergente desde o início de uma ideia até à sua realização (ou fracasso) (Hoholm, 2011: 38). A possibilidade de confrontar contextos empresariais e laboratoriais tem subjacente a assunção dos projetos de C&T como unidades de análise. Permite-nos refletir sobre a adoção e a adequação de novas pistas metodológicas que poderão conduzir a diferentes propostas de análise dos referidos contextos, apostando no estudo das micro- práticas (Holhom, 2011) que combinem análises etnográficas e históricas sobre projetos específicos de C&T e a partir das quais seja possível debater a natureza dos processos de produção de conhecimento.

Invocando a natureza contingente dos processos de inovação (Pavitt, 2005), a atenção prestada às particularidades e dinâmicas do projeto enquanto unidade de observação, conduziu-nos à perceção das densidades sociais inerentes ao work in progress da inovação, bem como às suas articulações em diferentes escalas, micro (ao nível do projeto) e macro (ao nível da unidade de investigação ou das instituições que as enquadram).

A análise centrar-se-á aqui essencialmente sobre dois eixos: i) as questões metodológicas, no âmbito das quais tratará de situar e descrever os contextos de trabalho que serviram de terreno a esta pesquisa, bem como as especificidades de uma etnografia em contextos onde trabalho, inovação, conhecimento, ciência e tecnologia se intersetam quotidianamente; ii) a caracterização das dinâmicas e os contextos de observação a partir da perspetiva etnográfica, que deverá ter em conta que quer as empresas, quer os laboratórios, não são espaços unidimensionais, contribuindo desta forma para evidenciar o caráter estratificado e a multiplicidade de interesses no interior destas organizações (Durão e Marques, 2001).

1. O projeto como objeto de estudo A assunção do projeto como unidade de análise permitiu o estudo e a reflexão sobre as práticas de produção de conhecimento. Desta forma, nas empresas e nos laboratórios observados, a tentativa foi a de identificar os projetos em curso e no âmbito destes problematizar as práticas dos seus agentes, com vista à análise da construção social da criação de novo e/ou renovado conhecimento.

A definição do que se entende por um projeto é uma questão teórico- metodológica complexa. É possível optar por uma definição ampla e sem grande variação no tempo (Boutinet, 1990) ou uma mais restrita, que remete para uma aceção de projeto como um instrumento de gestão característico do denominado Novo Espírito do Capitalismo (Boltanski e Chiapello, 1999).

Os projetos de C&T estudados nas empresas e nos laboratórios têm características distintas. Se no caso das primeiras estão delimitados no tempo, alcançam determinados patamares e objetivos (produtos, aplicações, etc.), podendo depois ter continuidade no âmbito das linhas estratégicas das empresas, nos segundos estamos perante projetos de longo prazo que se estruturam em linhas e grupos de investigação que vão adicionando e revendo conhecimento e fazendo, eventualmente, as apelidadas descobertas científicas.

Em qualquer um dos casos, cada projeto enquadra-se na respetiva área de investigação, tem uma afetação de recursos humanos e materiais, caracteriza-se por uma temporalidade e tem um enquadramento social. Esta opção de cariz metodológico não retira à produção de novo conhecimento o seu caráter socialmente contextualizado e relativamente ao qual é difícil definir um momento fundacional (Fleck, 1979). Assim, assume-se que os projetos de C&T se enquadram numa trajetória técnico-científica e social longa (Kopytoff, 1999) e que contemplam redes sociotécnicas (Callon, 1989) e processos heterogéneos (Callon e Law, 1995).

2. As metodologias e os materiais da etnografia 2.1. A etnografia aplicada à análise de contextos empresariais e laboratoriais Desde o fim da década de 1970 que a abordagem etnográfica se tornou comum nas pesquisas relativas à produção de conhecimento no âmbito dos estudos sociais de ciência e tecnologia. A partir da etnografia inaugural de Latour e Woolgar (1979), vários estudos se lhes seguiram tomando como unidades de análise contextos laborais e de produção de conhecimento, contribuindo para a construção e consolidação de uma genealogia de pesquisas nesta área (e. g.

Knorr-Cetina, 1981).

Também nas empresas se desenvolveram estudos de cariz etnográfico, dos quais são exemplo o estudo que Garsten (1994) levou a cabo nos escritórios da Apple ou o estudo de Moeran (2007) numa agência publicitária no Japão. Em ambos os casos estamos perante terrenos de natureza tendencialmente descontínua e multisituada, o que exige adequar as práticas etnográficas a estas realidades, de forma a contribuir para a dessacralização do lugar científico (Latour e Woolgar, 1979).

No seu texto de 1995, Marcus propõe novas metodologias para a prática da etnografia no contexto do novo sistema mundial, que passariam pela adequação a objetos de estudo mais complexos, entre os quais o estudo social e cultural da ciência e da tecnologia (Marcus, 1995: 103). É neste sentido que é formulada a proposta com vista a uma etnografia multisituada (Marcus, 1995), que possa monitorizar as práticas e os discursos dos objetos de estudo a partir de múltiplos lugares de observação.

Os modos de construção desta etnografia multisituada passam pela monitorização dos vários agentes humanos e não humanos1 procurando acompanhar correntes, caminhos, linhas, conjunções ou justaposições (...) (Marcus, 1995: 105), através do estabelecimento de uma presença física do etnógrafo que permita ou possibilite a compreensão de fenómenos culturais complexos, tal como o é o da produção de conhecimento novo ou renovado em ciência e tecnologia.

A natureza dos contextos laborais leva-nos muitas vezes a caracterizá-los enquanto espaços descontínuos, de interação, de coexistência e de negociação de identidades múltiplas. Como referem Durão e Marques (2001):

Que as organizações, os contextos sociais (sócio-técnicos) da atividade de trabalho (na sua modalidade de trabalho assalariado) são espaços descontínuos, onde se recortam grupos, subgrupos, indivíduos em relação desigual, é uma velha aquisição da sociologia e da antropologia do trabalho. (Durão e Marques, 2001: 53).

O caráter simultaneamente descontínuo e multisituado dos contextos de trabalho tende a acentuar-se nos laboratórios e nas empresas, dada a sua natureza crescentemente global e fragmentada. Como tal, impõe-se uma análise dos atores sociais e das suas práticas (Latour e Woolgar, 1979), transformando-as (bem como os discursos a elas associados) nas principais fontes de informação para o etnógrafo.

Haverá então de ter em conta as dimensões sociais da produção de conhecimento como objeto de estudo, o que deverá passar por uma compreensão e um mapeamento das redes de relações sociais (institucionais e individuais) a ele associadas.

Assim, a atenção prestada () às teias de relação e significado (dos grupos, das identidades, dos espaços de autonomia) que fazem (e extravasam) as organizações de trabalho (Marques, 2009: 57) é essencial para a consolidação de uma etnografia das práticas e dos processos de produção de conhecimento.

Se as práticas de investigação em empresas e laboratórios são olhadas por muitos autores enquanto resultado da produção social (e.g. Latour e Woolgar, 1979) e da interação entre os diversos agentes em ação, então o recurso à etnografia constitui uma ferramenta privilegiada para observar as múltiplas interações que decorrem dessas sociabilidades, pela importância que atribui aos quotidianos e ao trabalho em ato (Marques, 2009), impondo-se como instrumento por excelência para o estudo da produção do conhecimento em ação (Latour, 1987).

Ao assumirmos que entendemos a produção de conhecimento como algo que acontece entre setores, áreas de conhecimento, organizações e redes (Hoholm, 2011), a tarefa do etnógrafo passa, em grande medida, pela transformação de um terreno que lhe é estranho em algo familiar, com vista à tradução das interseções produzidas, bem como da linguagem e das práticas do contexto social do qual emerge o conhecimento. Tal como nos refere Thomas Hoholm (2011):

Os processos de inovação que abrangem diferentes configurações (setores, empresas, redes, mercados) envolvem operações complexas de transferência de materiais, tecnologias, conhecimentos, práticas de trabalho, ideias e interesses. Isto não está apenas relacionado com o desenvolvimento técnico de inovações, mas também com a criação de mercados ou utilizadores, da inovação. (Hoholm, 2011: 3).

O trabalho etnográfico realizado assentou na realização de observação presencial (Marques, 2009) em duas empresas e dois laboratórios.

Assumindo que é pelo trabalho de terreno que se chega às subjetividades e às dimensões reservadas mas absolutamente relevantes dos objetos de estudo (Durão e Marques, 2001), a realização de uma etnografia centrada na produção de conhecimento passa por investigar as estratégias de associação e dissociação que ligam os instrumentos (computadores, sistemas operacionais, linguagens de programação), os colegas (analistas de sistema, programadores, engenheiros), os aliados (Estado, revistas especializadas) e o público (usuários, consumidores) (Spiess e Mattedi, 2010: 466)2, tentando ao mesmo tempo não perder de vista a heterogeneidade interna das organizações e contextos de trabalho, as tensões e os espaços de poder, negociação e autonomia que se intersectam (Durão e Marques, 2001: 57).

2.2 Os materiais da etnografia A realização da etnografia construiu-se com recurso a diferentes ferramentas e práticas de investigação, o que levou à produção de diversos materiais gerados no âmbito de processos de interação social entre os atores envolvidos, sejam eles cientistas, engenheiros, gerentes, marketing ou produção, funcionários ou clientes, governos e instituições financeiras, para não mencionar os atores não-humanos, tais como as tecnologias, textos e edifícios (Hoholm, 2011: 38).

O trabalho de campo nos laboratórios decorreu entre julho e novembro de 2011 e o trabalho de campo nas empresas decorreu entre novembro de 2011 e dezembro de 2012.

A concretização desta estratégia metodológica exigiu o acionamento das seguintes técnicas de investigação:

a. a) observação presencial de rotinas diárias, com a realização, sempre que possível, de tarefas administrativas ou técnicas de apoio à atividade quotidiana, entrevistas/conversas informais, reuniões de trabalho, eventos promovidos pelas empresas e laboratórios de apresentação de produtos, de resultados, de projetos, sessões de formação, sessões públicas de apresentação dos projeto de C&T e dos seus resultados; durante a observação foram produzidos diários e notas de campo; b) recolha e análise de documentação sobre as atividades, os membros implicados e os respetivos projetos de C&T em fontes diversas: documentos sobre os projetos, as empresas e os laboratórios; informação online (inter e intranet), informação da imprensa, informação organizacional, eventos públicos, informação sobre estratégias de I&D, etc.; entre estes materiais encontram-se folhetos, relatórios de progresso e relatórios finais de projetos, bem como websites, que aqui podem ser lidos enquanto ferramentas para o estabelecimento das redes sociotécnicas (Callon, 1989); realização de entrevistas semidiretivas a vários atores sociais, tais como dirigentes de topo, investigadores, profissionais, gestores de projeto, membros de consórcios, responsáveis pela gestão dos recursos humanos, responsáveis pela investigação e algumas pessoas do apoio logístico das empresas e laboratórios; foram realizadas 81 entrevistas. A prática etnográfica foi levada a cabo por cinco investigadoras: uma em cada um dos laboratórios, uma numa empresa e duas numa outra empresa.

3. Os terrenos da investigação: empresas e laboratórios A partir de um primeiro estudo exploratório foram selecionados dois laboratórios com o estatuto de Laboratório Associado (LA)3 e duas empresas com relações com LA e outros centros de investigação no âmbito de projetos de C&T.

O Laboratório 1, situado geograficamente na região de Lisboa e Vale do Tejo, foi criado em 2001, inicialmente agregando três institutos que desenvolviam atividade científica, de forma individualizada e independente; mais tarde, em 2011, agregou um quarto instituto, contando com 983 trabalhadores no total das unidades neste último ano. Desenvolve investigação com ênfase na química e na biologia, trabalhando temas desde a molécula ao caso clínico.

O Laboratório 2, também localizado na região de Lisboa e Vale do Tejo, foi criado no final de 2001, mas começou a funcionar como uma instituição de investigação conjunta em 2004, resultando da associação de cinco centros de investigação das áreas da biologia celular e molecular, biologia do desenvolvimento, bioquímica, imunologia, nutrição e neurociências. Em 2011 contava com 435 trabalhadores.

A Empresa A desenvolve as suas atividades nas áreas da energia, engenharia, ambiente e serviços, transportes e logística. O grupo económico onde se integra a Empresa A, no final de 2012, contava com 4676 trabalhadores, com sede em Matosinhos, cidade localizada no Norte de Portugal. No interior da empresa, os projetos de C&T selecionados enquadram-se nas áreas da automação e transportes.

A Empresa B é especializada na produção de software (produtos e serviços) em áreas como a aeronáutica, espaço, defesa, transporte, produção, energia, serviços financeiros e saúde. Com 314 trabalhadores em 2014, tem sede em Coimbra, zona Centro do país, mas possui também unidades em Lisboa e no Porto.

Cria e implementa soluções de software que garantem o suporte de funções operacionais em áreas como a proteção pessoal, de monitorização da segurança do equipamento e procura garantir que os processos sejam conduzidos de forma segura e eficiente. A investigação debruçou-se sobre alguns dos projetos de C&T em que esta empresa criou tecnologia de software.

4. Desafios metodológicos de uma análise da produção de conhecimento em contextos empresariais e laboratoriais Tomando como sustentação a discussão até ao momento desenvolvida sobre a metodologia adotada, procuraremos discutir de que forma o trabalho de terreno em contextos empresariais e laboratoriais se relaciona com o(s) seu(s) objeto (s), reflexão para a qual invocamos não as dinâmicas de observação nas empresas e nos laboratórios, mas também a natureza das relações entre observadores e observados, e dos atores sociais com as suas matérias.

4.1. O trabalho etnográfico como metodologia de investigação partilhada Apesar de alguns autores admitirem a possibilidade de partilha dos diários de campo (Sanjek, 1990), eles são geralmente pensados para serem lidos pelo etnógrafo que os produz, para que estes possam (...) produzir sentido através da interação com as notas mentais do etnógrafo (Sanjek, 1990: 92). Nesta pesquisa, o terreno foi abordado coletivamente, o que implicou não uma partilha do material produzido por cada investigadora sobre o seu terreno, mas também uma forma comum de organizar o material recolhido a partir de processos comuns de codificação e análise. Foram elaborados em conjunto grelhas e critérios de observação, guiões de entrevista e critérios de recolha de documentação sem prejuízo do trabalho realizado por cada investigadora na recolha, análise e questionamento da informação. A reflexão sobre a experiência da etnografia partilhada não é particularmente abundante, apesar de não constituir uma prática inovadora na disciplina (veja-se por exemplo os estudos etnográficos em equipa conduzidos por Franz Boas nas duas primeiras décadas do século XX). Contudo, alguns autores têm recentemente insistido na divulgação do seu modus operandi, apontando-a como a forma mais adequada de abordar terrenos etnográficos em constante reconfiguração:

O trabalho de campo foi coletivo, mesmo que um investigador tenha feito uma incursão individual no terreno, porque as notas e fotografias de campo foram partilhadas e muitas vezes discutidas com o grupo de pesquisa como um todo. Desenvolvemos um conjunto comum de práticas para transcrever e catalogar notas de campo e entrevistas, de modo a torná-los mutuamente acessíveis, e a fazerem sugestões das nossas próprias observações que complementassem ou, por vezes, contradissessem a experiência de um colega do campo. (Fornäs et al., 2007: 22).

Os diários de campo constituem a fonte principal de interpelação direta deste texto. Foi através da sua análise que pudemos identificar a grande maioria das questões que aqui debatemos e perceber até que ponto a experiência etnográfica levada a cabo nas empresas difere ou não daquela ocorrida nos laboratórios, assim como o reconhecimento dos paralelismos e antagonismos entre um e outro contexto.

Para além dos diários de campo, juntámos aos elementos de investigação uma meta-análise baseada na realização de entrevistas às cinco investigadoras que realizaram trabalho de terreno nas empresas e nos laboratórios sobre as respetivas experiências etnográficas4. Dado o seu caráter eminentemente reflexivo sobre a prática etnográfica, o conteúdo destas entrevistas constitui um precioso acervo etnográfico.

4.2. Negociações, inclusões e exclusões do investigador no terreno Etnografar processos de produção de conhecimento em ação implica seguir os atores (Latour, 1987) e perceber como as ideias, o conhecimento e o significado são gradualmente metamorfoseados e incorporados em produtos, descobertas, artigos, soluções tecnológicas que transformam a inovação em algo real (Hoholm, 2011). A integração do etnógrafo no terreno passa sobretudo pela sua capacidade para seguir os atores sociais. Esta tarefa implica, por sua vez, identificar as suas intenções, estratégias e compromissos, e a forma como estes inscrevem significado nos seus materiais e nas suas atividades (Hoholm, 2011), nos seus gestos, nas suas interações. Assim, a análise da produção de conhecimento exige perceber como este circula, é transmitido e é construído.

4.2.1. Formalidade e informalidade no trabalho de terreno em contextos laborais Na grande maioria das etnografias, o processo de entrada no terreno requer ou obedece a um processo de negociação da presença do etnógrafo. Ele opera-se, regra geral, através de uma crescente familiaridade com o objeto de estudo, levada a cabo de forma informal e descerimoniosa.

No caso das etnografias em contextos empresariais, o processo de entrada do etnógrafo no terreno obedeceu a um procedimento formal de aceitação deste no terreno, prévio à realização do trabalho de campo, e que se concretizou na assinatura de um acordo de confidencialidade.

Haverá então aqui que distinguir dois momentos distintos de etnografias em contextos de trabalho: i) a entrada do etnógrafo na unidade de pesquisa, que obedece a um processo formal e institucional: um horário de trabalho, autorização de entrada e circulação no terreno etnográfico, procedimento através do qual o trabalho de observação fica restringido à duração da vida profissional das pessoas (Caria, 1997); ii) a integração propriamente dita do etnógrafo no terreno, após a sua entrada. Se para o trabalho de terreno não sujeito a horário laboral, admissão e integração são concomitantes, para a etnografia em contextos de trabalho esses processos são dissociados e a integração é conseguida através da informalidade que se espera que suceda a um procedimento protocolar inicial.

A prática etnográfica marcada por um horário de trabalho pode levar a que o grupo de atores sociais seja tomado como uma comunidade fechada e circunscrita ao contexto laboral. A esse respeito, Althabe (1991) alerta para o perigo de tomar empresas e laboratórios como se se tratassem de micro-sociedades (a grande tentação etnológica, Althabe, 1991: 19), e refere que:

Os interlocutores que nós encontramos não se reduziram à condição que lhes é conferida na empresa. Cada um deles produz a sua identidade pessoal através da unificação singular de uma pluralidade de pertenças e, muitas vezes, a profissão não é o centro da produção, é apenas uma referência organizacional. (Althabe, 1991: 19).

A etnografia de que aqui damos conta procurou acompanhar não apenas as dinâmicas formais do trabalho em empresas e em laboratórios, isto é, a forma como os atores desempenham uma função ou tarefa, individualmente ou em equipa, mas também a dimensão informal das práticas quotidianas e interações entre os vários atores sociais, não menosprezando os atores não humanos, tendo em conta que o social é socio- materialmente constituído (Hoholm, 2011: 39). As dimensões formal e informal foram ambas mapeadas e apreendidas através da multiplicidade de pontos de observação no contexto do trabalho de terreno.

Contemplam quer momentos de interação coletiva como reuniões e apresentação de produtos, quer as práticas quotidianas dos atores sociais.

A importância de uma etnografia da informalidade em contextos de trabalho tem-se revelado fulcral em diversos estudos sobre inovação e conhecimento em ciência e tecnologia. Tal como refere Hoholm:

Como acontece com muitos outros etnógrafos, as conversas informais à mesa, junto à máquina do café e durante o almoço deram-me informações valiosas e com uma compreensão aprofundada das práticas da organização. (Hoholm, 2011: 48)

Desta forma, se a negociação formal do processo de entrada das etnógrafas nas empresas e nos laboratórios obedeceu a pro formas institucionais, a negociação informal da sua presença entre os atores sociais foi um continuum de inclusões e exclusões quotidianas.

4.2.2. Da observação distanciada e simultaneamente próxima: avanços e recuos da análise A entrada no terreno foi inicialmente pensada como podendo contemplar a prática da observação participante, e como tal foi equacionada a possibilidade de as investigadoras poderem realizar algumas tarefas no âmbito das práticas quotidianas de trabalho em cada um dos contextos laborais:

Sim, até acho que foi a Cátia que sugeriu que uma boa maneira de entrar e de as pessoas terem confiança em mim seria executar tarefas, porque era uma coisa que se fazia todos os dias, várias vezes ao dia, e era uma maneira de ajudar o próprio trabalho do laboratório, e então ficou definido que eu iria executar algumas tarefas. (entrevista à investigadora que realizou trabalho de terreno no Laboratório 2)

Mas no caso específico dos laboratórios, a realização de certas tarefas especializadas eram vistas com apreensão por parte das etnógrafas que receavam comprometer o normal decorrer da atividade científica e o seu rigor:

Tenho receio de participar pois é tudo muito meticuloso e melindroso e mais do que milimétrico e eu não tenho treino nenhum; fico nervosa e penso logo que vou falhar e que isso porá em causa o procedimento que estão a fazer o favor de me deixarem ver e no qual me confiaram uma tarefa por mais pequena que seja. (Excerto do diário de campo Laboratório 1)

Assim, e na maioria das situações relatadas pelas etnógrafas nos laboratórios, as tarefas que realizaram concentraram-se essencialmente em tarefas administrativas ou de apoio logístico ao trabalho em curso. A possibilidade da prática efetiva da observação participante foi em ambos os contextos limitada pela impossibilidade de incorporação instantânea de um habitus (Bourdieu, 1976) profissional necessário à praxis laboral dos contextos observados.

Situação semelhante verificou-se nas empresas. No caso de uma das investigadoras que esteve na empresa B, por exemplo, também foi sugerido que participasse e traduzisse um manual de instruções de um produto, mas depressa se compreendeu da dificuldade em participar numa tarefa de uma exigência extrema em termos do domínio de conhecimentos e da linguagem utilizada.

A partir deste tipo de imperativos próprios do trabalho de terreno em contextos de ciência e tecnologia, Latour e Woolgar (1979) referem que apesar da sua presença quotidiana no laboratório, o fato de não replicarem as tarefas dos cientistas tornava a sua observação distanciada, o que constituiu um fator proporcionador de uma presença reflexiva nos contextos empresariais e laboratoriais e permitiu às investigadoras desenvolver uma atividade constante de observação e de reflexão sobre as prioridades e rumos do seu trabalho. Por exemplo, na empresa B, o facto de a investigadora estar sentada numa mesa com os seus observados permitiu não desenvolver mecanismos de observação reproduzindo um modus operandi (sentada em frente a um ecrã de computador, tal como os profissionais em análise) que era simultaneamente de afastamento (porque não estava em diálogo constante com os atores sociais) e de aproximação (pois estava a trabalhar como eles), mas também permitiu ir tomando decisões relativamente às ações a empreender, que os atores sociais também desenvolviam mecanismos de expectativa relativamente ao que estaria a ser observado.

Efetivamente, a coexistência da distância e da proximidade na prática etnográfica é operativa e tem especial eficácia para os contextos de observação em questão. A descontinuidade intrínseca do terreno bem como o tipo de atividades que nele se produzem acentuam a necessidade da adoção de metodologias plásticas: o trabalho de campo fez-se tanto online como offline, na observação distanciada como na proximidade do diálogo e da convivialidade.

Vejamos alguns excertos dos diários de campo e das entrevistas e a forma como estes ilustram os processos de negociação quotidiana da presença das etnógrafas no terreno. Entre os principais obstáculos, que referir a estranheza com que as metodologias das etnógrafas eram percecionadas pelos seus objetos de estudo:

Cátia Mangueira recebeu-me e apresentou-me às várias pessoas presentes nas diferentes salas do laboratório. As pessoas sabiam da minha presença e foi frequente o comentário vem observar-nos' mas dito com algum humor. Percebi nos restantes dias que ao humor se juntou alguma apreensão, que deve ser entendida como natural'. (Excerto do diário de campo Laboratório 2)

Se as etnógrafas tiveram de solicitar constantemente uma tradução da linguagem empresarial e laboratorial, o mesmo sucedia no sentido inverso os atores sociais também necessitavam de uma tradução daquilo que era a linguagem da etnografia:

Está a fazer-lhe confusão o que é que eu ia ver ali no laboratório e tive que explicar- lhe através de exemplos o que ia ali à procura (como vocês transferem conhecimento, etc.). Ao Carlos faz-lhe muita confusão o que eu vou analisar, tem muita curiosidade (Excerto do diário de campo Laboratório 1)

Ao mesmo tempo, e tal como no imaginário coletivo está presente uma imagem recorrente sobre a figura do cientista (a bata branca, os tubos de ensaio,), e do engenheiro informático (em frente a um ecrã), também existia, por parte dos atores sociais, projeções e construções quanto ao modus operandi da etnografia e à imagem do etnógrafo:

Fazia-lhes alguma confusão o que é que eu exatamente andava à procura, o que é que eu exatamente andava a ver. Uma vez fizeram-me um comentário de que julgavam que eu ia andar com um caderninho atrás deles sempre a anotar tudo. (entrevista à investigadora que realizou trabalho de terreno no Laboratório 1)

Também a gestão das presenças e das ausências das etnógrafas no terreno foi alvo de escrutínio entre os atores sociais. Efetivamente, os processos de integração nos contextos estudados conduzem muitas vezes a uma incorporação ou adoção do investigador no contexto dos observados que se pode traduzir através de um mimetismo fiel das suas práticas e das suas performances. A lembrança de que afinal o etnógrafo não é parte daquela comunidade obriga a recorrentes negociações da sua presença no terreno:

Percebo que o facto de não estar alguns dias seguidos (quinta e sexta, em que tive reuniões, e sábado e domingo que foi fim-de- semana) não faz muito bem à minha relação com eles. Ouço piadas como Então essas férias foram boas?' e sinto que tenho que reconquistar a distância que me separa deles, sempre que isto acontece. (Excerto do diário de campo Laboratório 1)

As etnógrafas observaram profissionais e cientistas de ciências que lhes eram estranhos e os atores sociais reagiram e explicaram a sua ciência à luz daquilo que foram as suas interpretações sobre as etnógrafas. Deste modo, foi num ambiente de linguagem incomum entre as partes que decorreu o trabalho etnográfico, tendo sido, portanto, necessário e importante, ao longo do trabalho empírico, encontrar um lugar- comum de conversação.

Mas para além da estranheza provocada pela presença e pelos objetivos do trabalho do etnógrafo, comum a todos os terrenos, os contextos laborais comportam uma outra questão de caráter metodológico: a observação e a interação com os atores sociais ocorrem durante o seu período de trabalho, e não é raro que a presença do etnógrafo seja entendida como um entrave à produtividade pelas chefias, em particular nas empresas. Alguns excertos dos diários de campo dão-nos conta de algumas destas situações:

() sublinhou que preferia que viesse somente uma tarde por semana, e sempre o mesmo dia da semana para não desestabilizar, e pediu que não questionasse muito os funcionários nem solicitasse documentação.

(excerto de diário de campo Empresa A)

E ainda:

Quando cheguei ao portátil tinha uma mensagem do X a dizer para ocupar o mínimo tempo possível com as pessoas. Significa que por detrás deste funcionamento informal uma pressão enorme para não se despender tempo. Aparentemente, o que preocupou foi as entrevistas terem uma duração significativa'. Estava a pensar ir para o lado do Y vê-lo trabalhar, mas penso que será melhor deixar para amanhã de manhã. (excerto de diário de campo Empresa B)

Um dos principais desafios do trabalho etnográfico constitui-se na transformação de um terreno inicialmente desconhecido num terreno familiar.

Esta missão, que é comum a toda a prática etnográfica, tem no caso das empresas e dos laboratórios uma tarefa paralela: a desconstrução das práticas das ciências duras e/ou puras, não raramente mistificadas e misteriosas para leigos, bem como da linguagem tida como encriptada dos engenheiros, o que exigiu um trabalho de descodificação da linguagem, dos discursos formais e informais, e das práticas dos atores sociais nos contextos analisados.

No entanto, e seguindo Latour e Woolgar (1979), mais do que o estudo da metalinguagem dos informantes, o centro da análise reside nos atores e nas suas práticas. Procurou-se não sobrevalorizar os discursos produzidos de forma ordenada, isto é, os discursos de caráter institucionalizado e formal, e dar atenção aos discursos desordenados produzidos por jovens investigadores (cientistas e engenheiros) no seu trabalho de produção de conhecimento.

A afirmação dos terrenos em causa como descontínuos levou-nos a optar por estar presente no quotidiano de trabalho, mas também online noutros momentos, fora dos espaços de trabalho e em reuniões e apresentações internas e externas às organizações. A comunicação online via skype, particularmente usada por uma das investigadoras na empresa B, foi fundamental, quer para a criação de um espaço virtual informal de sociabilidade que cada ator social ocupa com muita facilidade que é um espaço privado e que permite uma liberdade acrescida de expressão, quer para o esclarecimento de questões e de dúvidas e a troca de informações (solicitação de documentos, marcação de entrevistas, informação sobre a agenda de trabalho, etc.), quer para conversas várias acerca do trabalho. Se o universo laboral das empresas é distante do das investigadoras no que diz respeito à sua orgânica e às características das relações de emprego dos atores sociais que analisam relativa estabilidade e segurança no trabalho, existência de contratos e de vínculos laborais efetivos, financiamento não dependente do Estado, etc. a realidade dos laboratórios é bem mais próxima da das investigadoras, quer em termos da natureza do trabalho, quer da situação profissional precarização da investigação científica, financiamentos dependentes maioritariamente do Estado.

Tal como referem Selim e Sugita (1991), a empatia ou proximidade pode funcionar numa perspetiva dialética e deve ser levada em conta e constituída enquanto material etnográfico:

A consciência que certos etnógrafos têm da sua precariedade assim que estão imersos na empresa pode ser interpretada como um material etnográfico. (Selim e Sugita, 1991: 10).

Mas se os laboratórios compreendem, enquanto terrenos etnográficos, uma aparente proximidade causada pelas características do seu tecido social, algo que poderá conduzir a uma identificação das etnógrafas com o contexto em análise, as práticas e os discursos presentes não se apresentaram inteligíveis para as investigadoras.

4.3. Espaços de trabalho e dinâmicas de interação como ferramentas de trabalho Os contextos de observação das duas empresas são espaços onde decorrem múltiplas atividades e onde interagem diferentes atores desempenhando tarefas distintas. Nas empresas, a maior parte do tempo de trabalho decorre em salas open-space, nas quais cada posto de trabalho corresponde a um ou mais computadores.

As características da atividade laboral desenvolvida nas empresas, bem como os espaços criados para o efeito, contribuem para a manutenção de uma certa informalidade, que é, em muitos casos, incentivada pelas próprias chefias:

É um espaço bastante dinâmico, em que apesar de maior parte do tempo estarem sentados na secretária em frente ao computador, conversam muito, quer para os colegas do lado, quer da frente, sobretudo de questões de trabalho, mas de forma bastante descontraída. É comum juntarem-se aos pares para esclarecer dúvidas e saírem das suas secretárias para ajudar algum colega. (excerto do diário de campo Empresa A)

As características dos espaços de trabalho prendem-se, naturalmente, com a natureza da atividade desenvolvida e que se traduz numa atividade de permanente manipulação e utilização de ferramentas disponíveis em terminais de computador:

Sento-me e preparo o meu local de trabalho'. O ambiente é: as pessoas estão todas sentadas, permanentemente ao computador. Têm todos computadores fixos ou portáteis. Levantam-se e sentam-se dos seus lugares sempre e conversam de forma informal, ainda que a maior parte do tempo estejam em silêncio. Alguns deles usam phones, talvez para ouvir música. Para atender os telefones saem da sala. (excerto do diário de campo Empresa B)

A criação de um software ou de um algoritmo, por exemplo, exige uma atividade de construção permanente de códigos que é acompanhada por uma consulta de documentação vária na internet e na intranet. Por sua vez, na medida em que estamos perante, na esmagadora maioria dos casos, de engenheiros, a paridade do título académico potencia uma acrescida horizontalidade das relações de trabalho e o modelo de organização do trabalho em equipa, que caracteriza as equipas responsáveis por projetos de C&T, o que acaba por se traduzir numa estrutura relacional de cariz matricial.

Persistem, no entanto, diferenças entre as duas empresas. Se em ambas uma informalidade manifesta a vários níveis, nomeadamente através da indumentária dos trabalhadores ou pelas formas de tratamento entre pares que se pautam por uma transversalidade e horizontalidade das relações, que não distingue, numa primeira leitura, hierarquias, a formalização das relações hierárquicas na empresa B é claramente mais visível do que na Empresa A. A informalidade no ambiente de trabalho e nas relações de sociabilidade é construída e alimentada pelas chefias de ambas as empresas, pela promoção, entre outras coisas, de formas de lazer coletivas que fomentem o sentido de unidade e de espírito de corpo (Bourdieu, 1989) da empresa. Um exemplo é o da organização das equipas de trabalho. Se na Empresa A as equipas de trabalho se estruturam de forma orgânica, sendo destacável, essencialmente, a existência de um coordenador, na Empresa B, e adotando uma metodologia de trabalho adaptada à criação de uma tecnologia de software, a estrutura é bem mais complexa. Por exemplo, num dos projetos de C&T estudados, que tem como objetivo central a criação de uma tecnologia de software de gestão e otimização de informação, identificamos as seguintes posições na equipa de trabalho, numa lógica de dependência hierárquica: o project owner, que gere a relação entre a equipa e os clientes e vai fazendo os devidos ajustamentos ao que está a ser realizado; é a personificação do cliente e é quem coloca a pressão para que as coisas aconteçam todas a um certo ritmo, o project owner' personifica o mercado. É também um business developer' (excertos da entrevista ao product owner do projeto); o project manager, que gere o projeto; o technical manager, que criou o projeto com o product owner e que gere as questões técnicas do projeto; os project developers, que são quem cria e desenvolve a tecnologia, incluindo, quer os engenheiros responsáveis pela criação e desenvolvimento da tecnologia, que o designer de comunicação, que cria a plataforma tecnológica de ligação com o utilizador. Mesmo entre os project developers um responsável pela coordenação do trabalho. Esta divisão do trabalho é efetiva, visível no quotidiano de trabalho e coexiste com a informalidade das relações e do tratamento por tu. É também notória nas reuniões, em que, usando uma linguagem bastante informal, o project owner e o project manager exercem sobre a equipa um efetivo papel de autoridade.

Nas empresas predomina uma lógica de comunicação fluida e integrada numa lógica de trabalho em equipa, e a organização física dos espaços está igualmente pensada de forma a facilitar essa comunicação entre pares.

A fluidez da comunicação é acentuada através do recurso às tecnologias de diálogo online, regra geral utilizando chats coletivos, onde elementos que trabalham num mesmo projeto trocam impressões sobre o mesmo. No entanto, este chat, essencialmente realizado em grupos criados no programa skype, é também utilizado para conversas mais mundanas, nomeadamente para combinações relativas às refeições e aos momentos de lazer no interior e no exterior da empresa.

Relativamente aos laboratórios, os espaços de trabalho apresentam-se mais compartimentados, dada a diversidade de tarefas que são realizadas e a sua maior individualização. Cada investigador tende a dedicar-se a um projeto individual, o que leva a que a comunicação durante o tempo de trabalho não seja muito intensa. A multiplicação de espaços, cada um com as suas especificidades, prende-se com os tipos de experiências que são realizadas em cada laboratório.

Os laboratórios são também lugares mais densos do ponto de vista dos sentidos, que para além dos sons também que contar com a ativação do olfato, com maior incidência nos laboratórios onde se realizam experiências com recurso a animais (essencialmente peixes e moscas):

O cheiro foi a primeira coisa em que reparei, com leve desagrado.

Cheira a peixe, foi o que pensei, nariz torcido. (excerto do diário de campo Laboratório 2)

Para além de espaços com equipamento específico (estufas, incubadoras, etc.) para a realização das experiências, estas decorrem regra geral nas bancadas, espaço partilhado entre técnicos e investigadores. Esta partilha não corresponde a uma horizontalidade das relações de trabalho, que os técnicos não desenvolvem atividades de investigação, mas de apoio. Mas se os instrumentos de trabalho característicos dos laboratórios são aqueles que associamos ao ofício da ciência, que referir que os computadores constituem um utensílio indispensável no quotidiano dos laboratórios, podendo eventualmente substituir o trabalho de bancada:

Muitos investigadores muitas das vezes estão a fazer coisas como o alimento das moscas, ou ao computador, não estão às bancadas', diz Cátia. Ai sim?', perguntamos. Sim, hoje em dia cada vez menos tempo se passa à bancada', refere C. Por exemplo, temos aqui a trabalhar muita gente das engenharias, das informáticas', explica, pois com os avanços tecnológicos ao nível da imagem sentiu-se a necessidade de recrutar' gente dessas áreas (ex. aumentar tamanho de x imagem, imagem tridimensional, etc., etc.). (excerto do diário de campo Laboratório 2)

Contudo, o trabalho de bancada continua a ser, nos laboratórios observados, uma das principais atividades da investigação científica. Desta forma, nestes laboratórios, o trabalho desenvolvido implica muitas vezes a adoção de procedimentos e indumentária específicos que têm de ser criteriosamente cumpridos, pois o seu não cumprimento poderá inviabilizar a experiência em curso. Assim, a utilização de batas e/ou luvas, bem como de instrumentos técnicos, faz parte do quotidiano de investigação dos laboratórios:

O trabalho de bancada pode não implicar vestir uma bata, mas implica sempre estar de luvas, utilizar substancias, utilizar amostras (sementes, arroz, arabidopsis, DNA, RNA, etc.), utilizar a pinça ou a pipeta, a pompete ou qualquer outro instrumento que medeie o trabalho do investigador e dos não-humanos seu objecto de estudo. (excerto do diário de campo Laboratório 1)

Tal como nas empresas, também nos laboratórios o ambiente é de grande informalidade, algo que contribui para a diluição das hierarquias e para a criação de um sentido de horizontalidade, ainda que com as especificidades organizacionais referidas. Em ambos os laboratórios observados existe, de forma bastante consolidada, uma rotina formal de discussão do trabalho individual dos investigadores, através da promoção de sessões periódicas onde rotativamente cada investigador apresenta e convida à discussão sobre o estado atual da sua pesquisa.

Estes momentos combinam, no entanto, a informalidade com uma grande exigência em relação ao trabalho dos pares e o fomento da competição entre eles (tal como é referido para o Laboratório 2), mas que não deixa de contribuir para a coesão e para o espírito de corpo (Bourdieu, 1989) dos investigadores pertencentes a determinada unidade de investigação.

Nos laboratórios, tal como nas empresas, a convivência entre pares é alimentada por rotinas de socialização que atravessam o quotidiano do trabalho, como, por exemplo, a celebração dos aniversários de todos os elementos do laboratório, e da comensalidade associada a estas ocasiões, bem como a apresentação semanal de papers. Quer nos aniversários, quer na apresentação de papers, alguém fica encarregue de providenciar um bolo para ser partilhado na ocasião:

É prática do Journal Club: quem fizer a apresentação seguinte, cozinha e traz bolo. Calhou à Y. (excerto do diário de campo Laboratório 2)

A importância destes momentos de comensalidade é várias vezes referida pelas investigadoras que realizaram trabalho de terreno nos laboratórios. Se, por um lado, estas ocasiões se constituem como excecionais do ponto de vista da integração no contexto laboral observado, elas são também reveladoras da informalidade e da naturalização de certas práticas que se assumem como intrínsecas à atividade científica: Pessoas com canecas, leite e café, bebem, outras lavam, Bia e Magda, lavam no lava-loiça. Eu acho isto importante pois carateriza a vida profissional dos cientistas ali, fazem tarefas mundanas como lavar a loiça no local de trabalho - e mostra o à vontade, a partilha do comum Até vemos ali pessoas a lavar os dentes, como está descrito à frente (excerto do diário de campo Laboratório 2) A integração das investigadoras nesta diversidade de espaços de trabalho e a compreensão da sua relação com a organização do trabalho, o conteúdo do trabalho e as formas de interação exigiu uma reflexão sobre estes elementos, no sentido, não apenas da integração no terreno, mas também de potenciar o uso e a análise dos espaços físico e social para a compreensão dos processos de produção de conhecimento. Interação online e presencial, formas de organização e de ocupação do espaço, tempos formais e informais de interação foram aspetos essenciais para a investigação, atendendo à invisibilidade dos processos de trabalho e à fluidez das respetivas atividades.

O objetivo deste texto prende-se com uma reflexão sobre a aplicação da metodologia etnográfica na análise de atividades de produção de conhecimento em contextos de trabalho, e muito concretamente a empresas e laboratórios enquanto terrenos distintos e diferenciados entre si. Efetivamente, e como cremos que fica patente após a sua leitura, o trabalho de terreno etnográfico realizado nas empresas e nos laboratórios aqui caraterizados revelou-se como elemento fundamental para a compreensão não apenas da natureza do trabalho realizado em ambos os contextos, mas também das relações de trabalho e da sua organização.

Estas duas últimas dimensões foram retidas como eixos fundamentais de discussão do conteúdo do trabalho, que é em dinâmicas permanentes de interação entre humanos e não humanos (virtual e presencial, isoladamente ou em discussão coletiva) que o conhecimento é produzido. Às particularidades do objeto de estudo acrescem também as especificidades do objeto empírico, marcado por uma aparente invisibilidade imediata, mas que, por via de estratégias metodológicas várias acionadas, potenciou a sua visibilidade. Assim, os momentos de interação social revelaram-se momentos fundamentais de análise, quer na sua dimensão formal (reuniões, debates, apresentações), quer informal (comensalidade, momentos de lazer), bem como a interação virtual que oscila entre a formalidade e a informalidade, adequando-se e servindo como ferramenta em ambos os casos. A possibilidade aberta pela etnografia da observação a partir de vários lugares (os físicos e os virtuais) adapta-se positivamente à natureza de contextos de trabalho descontínuos e multisituado, tal como o é o caso destes aqui observados.

O acompanhamento dos projetos de C&T como unidades de análise, e, logo, das equipas que os desenvolvem, constitui uma nova abordagem à produção de conhecimento em contextos empresariais e laboratoriais, que se pauta, entre outras caraterísticas, por uma atenção às micro-práticas dos atores sociais, bem como às dimensões humanas e não-humanas dos processos de produção de conhecimento. A assunção dos projetos de C&T como unidade de análise potenciou igualmente o uso de procedimentos metodológicos idênticos em ambos os contextos, permitindo um confronto entre dois mundos que produzem, de forma distinta, conhecimento e, logo, inovação. Importa, assim, desmistificar a ideia dos laboratórios como espaços únicos de produção de novo conhecimento, ou, se quisermos, de realização de descobertas, bem como das empresas como os agentes exclusivos da inovação.


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