Uma etnografia das práticas e dos processos de produção de conhecimento em
empresas e laboratórios
Introdução
Este artigo tem como objetivo discutir de que forma o método de pesquisa
etnográfica foi aplicado no estudo dos processos de criação e transformação de
conhecimento científico e tecnológico em contextos de trabalho empresariais e
laboratoriais. Nele procurar-se-á discutir a metodologia e respetivas
ferramentas utilizadas no âmbito de uma pesquisa sobre redes de produção de
conhecimento, colocando em confronto organizações com naturezas e objetivos
distintos e enfatizando os seguintes aspetos: i) o uso do método etnográfico no
estudo de atividades de produção de conhecimento e, logo, de investigação; ii)
a aplicação do método etnográfico a atividades económicas com um certo grau de
invisibilidade para quem as estuda, como é o caso da produção de software; iii)
a possibilidade do uso de ferramentas comuns de análise da produção de
conhecimento em contextos aparentemente tão distintos como são os laboratórios
e as empresas.
As atividades de investigação serão analisadas em dois contextos bastante
diferenciados. A análise destas dinâmicas é já bastante profícua ao nível dos
laboratórios de investigação científica (Latour e Woolgar, 1979; Knorr-Cetina,
1981; Lynch, 1985; Traweek, 1988; entre outros). O que se propõe neste artigo
é, atendendo à sua natureza, confrontar o que é etnografar a produção de novo e
renovado conhecimento nos contextos referidos, atendendo ao facto de as
empresas integrarem, nas suas atividades de Investigação e Desenvolvimento
(I&D), a investigação.
A pesquisa tomou como unidade de análise projetos de Ciência e Tecnologia
(C&T) desenvolvidos em empresas e laboratórios, tendo na sua base a aceção
de Hoholm (2011), para quem o estudo dos processos de inovação implica “(…)
estudar um objeto ou prática emergente desde o início de uma ideia até à sua
realização (ou fracasso)” (Hoholm, 2011: 38). A possibilidade de confrontar
contextos empresariais e laboratoriais tem subjacente a assunção dos projetos
de C&T como unidades de análise. Permite-nos refletir sobre a adoção e a
adequação de novas pistas metodológicas que poderão conduzir a diferentes
propostas de análise dos referidos contextos, apostando no estudo das micro-
práticas (Holhom, 2011) que combinem análises etnográficas e históricas sobre
projetos específicos de C&T e a partir das quais seja possível debater a
natureza dos processos de produção de conhecimento.
Invocando a natureza contingente dos processos de inovação (Pavitt, 2005), a
atenção prestada às particularidades e dinâmicas do projeto enquanto unidade de
observação, conduziu-nos à perceção das densidades sociais inerentes ao work in
progress da inovação, bem como às suas articulações em diferentes escalas,
micro (ao nível do projeto) e macro (ao nível da unidade de investigação ou das
instituições que as enquadram).
A análise centrar-se-á aqui essencialmente sobre dois eixos: i) as questões
metodológicas, no âmbito das quais tratará de situar e descrever os contextos
de trabalho que serviram de terreno a esta pesquisa, bem como as
especificidades de uma etnografia em contextos onde trabalho, inovação,
conhecimento, ciência e tecnologia se intersetam quotidianamente; ii) a
caracterização das dinâmicas e os contextos de observação a partir da
perspetiva etnográfica, que deverá ter em conta que quer as empresas, quer os
laboratórios, não são espaços unidimensionais, contribuindo desta forma para
evidenciar o caráter estratificado e a multiplicidade de interesses no interior
destas organizações (Durão e Marques, 2001).
1. O projeto como objeto de estudo
A assunção do projeto como unidade de análise permitiu o estudo e a reflexão
sobre as práticas de produção de conhecimento. Desta forma, nas empresas e nos
laboratórios observados, a tentativa foi a de identificar os projetos em curso
e no âmbito destes problematizar as práticas dos seus agentes, com vista à
análise da construção social da criação de novo e/ou renovado conhecimento.
A definição do que se entende por um projeto é uma questão teórico-
metodológica complexa. É possível optar por uma definição ampla e sem grande
variação no tempo (Boutinet, 1990) ou uma mais restrita, que remete para uma
aceção de projeto como um instrumento de gestão característico do denominado
“Novo Espírito do Capitalismo” (Boltanski e Chiapello, 1999).
Os projetos de C&T estudados nas empresas e nos laboratórios têm
características distintas. Se no caso das primeiras estão delimitados no tempo,
alcançam determinados patamares e objetivos (produtos, aplicações, etc.),
podendo depois ter continuidade no âmbito das linhas estratégicas das empresas,
nos segundos estamos perante projetos de longo prazo que se estruturam em
linhas e grupos de investigação que vão adicionando e revendo conhecimento e
fazendo, eventualmente, as apelidadas descobertas científicas.
Em qualquer um dos casos, cada projeto enquadra-se na respetiva área de
investigação, tem uma afetação de recursos humanos e materiais, caracteriza-se
por uma temporalidade e tem um enquadramento social. Esta opção de cariz
metodológico não retira à produção de novo conhecimento o seu caráter
socialmente contextualizado e relativamente ao qual é difícil definir um
momento fundacional (Fleck, 1979). Assim, assume-se que os projetos de C&T
se enquadram numa trajetória técnico-científica e social longa (Kopytoff, 1999)
e que contemplam redes sociotécnicas (Callon, 1989) e processos heterogéneos
(Callon e Law, 1995).
2. As metodologias e os materiais da etnografia
2.1. A etnografia aplicada à análise de contextos empresariais e laboratoriais
Desde o fim da década de 1970 que a abordagem etnográfica se tornou comum nas
pesquisas relativas à produção de conhecimento no âmbito dos estudos sociais de
ciência e tecnologia. A partir da etnografia inaugural de Latour e Woolgar
(1979), vários estudos se lhes seguiram tomando como unidades de análise
contextos laborais e de produção de conhecimento, contribuindo para a
construção e consolidação de uma genealogia de pesquisas nesta área (e. g.
Knorr-Cetina, 1981).
Também nas empresas se desenvolveram estudos de cariz etnográfico, dos quais
são exemplo o estudo que Garsten (1994) levou a cabo nos escritórios da Apple
ou o estudo de Moeran (2007) numa agência publicitária no Japão. Em ambos os
casos estamos perante terrenos de natureza tendencialmente descontínua e
multisituada, o que exige adequar as práticas etnográficas a estas realidades,
de forma a contribuir para a dessacralização do “lugar” científico (Latour e
Woolgar, 1979).
No seu texto de 1995, Marcus propõe novas metodologias para a prática da
etnografia no contexto do novo sistema mundial, que passariam pela adequação a
objetos de estudo mais complexos, entre os quais “o estudo social e cultural da
ciência e da tecnologia” (Marcus, 1995: 103). É neste sentido que é formulada a
proposta com vista a uma etnografia multisituada (Marcus, 1995), que possa
monitorizar as práticas e os discursos dos objetos de estudo a partir de
múltiplos lugares de observação.
Os “modos de construção” desta etnografia multisituada passam pela
monitorização dos vários agentes – humanos e não humanos1 – procurando
acompanhar “correntes, caminhos, linhas, conjunções ou justaposições (...)”
(Marcus, 1995: 105), através do estabelecimento de uma presença física do
etnógrafo que permita ou possibilite a compreensão de fenómenos culturais
complexos, tal como o é o da produção de conhecimento novo ou renovado em
ciência e tecnologia.
A natureza dos contextos laborais leva-nos muitas vezes a caracterizá-los
enquanto espaços descontínuos, de interação, de coexistência e de negociação de
identidades múltiplas. Como referem Durão e Marques (2001):
“Que as organizações, os contextos sociais (sócio-técnicos) da
atividade de trabalho (na sua modalidade de trabalho assalariado) são
espaços descontínuos, onde se recortam grupos, subgrupos, indivíduos
em relação desigual, é uma velha aquisição da sociologia e da
antropologia do trabalho.” (Durão e Marques, 2001: 53).
O caráter simultaneamente descontínuo e multisituado dos contextos de trabalho
tende a acentuar-se nos laboratórios e nas empresas, dada a sua natureza
crescentemente global e fragmentada. Como tal, impõe-se uma análise dos atores
sociais e das suas práticas (Latour e Woolgar, 1979), transformando-as (bem
como os discursos a elas associados) nas principais fontes de informação para o
etnógrafo.
Haverá então de ter em conta as dimensões sociais da produção de conhecimento
como objeto de estudo, o que deverá passar por uma compreensão e um mapeamento
das redes de relações sociais (institucionais e individuais) a ele associadas.
Assim, a atenção prestada “(…) às teias de relação e significado (dos grupos,
das identidades, dos espaços de autonomia…) que fazem (e extravasam) as
organizações de trabalho” (Marques, 2009: 57) é essencial para a consolidação
de uma etnografia das práticas e dos processos de produção de conhecimento.
Se as práticas de investigação em empresas e laboratórios são olhadas por
muitos autores enquanto resultado da produção social (e.g. Latour e Woolgar,
1979) e da interação entre os diversos agentes em ação, então o recurso à
etnografia constitui uma ferramenta privilegiada para observar as múltiplas
interações que decorrem dessas sociabilidades, pela importância que atribui aos
quotidianos e ao trabalho em ato (Marques, 2009), impondo-se como instrumento
por excelência para o estudo da produção do conhecimento em ação (Latour,
1987).
Ao assumirmos que entendemos a produção de conhecimento como algo que acontece
entre setores, áreas de conhecimento, organizações e redes (Hoholm, 2011), a
tarefa do etnógrafo passa, em grande medida, pela transformação de um terreno
que lhe é estranho em algo familiar, com vista à “tradução” das interseções aí
produzidas, bem como da linguagem e das práticas do contexto social do qual
emerge o conhecimento. Tal como nos refere Thomas Hoholm (2011):
“Os processos de inovação que abrangem diferentes configurações
(setores, empresas, redes, mercados) envolvem operações complexas de
transferência de materiais, tecnologias, conhecimentos, práticas de
trabalho, ideias e interesses. Isto não está apenas relacionado com o
desenvolvimento técnico de inovações, mas também com a criação de
mercados ou utilizadores, da inovação.” (Hoholm, 2011: 3).
O trabalho etnográfico realizado assentou na realização de observação
presencial (Marques, 2009) em duas empresas e dois laboratórios.
Assumindo que é pelo trabalho de terreno que se chega às subjetividades e às
dimensões reservadas mas absolutamente relevantes dos objetos de estudo (Durão
e Marques, 2001), a realização de uma etnografia centrada na produção de
conhecimento passa por investigar as estratégias de associação e dissociação
que ligam “os instrumentos (computadores, sistemas operacionais, linguagens de
programação), os colegas (analistas de sistema, programadores, engenheiros), os
aliados (Estado, revistas especializadas) e o público (usuários, consumidores)”
(Spiess e Mattedi, 2010: 466)2, tentando ao mesmo tempo não perder de vista a
“heterogeneidade interna das organizações e contextos de trabalho, as tensões e
os espaços de poder, negociação e autonomia que aí se intersectam” (Durão e
Marques, 2001: 57).
2.2 Os materiais da etnografia
A realização da etnografia construiu-se com recurso a diferentes ferramentas e
práticas de investigação, o que levou à produção de diversos materiais gerados
no âmbito de processos de interação social entre os atores envolvidos, “sejam
eles cientistas, engenheiros, gerentes, marketing ou produção, funcionários ou
clientes, governos e instituições financeiras, para não mencionar os atores
não-humanos, tais como as tecnologias, textos e edifícios” (Hoholm, 2011: 38).
O trabalho de campo nos laboratórios decorreu entre julho e novembro de 2011 e
o trabalho de campo nas empresas decorreu entre novembro de 2011 e dezembro de
2012.
A concretização desta estratégia metodológica exigiu o acionamento das
seguintes técnicas de investigação:
a. a) observação presencial de rotinas diárias, com a realização, sempre que
possível, de tarefas administrativas ou técnicas de apoio à atividade
quotidiana, entrevistas/conversas informais, reuniões de trabalho, eventos
promovidos pelas empresas e laboratórios de apresentação de produtos, de
resultados, de projetos, sessões de formação, sessões públicas de
apresentação dos projeto de C&T e dos seus resultados; durante a
observação foram produzidos diários e notas de campo;
b) recolha e análise de documentação sobre as atividades, os membros
implicados e os respetivos projetos de C&T em fontes diversas:
documentos sobre os projetos, as empresas e os laboratórios; informação
online (inter e intranet), informação da imprensa, informação
organizacional, eventos públicos, informação sobre estratégias de I&D,
etc.; entre estes materiais encontram-se folhetos, relatórios de progresso
e relatórios finais de projetos, bem como websites, que aqui podem ser
lidos enquanto ferramentas para o estabelecimento das redes sociotécnicas
(Callon, 1989); realização de entrevistas semidiretivas a vários atores
sociais, tais como dirigentes de topo, investigadores, profissionais,
gestores de projeto, membros de consórcios, responsáveis pela gestão dos
recursos humanos, responsáveis pela investigação e algumas pessoas do
apoio logístico das empresas e laboratórios; foram realizadas 81
entrevistas. A prática etnográfica foi levada a cabo por cinco
investigadoras: uma em cada um dos laboratórios, uma numa empresa e duas
numa outra empresa.
3. Os terrenos da investigação: empresas e laboratórios
A partir de um primeiro estudo exploratório foram selecionados dois
laboratórios com o estatuto de Laboratório Associado (LA)3 e duas empresas com
relações com LA e outros centros de investigação no âmbito de projetos de
C&T.
O Laboratório 1, situado geograficamente na região de Lisboa e Vale do Tejo,
foi criado em 2001, inicialmente agregando três institutos que já desenvolviam
atividade científica, de forma individualizada e independente; mais tarde, em
2011, agregou um quarto instituto, contando com 983 trabalhadores no total das
unidades neste último ano. Desenvolve investigação com ênfase na química e na
biologia, trabalhando temas desde a molécula ao caso clínico.
O Laboratório 2, também localizado na região de Lisboa e Vale do Tejo, foi
criado no final de 2001, mas só começou a funcionar como uma instituição de
investigação conjunta em 2004, resultando da associação de cinco centros de
investigação das áreas da biologia celular e molecular, biologia do
desenvolvimento, bioquímica, imunologia, nutrição e neurociências. Em 2011
contava com 435 trabalhadores.
A Empresa A desenvolve as suas atividades nas áreas da energia, engenharia,
ambiente e serviços, transportes e logística. O grupo económico onde se integra
a Empresa A, no final de 2012, contava com 4676 trabalhadores, com sede em
Matosinhos, cidade localizada no Norte de Portugal. No interior da empresa, os
projetos de C&T selecionados enquadram-se nas áreas da automação e
transportes.
A Empresa B é especializada na produção de software (produtos e serviços) em
áreas como a aeronáutica, espaço, defesa, transporte, produção, energia,
serviços financeiros e saúde. Com 314 trabalhadores em 2014, tem sede em
Coimbra, zona Centro do país, mas possui também unidades em Lisboa e no Porto.
Cria e implementa soluções de software que garantem o suporte de funções
operacionais em áreas como a proteção pessoal, de monitorização da segurança do
equipamento e procura garantir que os processos sejam conduzidos de forma
segura e eficiente. A investigação debruçou-se sobre alguns dos projetos de
C&T em que esta empresa criou tecnologia de software.
4. Desafios metodológicos de uma análise da produção de conhecimento em
contextos empresariais e laboratoriais
Tomando como sustentação a discussão até ao momento desenvolvida sobre a
metodologia adotada, procuraremos discutir de que forma o trabalho de terreno
em contextos empresariais e laboratoriais se relaciona com o(s) seu(s) objeto
(s), reflexão para a qual invocamos não só as dinâmicas de observação nas
empresas e nos laboratórios, mas também a natureza das relações entre
observadores e observados, e dos atores sociais com as suas “matérias”.
4.1. O trabalho etnográfico como metodologia de investigação partilhada
Apesar de alguns autores admitirem a possibilidade de partilha dos diários de
campo (Sanjek, 1990), eles são geralmente pensados para serem lidos pelo
etnógrafo que os produz, para que estes possam “(...) produzir sentido através
da interação com as notas mentais do etnógrafo” (Sanjek, 1990: 92). Nesta
pesquisa, o terreno foi abordado coletivamente, o que implicou não só uma
partilha do material produzido por cada investigadora sobre o seu terreno, mas
também uma forma comum de organizar o material recolhido a partir de processos
comuns de codificação e análise. Foram elaborados em conjunto grelhas e
critérios de observação, guiões de entrevista e critérios de recolha de
documentação sem prejuízo do trabalho realizado por cada investigadora na
recolha, análise e questionamento da informação. A reflexão sobre a experiência
da etnografia partilhada não é particularmente abundante, apesar de não
constituir uma prática inovadora na disciplina (veja-se por exemplo os estudos
etnográficos em equipa conduzidos por Franz Boas nas duas primeiras décadas do
século XX). Contudo, alguns autores têm recentemente insistido na divulgação do
seu modus operandi, apontando-a como a forma mais adequada de abordar terrenos
etnográficos em constante reconfiguração:
“O trabalho de campo foi coletivo, mesmo que um investigador tenha
feito uma incursão individual no terreno, porque as notas e
fotografias de campo foram partilhadas e muitas vezes discutidas com
o grupo de pesquisa como um todo. Desenvolvemos um conjunto comum de
práticas para transcrever e catalogar notas de campo e entrevistas,
de modo a torná-los mutuamente acessíveis, e a fazerem sugestões das
nossas próprias observações que complementassem ou, por vezes,
contradissessem a experiência de um colega do campo.” (Fornäs et al.,
2007: 22).
Os diários de campo constituem a fonte principal de interpelação direta deste
texto. Foi através da sua análise que pudemos identificar a grande maioria das
questões que aqui debatemos e perceber até que ponto a experiência etnográfica
levada a cabo nas empresas difere ou não daquela ocorrida nos laboratórios,
assim como o reconhecimento dos paralelismos e antagonismos entre um e outro
contexto.
Para além dos diários de campo, juntámos aos elementos de investigação uma
“meta-análise” baseada na realização de entrevistas às cinco investigadoras que
realizaram trabalho de terreno nas empresas e nos laboratórios sobre as
respetivas experiências etnográficas4. Dado o seu caráter eminentemente
reflexivo sobre a prática etnográfica, o conteúdo destas entrevistas constitui
um precioso acervo etnográfico.
4.2. Negociações, inclusões e exclusões do investigador no terreno
Etnografar processos de produção de conhecimento em ação implica seguir os
atores (Latour, 1987) e perceber como as ideias, o conhecimento e o significado
são gradualmente metamorfoseados e incorporados – em produtos, descobertas,
artigos, soluções tecnológicas que transformam a inovação em algo real (Hoholm,
2011). A integração do etnógrafo no terreno passa sobretudo pela sua capacidade
para seguir os atores sociais. Esta tarefa implica, por sua vez, identificar as
suas intenções, estratégias e compromissos, e a forma como estes inscrevem
significado nos seus materiais e nas suas atividades (Hoholm, 2011), nos seus
gestos, nas suas interações. Assim, a análise da produção de conhecimento exige
perceber como este circula, é transmitido e é construído.
4.2.1. Formalidade e informalidade no trabalho de terreno em contextos laborais
Na grande maioria das etnografias, o processo de entrada no terreno requer ou
obedece a um processo de negociação da presença do etnógrafo. Ele opera-se,
regra geral, através de uma crescente familiaridade com o objeto de estudo,
levada a cabo de forma informal e descerimoniosa.
No caso das etnografias em contextos empresariais, o processo de entrada do
etnógrafo no terreno obedeceu a um procedimento formal de aceitação deste no
terreno, prévio à realização do trabalho de campo, e que se concretizou na
assinatura de um acordo de confidencialidade.
Haverá então aqui que distinguir dois momentos distintos de etnografias em
contextos de trabalho: i) a entrada do etnógrafo na unidade de pesquisa, que
obedece a um processo formal e institucional: um horário de trabalho,
autorização de entrada e circulação no terreno etnográfico, procedimento
através do qual o trabalho de observação fica restringido à duração da vida
profissional das pessoas (Caria, 1997); ii) a integração propriamente dita do
etnógrafo no terreno, após a sua entrada. Se para o trabalho de terreno não
sujeito a horário laboral, admissão e integração são concomitantes, para a
etnografia em contextos de trabalho esses processos são dissociados e a
integração é conseguida através da informalidade que se espera que suceda a um
procedimento protocolar inicial.
A prática etnográfica marcada por um horário de trabalho pode levar a que o
grupo de atores sociais seja tomado como uma comunidade fechada e circunscrita
ao contexto laboral. A esse respeito, Althabe (1991) alerta para o perigo de
tomar empresas e laboratórios como se se tratassem de micro-sociedades (“a
grande tentação etnológica”, Althabe, 1991: 19), e refere que:
“Os interlocutores que nós encontramos não se reduziram à condição
que lhes é conferida na empresa. Cada um deles produz a sua
identidade pessoal através da unificação singular de uma pluralidade
de pertenças e, muitas vezes, a profissão já não é o centro da
produção, é apenas uma referência organizacional.” (Althabe, 1991:
19).
A etnografia de que aqui damos conta procurou acompanhar não apenas as
dinâmicas formais do trabalho em empresas e em laboratórios, isto é, a forma
como os atores desempenham uma função ou tarefa, individualmente ou em equipa,
mas também a dimensão informal das práticas quotidianas e interações entre os
vários atores sociais, não menosprezando os atores não humanos, tendo em conta
que “o social é socio- materialmente constituído” (Hoholm, 2011: 39). As
dimensões “formal” e “informal” foram ambas mapeadas e apreendidas através da
multiplicidade de pontos de observação no contexto do trabalho de terreno.
Contemplam quer momentos de interação coletiva como reuniões e apresentação de
produtos, quer as práticas quotidianas dos atores sociais.
A importância de uma “etnografia da informalidade” em contextos de trabalho
tem-se revelado fulcral em diversos estudos sobre inovação e conhecimento em
ciência e tecnologia. Tal como refere Hoholm:
“Como acontece com muitos outros etnógrafos, as conversas informais à
mesa, junto à máquina do café e durante o almoço deram-me informações
valiosas e com uma compreensão aprofundada das práticas da
organização.” (Hoholm, 2011: 48)
Desta forma, se a negociação formal do processo de entrada das etnógrafas nas
empresas e nos laboratórios obedeceu a pro formas institucionais, a negociação
informal da sua presença entre os atores sociais foi um continuum de inclusões
e exclusões quotidianas.
4.2.2. Da “observação distanciada e simultaneamente próxima”: avanços e recuos
da análise
A entrada no terreno foi inicialmente pensada como podendo contemplar a prática
da observação participante, e como tal foi equacionada a possibilidade de as
investigadoras poderem realizar algumas tarefas no âmbito das práticas
quotidianas de trabalho em cada um dos contextos laborais:
“Sim, até acho que foi a Cátia que sugeriu que uma boa maneira de
entrar e de as pessoas terem confiança em mim seria executar tarefas,
porque era uma coisa que se fazia todos os dias, várias vezes ao dia,
e era uma maneira de ajudar o próprio trabalho do laboratório, e
então ficou definido que eu iria executar algumas tarefas.”
(entrevista à investigadora que realizou trabalho de terreno no
Laboratório 2)
Mas no caso específico dos laboratórios, a realização de certas tarefas
especializadas eram vistas com apreensão por parte das etnógrafas que receavam
comprometer o normal decorrer da atividade científica e o seu rigor:
“Tenho receio de participar pois é tudo muito meticuloso e melindroso
e mais do que milimétrico e eu não tenho treino nenhum; fico nervosa
e penso logo que vou falhar e que isso porá em causa o procedimento
que estão a fazer o favor de me deixarem ver e no qual me confiaram
uma tarefa por mais pequena que seja.”
(Excerto do diário de campo – Laboratório 1)
Assim, e na maioria das situações relatadas pelas etnógrafas nos laboratórios,
as tarefas que realizaram concentraram-se essencialmente em tarefas
administrativas ou de apoio logístico ao trabalho em curso. A possibilidade da
prática efetiva da observação participante foi em ambos os contextos limitada
pela impossibilidade de incorporação instantânea de um habitus (Bourdieu, 1976)
profissional necessário à praxis laboral dos contextos observados.
Situação semelhante verificou-se nas empresas. No caso de uma das
investigadoras que esteve na empresa B, por exemplo, também foi sugerido que
participasse e traduzisse um manual de instruções de um produto, mas depressa
se compreendeu da dificuldade em participar numa tarefa de uma exigência
extrema em termos do domínio de conhecimentos e da linguagem utilizada.
A partir deste tipo de imperativos próprios do trabalho de terreno em contextos
de ciência e tecnologia, Latour e Woolgar (1979) referem que apesar da sua
presença quotidiana no laboratório, o fato de não replicarem as tarefas dos
cientistas tornava a sua observação distanciada, o que constituiu um fator
proporcionador de uma presença reflexiva nos contextos empresariais e
laboratoriais e permitiu às investigadoras desenvolver uma atividade constante
de observação e de reflexão sobre as prioridades e rumos do seu trabalho. Por
exemplo, na empresa B, o facto de a investigadora estar sentada numa mesa com
os seus “observados” permitiu não só desenvolver mecanismos de observação
reproduzindo um modus operandi (sentada em frente a um ecrã de computador, tal
como os profissionais em análise) que era simultaneamente de afastamento
(porque não estava em diálogo constante com os atores sociais) e de aproximação
(pois estava a trabalhar “como eles”), mas também permitiu ir tomando decisões
relativamente às ações a empreender, já que os atores sociais também
desenvolviam mecanismos de expectativa relativamente ao que estaria a ser
observado.
Efetivamente, a coexistência da distância e da proximidade na prática
etnográfica é operativa e tem especial eficácia para os contextos de observação
em questão. A descontinuidade intrínseca do terreno bem como o tipo de
atividades que nele se produzem acentuam a necessidade da adoção de
metodologias plásticas: o trabalho de campo fez-se tanto online como offline,
na observação distanciada como na proximidade do diálogo e da convivialidade.
Vejamos alguns excertos dos diários de campo e das entrevistas e a forma como
estes ilustram os processos de negociação quotidiana da presença das etnógrafas
no terreno. Entre os principais obstáculos, há que referir a estranheza com que
as metodologias das etnógrafas eram percecionadas pelos seus “objetos de
estudo”:
“Cátia Mangueira recebeu-me e apresentou-me às várias pessoas
presentes nas diferentes salas do laboratório. As pessoas já sabiam
da minha presença e foi frequente o comentário ‘vem observar-nos' mas
dito com algum humor. Percebi nos restantes dias que ao humor se
juntou alguma apreensão, que deve ser entendida como ‘natural'.”
(Excerto do diário de campo – Laboratório 2)
Se as etnógrafas tiveram de solicitar constantemente uma “tradução” da
linguagem empresarial e laboratorial, o mesmo sucedia no sentido inverso – os
atores sociais também necessitavam de uma “tradução” daquilo que era a
linguagem da etnografia:
“Está a fazer-lhe confusão o que é que eu ia ver ali no laboratório e
tive que explicar- lhe através de exemplos o que ia ali à procura
(como vocês transferem conhecimento, etc.). Ao Carlos faz-lhe muita
confusão o que eu vou analisar, tem muita curiosidade…”
(Excerto do diário de campo – Laboratório 1)
Ao mesmo tempo, e tal como no imaginário coletivo está presente uma imagem
recorrente sobre a figura do cientista (a bata branca, os tubos de ensaio,…), e
do engenheiro informático (em frente a um ecrã), também existia, por parte dos
atores sociais, projeções e construções quanto ao modus operandi da etnografia
e à imagem do etnógrafo:
“Fazia-lhes alguma confusão o que é que eu exatamente andava à
procura, o que é que eu exatamente andava a ver. Uma vez fizeram-me
um comentário de que julgavam que eu ia andar com um caderninho atrás
deles sempre a anotar tudo.”
(entrevista à investigadora que realizou trabalho de terreno no
Laboratório 1)
Também a gestão das presenças e das ausências das etnógrafas no terreno foi
alvo de escrutínio entre os atores sociais. Efetivamente, os processos de
integração nos contextos estudados conduzem muitas vezes a uma incorporação ou
adoção do investigador no contexto dos “observados” que se pode traduzir
através de um mimetismo fiel das suas práticas e das suas performances. A
lembrança de que afinal o etnógrafo não é parte daquela “comunidade” obriga a
recorrentes negociações da sua presença no terreno:
“Percebo que o facto de não estar cá alguns dias seguidos (quinta e
sexta, em que tive reuniões, e sábado e domingo que foi fim-de-
semana) não faz muito bem à minha relação com eles. Ouço piadas como
‘Então essas férias foram boas?' e sinto que tenho que reconquistar a
distância que me separa deles, sempre que isto acontece.” (Excerto do
diário de campo – Laboratório 1)
As etnógrafas observaram profissionais e cientistas de ciências que lhes eram
estranhos e os atores sociais reagiram e explicaram a sua ciência à luz daquilo
que foram as suas interpretações sobre as etnógrafas. Deste modo, foi num
ambiente de linguagem incomum entre as partes que decorreu o trabalho
etnográfico, tendo sido, portanto, necessário e importante, ao longo do
trabalho empírico, encontrar um lugar- comum de conversação.
Mas para além da estranheza provocada pela presença e pelos objetivos do
trabalho do etnógrafo, comum a todos os terrenos, os contextos laborais
comportam uma outra questão de caráter metodológico: a observação e a interação
com os atores sociais ocorrem durante o seu período de trabalho, e não é raro
que a presença do etnógrafo seja entendida como um entrave à produtividade
pelas chefias, em particular nas empresas. Alguns excertos dos diários de campo
dão-nos conta de algumas destas situações:
“(…) sublinhou que preferia que viesse somente uma tarde por semana,
e sempre o mesmo dia da semana para não desestabilizar, e pediu que
não questionasse muito os funcionários nem solicitasse documentação.”
(excerto de diário de campo – Empresa A)
E ainda:
“Quando cheguei ao portátil tinha uma mensagem do X a dizer para
ocupar o mínimo tempo possível com as pessoas. Significa que por
detrás deste funcionamento informal há uma pressão enorme para não se
despender tempo. Aparentemente, o que preocupou foi as entrevistas
terem uma ‘duração significativa'. Estava a pensar ir para o lado do
Y vê-lo trabalhar, mas penso que será melhor deixar para amanhã de
manhã.”
(excerto de diário de campo – Empresa B)
Um dos principais desafios do trabalho etnográfico constitui-se na
transformação de um terreno inicialmente desconhecido num terreno familiar.
Esta missão, que é comum a toda a prática etnográfica, tem no caso das empresas
e dos laboratórios uma tarefa paralela: a desconstrução das práticas das
ciências “duras” e/ou “puras”, não raramente mistificadas e misteriosas para
leigos, bem como da linguagem tida como encriptada dos engenheiros, o que
exigiu um trabalho de descodificação da linguagem, dos discursos formais e
informais, e das práticas dos atores sociais nos contextos analisados.
No entanto, e seguindo Latour e Woolgar (1979), mais do que o estudo da
“metalinguagem” dos informantes, o centro da análise reside nos atores e nas
suas práticas. Procurou-se não sobrevalorizar os discursos produzidos de forma
ordenada, isto é, os discursos de caráter institucionalizado e formal, e dar
atenção aos discursos “desordenados” produzidos por jovens investigadores
(cientistas e engenheiros) no seu trabalho de produção de conhecimento.
A afirmação dos terrenos em causa como descontínuos levou-nos a optar por estar
presente no quotidiano de trabalho, mas também online noutros momentos, fora
dos espaços de trabalho e em reuniões e apresentações internas e externas às
organizações. A comunicação online via skype, particularmente usada por uma das
investigadoras na empresa B, foi fundamental, quer para a criação de um espaço
virtual informal de sociabilidade que cada ator social ocupa com muita
facilidade já que é um espaço “privado” e que permite uma liberdade acrescida
de expressão, quer para o esclarecimento de questões e de dúvidas e a troca de
informações (solicitação de documentos, marcação de entrevistas, informação
sobre a agenda de trabalho, etc.), quer para conversas várias acerca do
trabalho. Se o universo laboral das empresas é distante do das investigadoras
no que diz respeito à sua orgânica e às características das relações de emprego
dos atores sociais que analisam – relativa estabilidade e segurança no
trabalho, existência de contratos e de vínculos laborais efetivos,
financiamento não dependente do Estado, etc. – a realidade dos laboratórios é
bem mais próxima da das investigadoras, quer em termos da natureza do trabalho,
quer da situação profissional – precarização da investigação científica,
financiamentos dependentes maioritariamente do Estado.
Tal como referem Selim e Sugita (1991), a empatia ou proximidade pode funcionar
numa perspetiva dialética e deve ser levada em conta e constituída enquanto
material etnográfico:
“A consciência que certos etnógrafos têm da sua precariedade assim
que estão imersos na empresa pode ser interpretada como um material
etnográfico.” (Selim e Sugita, 1991: 10).
Mas se os laboratórios compreendem, enquanto terrenos etnográficos, uma
aparente proximidade causada pelas características do seu tecido social, algo
que poderá conduzir a uma identificação das etnógrafas com o contexto em
análise, as práticas e os discursos aí presentes não se apresentaram
inteligíveis para as investigadoras.
4.3. Espaços de trabalho e dinâmicas de interação como ferramentas de trabalho
Os contextos de observação das duas empresas são espaços onde decorrem
múltiplas atividades e onde interagem diferentes atores desempenhando tarefas
distintas. Nas empresas, a maior parte do tempo de trabalho decorre em salas
open-space, nas quais cada posto de trabalho corresponde a um ou mais
computadores.
As características da atividade laboral desenvolvida nas empresas, bem como os
espaços criados para o efeito, contribuem para a manutenção de uma certa
informalidade, que é, em muitos casos, incentivada pelas próprias chefias:
“É um espaço bastante dinâmico, em que apesar de maior parte do tempo
estarem sentados na secretária em frente ao computador, conversam
muito, quer para os colegas do lado, quer da frente, sobretudo de
questões de trabalho, mas de forma bastante descontraída. É comum
juntarem-se aos pares para esclarecer dúvidas e saírem das suas
secretárias para ajudar algum colega.”
(excerto do diário de campo – Empresa A)
As características dos espaços de trabalho prendem-se, naturalmente, com a
natureza da atividade desenvolvida e que se traduz numa atividade de permanente
manipulação e utilização de ferramentas disponíveis em terminais de computador:
“Sento-me e preparo o meu ‘local de trabalho'. O ambiente é: as
pessoas estão todas sentadas, permanentemente ao computador. Têm
todos computadores fixos ou portáteis. Levantam-se e sentam-se dos
seus lugares sempre e conversam de forma informal, ainda que a maior
parte do tempo estejam em silêncio. Alguns deles usam phones, talvez
para ouvir música. Para atender os telefones saem da sala.”
(excerto do diário de campo – Empresa B)
A criação de um software ou de um algoritmo, por exemplo, exige uma atividade
de construção permanente de códigos que é acompanhada por uma consulta de
documentação vária na internet e na intranet. Por sua vez, na medida em que
estamos perante, na esmagadora maioria dos casos, de engenheiros, a paridade do
título académico potencia uma acrescida horizontalidade das relações de
trabalho e o modelo de organização do trabalho em equipa, que caracteriza as
equipas responsáveis por projetos de C&T, o que acaba por se traduzir numa
estrutura relacional de cariz matricial.
Persistem, no entanto, diferenças entre as duas empresas. Se em ambas há uma
informalidade manifesta a vários níveis, nomeadamente através da indumentária
dos trabalhadores ou pelas formas de tratamento entre pares que se pautam por
uma transversalidade e horizontalidade das relações, que não distingue, numa
primeira leitura, hierarquias, a formalização das relações hierárquicas na
empresa B é claramente mais visível do que na Empresa A. A informalidade no
ambiente de trabalho e nas relações de sociabilidade é construída e alimentada
pelas chefias de ambas as empresas, pela promoção, entre outras coisas, de
formas de lazer coletivas que fomentem o sentido de unidade e de “espírito de
corpo” (Bourdieu, 1989) da empresa. Um exemplo é o da organização das equipas
de trabalho. Se na Empresa A as equipas de trabalho se estruturam de forma
orgânica, sendo destacável, essencialmente, a existência de um coordenador, já
na Empresa B, e adotando uma metodologia de trabalho adaptada à criação de uma
tecnologia de software, a estrutura é bem mais complexa. Por exemplo, num dos
projetos de C&T estudados, que tem como objetivo central a criação de uma
tecnologia de software de gestão e otimização de informação, identificamos as
seguintes posições na equipa de trabalho, numa lógica de dependência
hierárquica: o project owner, que gere a relação entre a equipa e os clientes e
vai fazendo os devidos ajustamentos ao que está a ser realizado; é “a
personificação do cliente” e “é quem coloca a pressão para que as coisas
aconteçam todas a um certo ritmo”, “o ‘project owner' personifica o mercado. É
também um ‘business developer' (excertos da entrevista ao product owner do
projeto); o project manager, que gere o projeto; o technical manager, que criou
o projeto com o product owner e que gere as questões técnicas do projeto; os
project developers, que são quem cria e desenvolve a tecnologia, incluindo,
quer os engenheiros responsáveis pela criação e desenvolvimento da tecnologia,
que o designer de comunicação, que cria a plataforma tecnológica de ligação com
o utilizador. Mesmo entre os project developers há um responsável pela
coordenação do trabalho. Esta divisão do trabalho é efetiva, visível no
quotidiano de trabalho e coexiste com a informalidade das relações e do
tratamento por “tu”. É também notória nas reuniões, em que, usando uma
linguagem bastante informal, o project owner e o project manager exercem sobre
a equipa um efetivo papel de autoridade.
Nas empresas predomina uma lógica de comunicação fluida e integrada numa lógica
de trabalho em equipa, e a organização física dos espaços está igualmente
pensada de forma a facilitar essa comunicação entre pares.
A fluidez da comunicação é acentuada através do recurso às tecnologias de
diálogo online, regra geral utilizando chats coletivos, onde elementos que
trabalham num mesmo projeto trocam impressões sobre o mesmo. No entanto, este
chat, essencialmente realizado em grupos criados no programa skype, é também
utilizado para conversas mais mundanas, nomeadamente para combinações relativas
às refeições e aos momentos de lazer no interior e no exterior da empresa.
Relativamente aos laboratórios, os espaços de trabalho apresentam-se mais
compartimentados, dada a diversidade de tarefas que aí são realizadas e a sua
maior individualização. Cada investigador tende a dedicar-se a um projeto
individual, o que leva a que a comunicação durante o tempo de trabalho não seja
muito intensa. A multiplicação de espaços, cada um com as suas especificidades,
prende-se com os tipos de experiências que são realizadas em cada laboratório.
Os laboratórios são também lugares mais “densos” do ponto de vista dos
sentidos, já que para além dos sons há também que contar com a ativação do
olfato, com maior incidência nos laboratórios onde se realizam experiências com
recurso a animais (essencialmente peixes e moscas):
“O cheiro foi a primeira coisa em que reparei, com leve desagrado.
“Cheira a peixe”, foi o que pensei, nariz torcido.”
(excerto do diário de campo – Laboratório 2)
Para além de espaços com equipamento específico (estufas, incubadoras, etc.)
para a realização das experiências, estas decorrem regra geral nas bancadas,
espaço partilhado entre técnicos e investigadores. Esta partilha não
corresponde a uma horizontalidade das relações de trabalho, já que os técnicos
não desenvolvem atividades de investigação, mas de apoio. Mas se os
instrumentos de trabalho característicos dos laboratórios são aqueles que
associamos ao “ofício da ciência”, há que referir que os computadores
constituem um utensílio indispensável no quotidiano dos laboratórios, podendo
eventualmente substituir o trabalho de bancada:
“Muitos investigadores muitas das vezes estão a fazer coisas como o
alimento das moscas, ou ao computador, não estão às bancadas', diz
Cátia. ‘Ai sim?', perguntamos. ‘Sim, hoje em dia cada vez menos tempo
se passa à bancada', refere C. ‘Por exemplo, temos aqui a trabalhar
muita gente das engenharias, das informáticas', explica, pois com os
avanços tecnológicos ao nível da imagem sentiu-se a necessidade de
‘recrutar' gente dessas áreas (ex. aumentar tamanho de x imagem,
imagem tridimensional, etc., etc.).” (excerto do diário de campo –
Laboratório 2)
Contudo, o “trabalho de bancada” continua a ser, nos laboratórios observados,
uma das principais atividades da investigação científica. Desta forma, nestes
laboratórios, o trabalho desenvolvido implica muitas vezes a adoção de
procedimentos e indumentária específicos que têm de ser criteriosamente
cumpridos, pois o seu não cumprimento poderá inviabilizar a experiência em
curso. Assim, a utilização de batas e/ou luvas, bem como de instrumentos
técnicos, faz parte do quotidiano de investigação dos laboratórios:
“O trabalho de bancada pode não implicar vestir uma bata, mas implica
sempre estar de luvas, utilizar substancias, utilizar amostras
(sementes, arroz, arabidopsis, DNA, RNA, etc.), utilizar a pinça ou a
pipeta, a pompete ou qualquer outro instrumento que medeie o trabalho
do investigador e dos não-humanos seu objecto de estudo.”
(excerto do diário de campo – Laboratório 1)
Tal como nas empresas, também nos laboratórios o ambiente é de grande
informalidade, algo que contribui para a diluição das hierarquias e para a
criação de um sentido de horizontalidade, ainda que com as especificidades
organizacionais referidas. Em ambos os laboratórios observados existe, de forma
bastante consolidada, uma rotina formal de discussão do trabalho individual dos
investigadores, através da promoção de sessões periódicas onde rotativamente
cada investigador apresenta e convida à discussão sobre o estado atual da sua
pesquisa.
Estes momentos combinam, no entanto, a informalidade com uma grande exigência
em relação ao trabalho dos pares e o fomento da competição entre eles (tal como
é referido para o Laboratório 2), mas que não deixa de contribuir para a coesão
e para o “espírito de corpo” (Bourdieu, 1989) dos investigadores pertencentes a
determinada unidade de investigação.
Nos laboratórios, tal como nas empresas, a convivência entre pares é alimentada
por rotinas de socialização que atravessam o quotidiano do trabalho, como, por
exemplo, a celebração dos aniversários de todos os elementos do laboratório, e
da comensalidade associada a estas ocasiões, bem como a apresentação semanal de
papers. Quer nos aniversários, quer na apresentação de papers, alguém fica
encarregue de providenciar um bolo para ser partilhado na ocasião:
“É prática do Journal Club: quem fizer a apresentação seguinte,
cozinha e traz bolo. Calhou à Y.”
(excerto do diário de campo – Laboratório 2)
A importância destes momentos de comensalidade é várias vezes referida pelas
investigadoras que realizaram trabalho de terreno nos laboratórios. Se, por um
lado, estas ocasiões se constituem como excecionais do ponto de vista da
integração no contexto laboral observado, elas são também reveladoras da
informalidade e da naturalização de certas práticas que se assumem como
intrínsecas à atividade científica:
“Pessoas com canecas, leite e café, bebem, outras lavam, Bia e Magda, lavam no
lava-loiça. Eu acho isto importante pois carateriza a vida profissional dos
cientistas ali, fazem tarefas mundanas – como lavar a loiça no local de
trabalho - e mostra o à vontade, a partilha do comum… Até vemos ali pessoas a
lavar os dentes, como está descrito à frente…”
(excerto do diário de campo – Laboratório 2)
A integração das investigadoras nesta diversidade de espaços de trabalho e a
compreensão da sua relação com a organização do trabalho, o conteúdo do
trabalho e as formas de interação exigiu uma reflexão sobre estes elementos, no
sentido, não apenas da integração no terreno, mas também de potenciar o uso e a
análise dos espaços físico e social para a compreensão dos processos de
produção de conhecimento. Interação online e presencial, formas de organização
e de ocupação do espaço, tempos formais e informais de interação foram aspetos
essenciais para a investigação, atendendo à invisibilidade dos processos de
trabalho e à fluidez das respetivas atividades.
O objetivo deste texto prende-se com uma reflexão sobre a aplicação da
metodologia etnográfica na análise de atividades de produção de conhecimento em
contextos de trabalho, e muito concretamente a empresas e laboratórios enquanto
terrenos distintos e diferenciados entre si. Efetivamente, e como cremos que
fica patente após a sua leitura, o trabalho de terreno etnográfico realizado
nas empresas e nos laboratórios aqui caraterizados revelou-se como elemento
fundamental para a compreensão não apenas da natureza do trabalho realizado em
ambos os contextos, mas também das relações de trabalho e da sua organização.
Estas duas últimas dimensões foram retidas como eixos fundamentais de discussão
do conteúdo do trabalho, já que é em dinâmicas permanentes de interação entre
humanos e não humanos (virtual e presencial, isoladamente ou em discussão
coletiva) que o conhecimento é produzido. Às particularidades do objeto de
estudo acrescem também as especificidades do objeto empírico, marcado por uma
aparente invisibilidade imediata, mas que, por via de estratégias metodológicas
várias acionadas, potenciou a sua visibilidade. Assim, os momentos de interação
social revelaram-se momentos fundamentais de análise, quer na sua dimensão
formal (reuniões, debates, apresentações), quer informal (comensalidade,
momentos de lazer), bem como a interação virtual – que oscila entre a
formalidade e a informalidade, adequando-se e servindo como ferramenta em ambos
os casos. A possibilidade aberta pela etnografia da observação a partir de
vários lugares (os físicos e os virtuais) adapta-se positivamente à natureza de
contextos de trabalho descontínuos e multisituado, tal como o é o caso destes
aqui observados.
O acompanhamento dos projetos de C&T como unidades de análise, e, logo, das
equipas que os desenvolvem, constitui uma nova abordagem à produção de
conhecimento em contextos empresariais e laboratoriais, que se pauta, entre
outras caraterísticas, por uma atenção às micro-práticas dos atores sociais,
bem como às dimensões humanas e não-humanas dos processos de produção de
conhecimento. A assunção dos projetos de C&T como unidade de análise
potenciou igualmente o uso de procedimentos metodológicos idênticos em ambos os
contextos, permitindo um confronto entre dois mundos que produzem, de forma
distinta, conhecimento e, logo, inovação. Importa, assim, desmistificar a ideia
dos laboratórios como espaços únicos de produção de novo conhecimento, ou, se
quisermos, de realização de descobertas, bem como das empresas como os agentes
exclusivos da inovação.