Das tensões entre desmistificar e reconhecer os discursos ao repensar o
“social”: manifesto por uma sociologia ecléctica
Introdução: reflexões induzidas por um duplo estatuto do investigador
Este artigo propõe uma reflexão sobre a teoria e a prática sociológicas
motivada pelo duplo estatuto do autor como sociólogo e músico, discutindo
diversas correntes da sociologia, desde as suas referências fundacionais até
perspectivas mais recentes. Fazendo parte do seu próprio objecto de pesquisa, o
autor tem estudado etnograficamente os modos como um instrumento específico
(viola d'arco) é visto e usado pelos músicos. Devo salientar que este não é um
texto empiricamente orientado ou destinado a reportar resultados de pesquisa.
Antes, tem um carácter epistemológico, teórico e metodológico de âmbito global.
Assim, apenas me referirei a exemplos empíricos específicos quando estritamente
necessário.
Inicialmente enquadrado pelo construtivismo social e pela intenção de seguir os
discursos dos actores sociais (aqui, músicos), cedo se tornou evidente que a
clássica desmistificação sociológica fazia também parte da minha abordagem. As
tensões e dilemas entre reconhecer versusdesmistificar (e potencialmente
desqualificar) discursos dos actores sociais observados suscitaram uma reflexão
constante e o desenvolvimento de estratégias adequadas. As práticas e as
materialidades implicadas no acto de tocar um instrumento musical (tecnologias
e propriedades sonoras dos instrumentos e da música, usos do corpo e “modos de
fazer” corporalizados, etc.) fizeram-me questionar a suficiência de seguir e
analisar somente representações e discursos. Progressivamente, apercebi-me da
necessidade de considerar partes da realidade tradicionalmente excluídas da
abordagem sociológica, porque consideradas “extra-sociais”.
Globalmente, este artigo focaliza-se em dois aspectos: (i) as tensões e dilemas
entre seguir e desmistificar os discursos1 e (ii) a necessidade de discutir a
relação da sociologia com o “extra-social” e consequentemente de repensar o
próprio “social”, a regra durkheimiana de que a sociologia se deve restringir a
explicar o social pelo social e, no fundo, o âmbito da própria sociologia. As
reflexões finais proporão uma sociologia ecléctica e híbrida, sendo ainda
relevantes como notas pragmáticas de uma sociologia da sociologia e da prática
científica e académica.
1. Seguir/reconhecer versusdesmistificar/desqualificar os discursos
Na sua concepção clássica, de certo modo classificável como moderna, a
sociologia é concebida como revelação e desmistificação, como um olhar que
permite ver para além das aparências, pretendendo clarificar e compreender
mecanismos e processos considerados invisíveis aos olhos dos próprios actores
sociais (ou por eles escondidos) e, por isso, de certa forma objectivos. A
conhecida expressão de Berger “‘ver através' ou ‘por detrás' das fachadas das
estruturas sociais”, reflectindo uma visão da sociologia como uma “forma de
consciência” (Berger, 1963: 10-11)2, é altamente representativa deste modo de
entender a prática sociológica.
Sob a égide do positivismo, Durkheim, visto unanimemente como um dos fundadores
da sociologia, definiu, n'As Regras do Método Sociológico, os “factos sociais”
como “coisas” independentes das suas manifestações individuais (e daí
colectivas), exteriores aos indivíduos e exercendo uma coerção sobre eles
(Durkheim, 1998 (1894)) – caps. 1 e 2: 29-68). Posteriormente, Bachelard (1986
(1938)) serviria de referência para a emergência de uma sociologia
racionalista, particularmente a noção de que uma “ruptura epistemológica” com o
“senso comum” é condição necessária para a produção de conhecimento científico
válido3. A ideia de que tal nos obriga a cultivar distância em relação ao
objecto de estudo e àqueles que estudamos fundamenta a noção de “objectivação”,
cara a Bourdieu4.
A “objectivação” opõe-se ao “senso comum”, sendo os discursos dos actores
sociais alvo de desconfiança – para Bourdieu o que as pessoas dizem é visto
como mera doxa5, uma falsa consciência ou conhecimento que, resultando dos seus
interesses, “crença” no “jogo” (illusio)6 ou de “razões práticas” (Bourdieu,
1994), não é, pois, fiável. Os discursos são vistos como um reflexo da
presumida incapacidade reflexiva7 dos actores sociais para compreenderem as
implicações objectivas do mundo social que os rodeia e que condiciona ou
determina as suas acções8.
Facilmente se detecta aqui a tendência para desqualificar os discursos dos
actores sociais. Depois de comentar o conceito de “ideal-tipo” de Weber (a
quem, no entanto, devemos a tradição da sociologia compreensiva contrastante
com o positivismo seguido por Durkheim9), Aron despoja as pessoas da capacidade
de percepcionar a verdadeira significância da sua condição ao escrever que a
sociologia é mais capaz do que os próprios actores de aceder ao verdadeiro
significado das suas vivências10, o que para muitos é uma afirmação altamente
problemática e controversa.
Contrastando com estas tradições, há uma tendência oposta na sociologia,
representada por várias correntes que apontam para o reconhecimento dos
discursos dos actores sociais – desde o método “interpretativo” para
compreender a acção não- racional de Weber (1978), passando pela fenomenologia
social de Schutz (1967 (1932)) (com a sua insistência na subjetividade e nas
“realidades múltiplas” – Schutz, 1945), pelo interaccionismo social de Goffman
e de Becker11, ou pela etnometodologia de Garfinkel. Esta última procura
compreender como o sentido é activamente produzido e elaborado discursivamente
pelos actores sociais em situações específicas, estudando pois os “etno-
métodos” que as pessoas comuns usam no quotidiano para esse efeito12 e dando
particular importância à linguagem13. Longe de desqualificarem os discursos dos
actores, estas correntes vêem-nos antes como recursos heurísticos válidos e
essenciais para se compreender a realidade social.
O pós-modernismo de Lyotard, Baudrillard, Jameson, Deleuze e Guattari, Foucault
e Derrida, entre outros, procedeu a uma crítica e desconstrução do pensamento
fundacional e totalizante, das grandes narrativas e das pretensões
objectivistas e imperialistas da ciência moderna14. Refira-se a perspectiva
pós-moderna e pós-colonialista, interessada em recuperar e dar voz a
epistemologias indígenas e minoritárias (Denzin, Lincoln e Smith, 2008), e a
proposta de uma segunda ruptura epistemológica (após uma primeira ruptura
bachelardiana) e regresso ao senso comum (Santos, 1989)15, que enfatiza o
potencial emancipatório do conhecimento, deixando este último de ser visto como
tendo uma função de regulação associada à ambição de neutralidade e
descomprometimento (Habermas, 1971 (1968); Santos, 1995).
Perante estes dois modos contrastantes de conceber a prática sociológica, é
fundamental questionarmo-nos sobre o estatuto epistemológico que, como
cientistas sociais, atribuímos aos discursos, às explicações e aos relatos
(accounts) dos actores sociais. Deveremos restringir-nos a considerá-los mera
doxa, como propõe Bourdieu? – o que inevitavelmente os desqualifica por lhes
negar a capacidade de serem uma fonte de conhecimento válido. Ou poderão eles
merecer um estatuto epistemológico superior?
A arte é um caso particularmente interessante devido às fricções entre os
discursos artístico e científico (Monteiro, 1996). Tradicionalmente, a
sociologia abordou a arte desqualificando dimensões importantes das práticas
artísticas e da própria experiência estética, ao conceber o “artístico” como
uma espécie de marioneta determinada por forças “sociais” como as relações de
poder, o capital, ou o interesse (concebendo o social e o artístico,
respectivamente, como variáveis independente e dependente) (Hennion, 1993).
Como alternativa à “sociologização da música como máscara em jogos de
identidade social” (Hennion, 1993: 21), Hennion propõe uma sociologia da
mediação que “re-habite” a música com os seus discursos e artefactos
(partituras, instrumentos, gravações,…). É essencial evitar quer uma reificação
quer uma desqualificação sistemática dos discursos dos públicos amadores de
música, por exemplo, em resultado de uma ethosunívoca e rigidamente definida a
priorique obrigaria a escolher entre “estetização” e “sociologização” (Hennion,
1993: 21). Antes, é preciso capturar empírica e analiticamente todos os
mediadores que, em acção e em situações específicas, produzem arte16.
“Temos de seguir os próprios actores” era, de acordo com Latour, um autêntico
“sloganda ANT” (actor-network-theory) (Latour, 2005: 12) – no entanto, há que
seguir não só os discursos mas também as práticas dos actores e a relação
destes com as materialidades do mundo “natural”, dos artefactos e dos seus
próprios corpos; e fazê-lo poderá justificar tanto o reconhecimento como,
eventualmente, uma desqualificação de discursos em função de um certo critério
de objectividade.
2. O que permite ou induz o sociólogo a legitimar ou desqualificar os
discursos?
Se, reconhecendo aquilo que os discursos dos actores sociais que estudamos nos
podem ensinar, pretendemos ir para além da sua desqualificação sistemática
(respeitando assim as epistemologias desses actores e grupos sociais), será que
a única alternativa é aceitar, legitimar, reproduzir acriticamente ou até
reificar esses mesmos discursos como acontece em algum jornalismo (algo a que a
rejeição absoluta de quaisquer possibilidades de “objectivação” pode levar)?
Uma resposta torna necessário ir-se para além dos discursos, concebidos como
fenómenos representacionais, cognitivos e linguísticos. Questiono aqui tanto o
construtivismo social extremo, como a ideia – a que um pós-modernismo radical
pode levar – de que tudo o que há é apenas diferentes discursos/ficções
igualmente válidos a todos os níveis17. Pelo contrário, há algo de certo modo
objectivo na realidade social e no mundo. Todos os discursos são obviamente
válidos em si mesmos como interpretações e vivências específicas da realidade
(configurando universos de sentido múltiplos e sendo uma forma de acção
social), mas nem sempre equivalentes se avaliados em função de um certo
critério da objectividade (não o único, mas um dos possíveis).
O que justifica – ou poderá induzir a – legitimar certos discursos e a
desmistificar (e potencialmente desqualificar) outros em função de uma
definição pragmática de “objectividade”? Uma das respostas possíveis:
distinguindo entre discursos que, de acordo com a observação empírica e a
análise, reflectem directamente certos aspectos relativamente objectivos da
realidade, ou “como as coisas são realmente ou aconteceram de facto” (ex. estar
num certo sítio num certo momento, tocar um instrumento usando certos modos de
fazer) e aqueles que dão pistas ilusórias quando pretendemos aceder a tais
dimensões. Esta questão será aprofundada em seguida.
3. Da triangulação à inclusão do “extra-social” e ao repensar do “social”
A vivência etnográfica e a investigação da performancemusical gerou em mim
consciência da necessidade de especificar empiricamente dimensões da realidade
tradicionalmente excluídas da sociologia porque vistas como “extra-sociais”. A
impossibilidade de as subestimar ou negligenciar, dado serem inerentes e
constitutivas das práticas e fenómenos tidos como “musicais”, estimula-nos a
repensar o “social”/“extra-social” e a reflectir sobre o que é a própria
sociologia.
3.1. A especificação empírica das práticas e a triangulação
Voltando à questão de o que permite legitimar ou desmistificar discursos em
função do critério da objectividade saliento, em primeiro lugar, a importância
de recorrermos a técnicas de observação que permitam capturar empiricamente as
vivências e as práticas no sentido mais mundano do termo e as materialidades em
acção em tempo real (DeNora, 2000 e 2011)18, bem como à triangulação rigorosa
durante a observação e análise de dados empíricos possibilitada pela combinação
entre diferentes técnicas de investigação19. Estes procedimentos poderão levar
o investigador a atribuir diferentes estatutos epistemológicos a discursos
concorrentes.
Apesar de os diferentes discursos poderem não ser equivalentes em função do
critério da objectividade, tal não significa que os que parecem menos
“verdadeiros” ou fiáveis em relação ao que nos podem ensinar sobre eventos de
certo modo objectivos devam ser simplesmente desclassificados e descartados
como doxaou restringidos no seu interesse a mero tópico de investigação em si
mesmo (o discurso como mero discurso) – embora não reflictam directamente “as
coisas tal como realmente são ou se passa(ra)m”20, por assim dizer, podem ser
indirectamente reveladores a esse nível depois de serem analisados em contraste
com outros dados e sujeitos a triangulação. Na vida social, os sujeitos
produzem discursos contrastantes que podem competir entre si, por vezes
desconstruindo ou até desqualificando, intencional e explicitamente, discursos
de outros actores em virtude de lutas pela imposição de versões legítimas da
realidade ou da busca de reconhecimento. Apesar do “ruído” que geram, estes
processos podem ser um recurso que ajuda o sociólogo a proceder à triangulação
e à “objectivação”.
Consideremos discursos alternativos sobre o que um instrumento musical, neste
caso a viola d'arco, consegue ou não consegue fazer – especificamente passagens
em staccato21, comummente vistas como “difíceis” de executar e um sinal de
domínio virtuosístico, pelos instrumentistas, da “técnica” dos instrumentos de
arco modernos. Ao longo da minha vivência etnográfica recolhi evidência
empírica de que certos músicos afirmam que, na situação de concerto, é
virtualmente impossível executar tais passagens com sucesso neste
Instrumento22, em virtude das suas supostas propriedades físico- acústicas
(vistas como “limitações” – “resposta sonora lenta”, “peso do arco”). No
entanto, outro discurso sugere (e as respectivas práticas demonstram) que tal
técnica pode ser executada com sucesso.
Eis uma possível controvérsia entre dois discursos alternativos e concorrentes
a propósito das capacidades atribuídas a um instrumento. O que fazer agora? A
necessidade de ir além do nível discursivo é óbvia – uma percepção facilitada
quando se verifica o critério etnometodológico da “adequação única” ( unique
adequacy) (Garfinkel, 2002) (quando o investigador detém o conhecimento
especializado que lhe permite aceder mais profundamente a certas dimensões do
seu objecto de estudo23).
A observação em tempo real dos usos do instrumento em situações específicas –
do que diferentes instrumentistas fazem o instrumento fazer – invalida o
primeiro dos discursos referidos acima e valida o segundo em função de um certo
critério de objectividade. As práticas fundamentam os discursos: se um número
considerável de instrumentistas é bem-sucedido a executar passagens staccatona
viola d'arco, tal permite desqualificar o discurso que aponta esta presumida
“limitação” ao instrumento como uma universalização e naturalização indevidas,
resultantes de uma atribuição causal enviesada para aquilo que é visto como
sendo (ou dependendo só) (d)as propriedades materiais e sonoras do instrumento
em si.
Em função do critério de objectividade, um destes discursos pode ser visto como
“certo” e o outro como “errado” – mas tal é válido apenas em certa medida,
saliento! Os discursos são qualitativamente irredutíveis ao seu grau de
correspondência a tal critério – cada modo de ver e experienciar a vida social
e o mundo é único, devendo ser reconhecido e respeitado como tal. Nada de
errado em descrever uma determinada experiência e visão de um instrumento
musical decorrentes de se ter aprendido a tocá-lo de uma certa maneira em vez
de outra – seria simplista reduzir o interesse sociológico de tal discurso à
sua (des)classificação como mera doxa,“crença” ou conhecimento “errado”.
Discursos aparentemente enganadores a certos níveis não devem ser subestimados
também porque, para além de reflectirem e construírem experiências da realidade
múltiplas e qualitativamente irredutíveis e de orientarem a própria acção
social (sendo, pois, parte da realidade), podem – ao objectificarem-se –
construir a realidade, até em termos materiais24. Representações, suposições e
discursos sobre as possibilidades e as limitações de um instrumento musical ou
outro artefacto poderão ainda funcionar como “profecias auto-concretizadas”
(self-fulfilling prophecies) (Merton, 1968: 473-493), ao orientarem as acções
dos instrumentistas e os modos como usam e exploram os seus instrumentos de uma
maneira que acaba por produzir de facto as suposições iniciais25.Tais
representações e mecanismos cognitivos, combinados com disposições e
habituspreviamente internalizados (matrizes geradoras de julgamentos e de
acções, de “modos de fazer” e de sentir corporalizados) (Bourdieu, 2002 e 1990)
são, pois, activos, ao se materializarem nos modos de tocar um instrumento,
moldando como este e a música soam em performance.
A atribuição de diferentes estatutos a discursos concorrentes não é um processo
simples mas antes cheio de tensões e dilemas, entre os quais a ponderação dos
riscos de imposição da autoridade (e subjectividade?) do investigador sobre as
epistemologias dos sujeitos observados, potencialmente indevida se fundada em
suposições ilegítimas sobre presumíveis “factos” tomados como “objectivos”
versusa reificação, a reprodução e a legitimação acríticas de tais discursos.
As duas ethoide seguir/legitimar versusobjectivar/desmistificar os discursos
(classificáveis como pós-moderna e moderna, respectivamente) devem, pois,
coexistir numa tensão saudável e ser activadas conforme os dados empíricos e a
análise tornem relevante. Tais tensões e dilemas são algo de positivo e as
necessárias decisões exigem uma enorme responsabilidade da parte do sociólogo –
a ausência de tais questionamentos durante a prática sociológica podem indiciar
inconsciência ou até despreocupação, o que é infinitamente pior.
3.2. A necessidade de abordar o “extra-social” e repensar o “social”
Acima tinha salientado a importância de combinar diferentes técnicas de
pesquisa de modo a possibilitar a triangulação e a consequente atribuição de
diferentes estatutos epistemológicos aos discursos. Esta discussão leva-nos
agora à segunda parte de uma possível resposta sobre o que poderá permitir ou
induzir o sociólogo a legitimar ou, pelo contrário, desmistificar (e
eventualmente desqualificar) discursos: a consideração de partes da realidade
convencionalmente vistas como “extra-sociais” – uma questão com a qual a
sociologia deve lidar.
Em articulação com a observação empírica das práticas (relações entre humanos e
entre estes e artefactos), representações e discursos não são necessariamente
válidos só como meros “tópicos” de investigação, mas também como “recursos”
explicativos26, heurísticos para acedermos a dimensões relativamente objectivas
do mundo e da acção.
Isso acontece porque os discursos implicam e remetem-nos para práticas e
materialidades com as quais estão dialecticamente imbricados. Tal torna-se
óbvio aquando do estudo de actividades tais como a performance musical, em que
a materialidade dos corpos, artefactos e sons, e a dimensão corporalizada e
sensorial das práticas – referidas pelos discursos – são por demais evidentes.
Essa tomada de consciência é facilitada quando existe um duplo estatuto do
investigador e uma trajectória etnográfica de participação-observação.
Há, pois, que estudar práticas quotidianas concretas27, inclusivamente na sua
dimensão não intelectualizada e mais tácita. A internalização e incorporação de
disposições (Bourdieu, 2003 e 1990), o corpo e o chamado embodiment(Turner,
2008; Johnson, 2006; Shilling, 1993, 2005, 2007)28, as noções de “ corporeal
realism” e de “pedagogias do corpo” (Shilling, 2005 e 2007), ou a fenomenologia
da percepção de Merleau-Ponty (1962), adquirem relevância.
Há que ultrapassar o viés cognitivista da academia (Eyerman e Jamieson, 1998;
DeNora, 2005: 154-156), abordando-se sociologicamente os chamados “crafts”,
modos de fazer e conhecimentos práticos situados para lá das representações e
discursos29. Os estudos sobre o conhecimento corporalizado como pianista de
jazzde Sudnow (1978) e a etnografia ou “sociologia carnal” de Wacquant como
boxer(2004) devem ser mencionados. Urge desenvolver uma etnografia viva, que
transcenda uma experiência exclusivamente cognitivista, mas que se alargue à
experiência sensorial da corporalidade, às acções práticas e performativas
sobre o mundo e às materialidades30.
Salientei atrás como o estudo da performance musical exige técnicas de
investigação que permitam aceder a níveis da realidade situadas além do nível
discursivo. Subjacente a essa questão, como procurarei clarificar, está a
própria conceptualização do “social” e a delimitação da fronteira entre o que –
na linha das regras do método sociológico de Durkheim – é considerado “social”
e o “extra-social”. Apesar de a tradição sociológica dominante ter excluído
este último, a sociologia pode e deve abordá-lo, questionando tal dualismo.
Para capturarmos empiricamente a materialidade da música e dimensões desta que
tendem a escapar da análise sociológica (Boia, 2008, 2010) há que considerar,
como propõem Witkin e DeNora (1997), a “agência” dos próprios materiais
estéticos que emerge no seio de determinadas ecologias estéticas (DeNora, 2000,
2011 e 2013). Só assim se torna possível ultrapassar uma abordagem semiótica da
arte que a vê meramente como texto e tornar o “ strong program” da cultural
sociology(Alexander e Smith, 2001) “ainda mais forte” (Acord, 2009: 23431).
Como salientam Hennion, Maisonneuve e Gomart na linha da chamada ANT (actor-
network-theory), é necessário ir-se além do construtivismo social, pois este
não reconhece a capacidade de acção (“agência”) dos objectos (Hennion,
Maisonneuve e Gomart, 2000: 247).
No âmbito dos science and technology studies, Pickering (1995) enfatiza a
necessidade de se ultrapassar um “idioma representacional” (ou semiótico) e
desenvolver um “idioma performativo”. Propondo que se leve a agência material
“a sério” (Pickering, 1995: 10, 12), a sua perspectiva estimula-nos a procurar
capturar analiticamente dimensões da “agência” material relativamente menos
mediadas social e culturalmente32. As materialidades não são completamente
flexíveis como gelatina, infinitamente moldáveis e à mercê de variáveis
“sociais”, como meras folhas em branco nas quais o “social” se pode inscrever
sem constrangimentos e com total liberdade através de processos de construção
social todo-poderosos33.
Questionando a separação e exclusão mútuas entre as esferas do humano e da
natureza e as fronteiras entre as respectivas áreas do conhecimento científico
(tal como Latour, 1993), Pickering advoga uma simetria pós-humanista que
considere tanto a “agência” humana como a material (1995), pois, tal como nós
modelamos as máquinas, somos também modelados por elas34. Tanto a sua
perspectiva como a da actor-network-theory (ANT), afirma, “insistem no carácter
entrelaçado e na inter-definição recíproca das agências material e humana”
(Pickering, 1995: 25-26). Torna-se importante especificar a “dança da agência”
entre o humano e o não-humano que se desenrola ao longo do tempo (descritível,
do ponto de vista do ser humano, como uma dialéctica de “resistência e
acomodação”) (Pickering, 1995: 25-26). Pickering sugere uma “historicidade e
devir de parelhas de máquinas-humanos”, falando-se “não puramente de conjuntos
de máquinas ou humanos mas de ser e devir cyborg35” (Pickering, 2003:100-
10136). Pickering dá uma pista sobre o potencial desta abordagem no âmbito da
sociologia da música, ao comentar brevemente o uso da guitarra eléctrica pelos
Pink Floyd ou por Hendrix (Pickering, 2003: 108) – podemos, portanto, falar de
parelhas e híbridos cyborgde instrumentos e instrumentistas (Boia, 2014).
Subjacente está a ambição de se ir para além de uma sociologia humanista na
qual os seres humanos são os “únicos agentes genuínos na história” (Pickering,
2013:25) e que, sob influência do dualismo Cartesiano (englobando o dualismo
pessoas- coisas) e da tradição durkheimiana, concebe tudo o que não é humano
(máquinas, animais, mundo natural) como “previsível, passivo, à espera da
imposição da nossa vontade” (Pickering, 2013: 25). Pickering rejeita a ideia do
excepcionalismo humano que vê os “seres humanos activos e autónomos como se
fossem mestres de um universo passivo” (Pickering, 2013: 25), propondo antes
uma sociologia “descentrada” (Pickering, 2005), que considere simetricamente
diferentes tipos de entidades e “agências”.
Compreendemos agora como a desqualificação dos discursos (e dos próprios
actores sociais) pela sociologia moderna derivava parcialmente do facto de
excluir ou subestimar a dimensão material da realidade, já que, considerando-
a “não-social”, a via como estando situada fora do âmbito da disciplina37.
Refiro-me especificamente à negligência ou à desqualificação de referências
feitas pelas pessoas a objectos ou processos “não-sociais”.
Essa espécie de cegueira ou rejeição de dimensões da realidade vistas como
“extra-sociais” deriva obviamente da concepção durkheimiana do “social”.
Durkheim conceptualiza o “social” como uma “coisa” (ontologicamente real e
autónoma), ou seja, como constituindo uma parte da realidade a par de outras,
tais como as que compõem o mundo “natural” (Durkheim, 1998 (1894))38. Esta
noção foi fundamental para a afirmação e institucionalização da sociologia, já
que a proclamação da existência de uma realidade (“social”) distinta das outras
permitiu justificar a existência de uma disciplina dedicada exclusivamente ao
seu estudo (Latour, 2005). Tendo-se tornando dominante, tal concepção
obscureceu completamente a visão alternativa de Tarde (contemporâneo de
Durkheim), para quem o “social” era o processo de associação entre elementos
heterogéneos (de ambos os mundos natural e material), através do qual a
realidade é construída (Tarde, 1999 (1895) e 2000 (1899); cf. Latour, 2005).
Esta última perspectiva foi recentemente apropriada e reabilitada por Latour,
sendo um contributo importante para se ultrapassar o dualismo moderno entre
“Sociedade” e “Natureza”39 e trazer a materialidade dos objectos e o mundo
físico para a análise sociológica. A superação da mútua exclusão entre humanos
(des-corporalizados) e coisas (actores não- humanos) – se bem que esta tenha
sido sempre ilusória pois “we have never been modern”, como argumenta Latour
(1993) – é pós-moderna, já que implica (tal como o cyborg) a dissolução de
fronteiras entre categorias bem definidas e estanques40.
Quais as consequências de tudo isto? A etnografia da performance musical e os
contributos dos science studiesaqui discutidos desafiam-nos a repensar as
noções, as fronteiras e o dualismo entre “social” e “extra-social”, e mesmo a
reequacionar o que é, pode, ou deve ser, a própria sociologia. Tudo isto nos
leva, enfim, a reflectir sobre a necessidade de a sociologia abordar complexas
relações de multi-causalidade entre diferentes tipos de variáveis e “agências”
(incluindo as físicas, biológicas, etc.) e, no limite, a questionar a própria
regra fundamental do método sociológico durkheimiana de nos restringirmos a
explicar o “social” exclusivamente pelo “social”.
Tal pode ser visto como abalando os próprios fundamentos da sociologia, mas não
creio que seja o caso. Proponho um alargamento da conceptualização tradicional
do “social” de modo a considerar-se as multi-causalidades entre ingredientes
heterogéneos – todos necessariamente sociais(como será discutido adiante). É
possível e necessário compatibilizar aspectos das noções do “social”
subjacentes às duas perspectivas atrás discutidas, resolvendo-se choques
epistemológicos. A sociologia está hoje suficientemente institucionalizada para
que nos permitamos proceder a esse alargamento sem recear que isso afecte a
credibilidade da disciplina – pelo contrário, tal abre as portas a um
maravilhoso novo mundo de complexidade, permitindo-lhe aproximar-se e melhor
capturar os seus objectos, sem que deixe de ser sociologia.
É essencial, no entanto, salvaguardarmo-nos do tom exageradamente crítico que
por vezes parece sugerir que toda a tradição dominante da sociologia não passou
de um mero caminho errado e que o “social”, tal como é definido por Durkheim, é
algo que não existe(detectável em Latour, 200341), ou da eventual tendência de
se negligenciar as representações e a cognição social (o que pode desembocar
numa espécie de Cartesianismo invertido em virtude da reificação do corpo, da
materialidade e respectivas performances). Ingredientes correspondentes a um
“social” durkheimiano (representações colectivas, processos cognitivos,
convenções, regras, modos de fazer institucionalizados, coerção, etc.), bem
como a intencionalidade humana, para além de serem inerentes aos processos de
objectificação que (re)constroem o mundo material, são uma parte da realidade
que existe de facto e, como tal, tem de ser considerada. Apesar de imateriais,
fenómenos convencionalmente vistos como “sociais” são, tal como os fenómenos da
natureza, “coisas reais” como afirma Durkheim (1998: 23), havendo, pois, que
resistir a uma visão predominantemente materialista. Tal seria reduzir a
complexidade do real no sentido oposto àquele que é criticado…
Devemos também precaver-nos do risco de cairmos num realismo ingénuo ou numa
visão a-sociológica que cometa o erro de reificar discursos sobre a
materialidade, aceitando-os como reflexo puro e objectivo da própria
materialidade (Collins e Yearley, 1992). É importante transcender
representações e discursos, mas reconhecendo que a forma como experienciamos a
“agência” material como seres humanos é necessariamente mediada e constituída
por factores socioculturais. O que os actores sociais referem como sendo pura
“agência” dos materiais é, de facto e em grande medida, um co-produto híbrido
da materialidade, cultura e sociedade. Lentes socioculturais, processos
cognitivos e linguagem produzem tais mediações da experiência, bem como a sua
racionalização e “accountability”. A linguagem permite “fazer coisas com as
palavras”42, mas há que ter em conta que as suas potenciais
consequências necessitam de ser efectivadas em situações de interacção
específicas (frequentemente em relação a propriedades materiais de artefactos),
como mostra Streeck (1981 e 1996)43.
A socialização e a internalização de disposições são também fundamentais em
tais processos de mediação. Repensando a incorporação e a noção de habitus,
Nunes mapeia pesquisas recentes que, evidenciando as intersecções (e
hibridismo) entre o biológico e o social, apontam em direcção a novos e
excitantes modos de abordar tais processos (Nunes, 2007: 171-178). Há que ter
em atenção que a noção de habitus(Bourdieu, 2002 (1972) e 1990 (1980)), ou de
conjuntos de disposições plurais não necessariamente coerentes entre si e
activadas ou não em/por contextos de acção específicos (Lahire, 1998), –
permitindo superar o dualismo entre o subjectivo e o objectivo – são úteis para
compreender as relações complexas entre as “agências” humana e material. Sendo
a internalização um conceito pivotque media entre a dimensão sociocultural e a
materialidade, a sua consideração é obrigatória para não se cair num realismo
exagerado que poderia “essencializar” “agências”, ao vê-las como exclusivamente
materiais quando na verdade são híbridas.
Como propõe Barad (2003 e 2007), cuja perspectiva denomina de “agential
realism” –promissora para a superação do dualismo entre realismo e
construtivismo – a distinção entre epistemologia e ontologia deve ser
dissolvida ou pelo menos fortemente esbatida44. Modos de ver e sentir o mundo,
por um lado, e a materialidade do mundo, por outro, não são dimensões
separadas, mas antes se constituem mutuamente, pois, mais do que inter-agirem
entre si, “ intra-agem” uma na (ou, por assim dizer, dentro da) outra45.Tal
como a ideia de Latour de que a realidade é “co-produzida” por ingredientes
heterogéneos, sendo “Natureza” e “Sociedade” meros “colectores” conceptuais,
também o “agential realism” de Barad nos leva a questionar a distinção entre o
que normalmente se denomina de “social” e de “extra-social” – estes são
igualmente “colectores”, já que as ordens de fenómenos a que se reportam estão
na realidade dialecticamente imbricadas (Boia, 2010) e “emaranhadas”
(“entangled” –Barad, 2007).
As materialidades, os artefactos e a natureza são inerentemente sociaisnão só
porque são moldados pela acção humana, mas também porque, nos modos como
emergem perceptual e fisicamente para nós seres humanos, são social e
culturalmente mediados, sendo constituídos por modos de ver e de agir
colectivamente produzidos – as “agências” que daí emergem são, pois, híbridas.
Finalmente, o “descentramento” da sociologia deve ser apenas relativo –
mantendo-se o foco sobre a condição humana, como escreve Gurvitch (apudNunes,
1991: 21), sob a pena de passar a não existir qualquer distinção entre, por
exemplo, a física e a sociologia.
Postas estas reservas, e como afirma Pais na sua perspicaz reflexão crítica
sobre As Regras do Método Sociológicode Durkheim versuso que denomina de
métodos “desregrados”, há que reconhecer que os métodos não são apenas “uma
gazua para arrombar portas escancaradas” mas “estão também orientados para as
descobertas, para os enigmas do desconhecido, para a resolução dos paradoxos”
(Pais, 1995: 261).
4. A primazia da realidade: manifesto por uma sociologia ecléctica e híbrida
Ao longo deste artigo discuti diferentes tradições, abordagens e concepções da
sociologia, propondo uma reflexão sobre a epistemologia e a prática
sociológicas em função de tensões e dilemas que experienciei no âmbito da minha
própria trajectória. As reflexões finais que se seguem, pretendendo ser um
manifesto por uma sociologia ecléctica e híbrida, são também notas pragmáticas
para uma sociologia da sociologia.
É vital que nos mantenhamos abertos ao uso reflexivo de recursos provenientes
de uma multiplicidade de tradições sociológicas, bem como à prática de alternar
entre ethoi e posturas moderna e pós-moderna, que tanto seguem como
desmistificam discursos, de acordo com o que cada objecto de estudo e processo
de investigação exigem a cada momento (dependendo ainda do estatuto e papel do
investigador). Deve haver uma permanente selecção activa determinada pelas
especificidades empíricas de cada objecto de estudo, em vez de uma aplicação
automática e linear de quadros teóricos fechados e definidos rigidamente a
priori em virtude de pertenças a "tradições", "escolas" e outras segmentações
dos campos científico e académico.
Ortodoxias a este nível (explícitas ou implícitas) – traindo a complexidade da
realidade – poderão derivar mais de “razões práticas” subjacentes a lutas entre
diferentes “tradições” e “escolas” em competição (de imperialismos teóricos,
manutenção de afiliações institucionais, gestão de estratégias de carreira ou
mesmo, até, da permanente necessidade de reconhecimento de académicos já
estabelecidos) do que da ambição de compreender a realidade tão exaustivamente
quanto possível. Tais riscos são reais em qualquer das “tradições” ou “escolas”
discutidos neste texto ou noutras, podendo verificar-se quer em correntes já
institucionalizadas quer nas emergentes.
Abordagens presas a uma conceptualização demasiado restrita do “social” e aos
dualismos e fronteiras da modernidade (“Sociedade”/”Natureza”; “social”/
“extra- social”) correm o risco de se restringirem à produção de análises de
certo modo redutoras, porque estritamente humanistas e representacionais. Por
outro lado, não há necessariamente razões para desqualificar tradições
sociológicas estabelecidas considerando-as meros caminhos errados,
desperdiçando as suas virtualidades e potencial heurístico que tanto nos
ensinaram ao longo de um século46. Uma lógica de síntese deve, por vezes,
predominar sobre a lógica kuhniana de sucessão entre paradigmas científicos e
dualismos subjacentes às lutas entre teses e antíteses que, sendo parte
essencial da vitalidade do campo científico e académico, também encerram
perigos. Sem esquecermos que o processo de conhecimento é sempre uma construção
(racionalistas e pós-modernos estão de acordo neste ponto), é importante
aproximarmos o objecto de estudo do objecto real, reduzindo-se o carácter
construído da perspectiva sociológica de modo a não deixar escapar o mundo que
estudamos.
Devemos “escutar” permanentemente a realidade, activando os recursos teórico-
metodológicos que esta parece “pedir” a cada momento de modo a ser compreendida
o mais profundamente possível. A complexidade da realidade exige um hibridismo
ecléctico, forçando-nos a questionar suposições e fronteiras convencionais. E a
complexidade particular das práticas musicais e científicas dão à sociologia da
música e aos estudos sobre ciência e tecnologia um impacto que transcende
claramente estes subcampos disciplinares, alargando-se à sociologia e às
ciências sociais como um todo.