Rendimento Social de Inserção, tolerância zero: o embrutecimento do estado
1. Rendimento Mínimo Garantido e o Estado Social: a extensão da democracia
A criação do Rendimento Social de Inserção (RSI)1 insere-se numa “nova geração”
de políticas sociais, baseada na promoção e na capacitação de cada cidadão(ã)
tendo em conta as redes de relações sociais em que se inserem, a sua posição na
estruturação das classes e, sobretudo, as modalidades de participação e de
exercício de poder, assim superando as políticas estritamente economicistas
(Fernandes, 1991: 10). Esta medida tem na base a perceção de que a pobreza é
uma privação de direitos de cidadania que tanto pode ser herdada, como
adquirida, e não uma doença social (Fernandes, 1991: 45). A pobreza deixa de
ser uma questão individual e transfere-se para o domínio coletivo, como um
problema de democracia.
Apesar do recorte inovador desta medida, desde há uns anos para cá temos
testemunhado o ascender de um pânico moral em torno do RSI, que enche hábeis
discursos políticos e faz correr tinta nos jornais, caracterizando o RSI e os
seus beneficiários como “laxistas”, “fraudulentos” e “malandros”. O debate e a
caracterização negativa dos beneficiários do RSI alcançou proporções
diametralmente opostas ao seu encargo monetário, criando um clima de tolerância
zero. A construção e a proliferação destas representações, reproduzidas por
atores sociais e amplificadas pela imprensa, edificaram um imaginário sobre os
beneficiários do RSI que se transformou numa matéria empírica e socialmente
indefensável. Este processo de estigmatização do RSI tem tido um duplo efeito:
primeiro, descredibiliza este mecanismo social de forma a legitimar o seu
subfinanciamento, a restringir o acesso à medida e subsequente desmantelamento;
segundo, introduz nuances discursivas que retiram legitimidade às políticas
sociais, visando uma transformação de um Estado Social num Estado Penitenciário
(Wacquant, 2000, 2003).
O bombardeamento simbólico, ideológico e estigmatizante dos beneficiários do
RSI tem legitimado, como veremos, alterações na estrutura estatal das políticas
sociais, inscrevendo, de forma silenciosa, uma alteração na conceção e no papel
do Estado-Providência, que, no meio da tempestade da economia global, converteu
o debate da crise financeira num debate centrado numa crise de valores,
erguendo uma nova doxapunitiva. O enfraquecimento do Estado Social não é só
expresso nos cortes do financiamento, mas numa individualização dos riscos
sociais, num maior controlo autoritário e num aumento da exclusão social, da
pobreza e da desigualdade (Esping- Andersen, 1990: 35).
2. Do Rendimento Mínimo ao Rendimento Social de Inserção: avanço ou retrocesso?
O surgimento do Rendimento Mínimo Garantido (RMG) nos países da União Europeia
(UE) deriva dos níveis intoleráveis de pobreza e de exclusão social que
provocaram profundas fraturas sociais (Rodrigues, 2010b; Guerra, 1997;
Lourenço, 2005: 137). A sua implementação inaugura uma “nova geração” de
políticas sociais, criando um novo conceito de ação social que é baseado na
ideia da promoção, apoiando o desenvolvimento de cada cidadão(ã). O RMG não só
tinha como objetivo atenuar a pobreza e inserir socialmente pessoas excluídas,
mas também reforçar a coesão social ao reforçar a própria cidadania.
Este novo mecanismo social caracterizava-se por três pilares que rompiam com o
antigo sistema de políticas sociais, ao aplicar uma nova metodologia de
intervenção e a construção de uma rede de apoio: primeiro, promovendo “um
conceito de cidadania que incluísse o direito ao trabalho e o direito a um
rendimento mínimo”; segundo, reconhecendo a “importância da igualdade de
oportunidades como uma forma de combater as desigualdades e a fragmentação
social”; e, por último, adotando “uma abordagem mobilizadora para erradicar a
pobreza e a exclusão social” (Batista e Cabrita, 2009: 5)
Ao aplicar esta nova metodologia, o RMG construía uma nova modalidade de
funcionamento do Estado-Providência assente na “intervenção e construção de uma
rede de apoio social activo e preventivo” e, simultaneamente, “diferenciando os
apoios em função das necessidades dos beneficiários” e incrementando a
“participação activa de muitos dos que tenderiam a reduzir-se à condição de
‘assistidos' (Rodrigues, 2010a: 213). Adicionalmente, a sua vertente pecuniária
dava um limiar mínimo de estabilidade monetária e a possibilidade de criação de
um projeto de vida minimamente sedimentado para além do programa de inserção
(Rodrigues, 2010a: 213). Analisado por Batista e Cabrita (2009: 6), o RMG foi a
“primeira medida a colmatar a falta de um rendimento mínimo de subsistência
para quem não tem quaisquer recursos, independentemente de terem pago ou não
contribuições para o sistema de segurança social, e, simultaneamente, a dar
resposta a uma série de necessidades que se encontram claramente no domínio da
activa o social, mas não se limitam à activação laboral”.
Com a eleição da uma coligação de centro-direita nos inícios de 2002, o
executivo da coligação PSD-CDS/PP preparou o caminho para um período de
retrocesso ideológico em relação à filosofia originária do RMG (Batista e
Cabrita, 2009: 7). Utilizando as críticas em torno da implementação da medida,
o novo governo, pela mão do Ministro Bagão Félix, propôs substituir o RMG pelo
RSI.
A nova filosofia estabelecida para o RSI insere-se no contexto das políticas de
“ativação”, ou seja, do “workfare”. A introdução de novos mecanismos de
controlo tem como objetivos aumentar a sua eficácia e alcançar a sua
“moralização”, o que, nas palavras do Ministro do Trabalho e da Segurança
Social, representa um “objetivo nobre” através da responsabilização individual
(Batista e Cabrita, 2009: 7). Existe uma mudança de um paradigma de
responsabilidade coletiva para um outro de responsabilidade individual, típico
da ideologia neoliberal.
As alterações efetuadas instauraram mais mecanismos de controlo, com o objetivo
de não deixar que a medida se tornasse um modo de vida, reforçando a inspeção.
As falhas nos processos de implementação e aplicação do RMG, nomeadamente a
incapacidade de inspeção, abriram o espaço público para o debate sobre a
“justiça” desta medida. (Batista e Babrita, 2009: 7)
3. Crise financeira: a austeridade no Rendimento Social de Inserção
Os primeiros contornos de restrição e austeridade aplicada ao RSI iniciaram-se
com a crise financeira. A preocupação do Governo em reduzir a despesa pública
norteou alterações legislativas que modificaram as condições de acesso, bem
como os recursos com os quais os beneficiários podiam contar. Daí se conclui
que o Decreto 70/2010 “veio claramente reduzir a eficácia desta medida de
política social na redução da intensidade e severidade da pobreza” (Fernandes,
2012: 9). Em maio de 2011, o executivo do Partido Socialista anuncia, pelo seu
primeiro-ministro José Sócrates, um acordo de resgate com o Fundo Monetário
Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE),
que constituem a designada Troika. No Programa de Assistência Financeira a
Portugal estão inscritas políticas fiscais e sociais de austeridade – assentes
no corte da despesa e na redução do défice –, que são aplicadas de forma a
Portugal continuar a receber financiamento externo. Intensifica-se a política
de austeridade, assente na redução dos encargos do Estado na saúde, na educação
e nas políticas sociais, que desmantela, passo a passo, o Estado Social. Após a
intervenção externa, é eleito um governo, de cariz neoliberal, integrado pelo
Partido Social Democrata (PSD) e pelo CDS - Partido Popular (CDS-PP), que
preconizou uma maior liberalização da economia e das prestações sociais,
aumentando os níveis de pobreza e de desemprego a níveis recorde e sem nunca
conseguir reduzir a dívida externa, antes pelo contrário, aumentando-a. A crise
financeira converte-se numa crise da própria legitimidade do contrato social
entre a sociedade e o Estado, pretexto para dispensar as políticas sociais e
abandonar os valores do universalismo e da solidariedade, tudo em nome da
dívida (Habermas, 1976). Portugal passa a ter o segundo maior encargo fiscal no
mundo, ao mesmo tempo que se reduzem as prestações sociais (ex. subsídio de
desemprego e o RSI): o Estado Social é substituído por um Estado Penitenciário
que tira tudo e não assegura quase nada.
Assim, esta orientação tem vindo a consubstanciar as teses defendidas por
Wacquant (2000) e Bauman (1998) assentes na mudança paradigmática do Estado
Social para um Estado Penitenciário (Ferreira, 2011: 36). Para estes autores, o
modelo norte-americano da “lei e ordem” seria induzido pela crise da
legitimidade do Estado Social, que, não podendo financiar os padrões de
proteção social, promoveria uma retórica assente no recalcar de expetativas em
matéria social, germinando um modelo de segurança penal que ganharia
legitimidade (Ferreira, 2011: 36). Com os cortes nas prestações sociais e o
aumento da fiscalização das mesmas, a mão esquerda do Estado– educação,
assistência social, saúde – é suplantada pela regulação da mão direita do
Estado, tendo proeminência a polícia e os tribunais (Bourdieu, 1993: 219-28;
Bourdieu, 1999: 9-15).
Numa sociedade dilacerada pela austeridade, o medo é um mecanismo de
articulação entre estruturas sociais e indivíduos, estruturando as interações
sociais e é fonte de identidades coletivas e individuais (Elias, 1994: 195). A
gestão do medo é estruturante porque é o mecanismo de legitimação de alterações
profundas nas políticas sociais. O medo, enquanto mecanismo emocional
desencadeado por uma ameaça face à qual as pessoas se sentem sem poder, torna-
se “instrumental para a prossecução dos interesses dos que procuram uma
intensificação do controlo social e uma legitimação da desigual distribuição do
poder e do bem-estar” (Innerarity, 2006: 176; Ferreira, 2011: 56).
Ao gerar um clima social e cultural que exprime uma tendência e organiza
atitudes e expectativas em torno das funções do Estado, o medo está na base de
uma legitimação induzida pela previsão de cenários catastróficos – nomeadamente
associados ao descalabro financeiro –, legitimando a imposição de medidas de
austeridade e de exceção (Ferreira, 2011: 56). Enquanto fonte de legitimidade,
o medo está na base da construção de um regime paradoxal de causalidade, em que
numa sociedade sob austeridade, é um mecanismo que traduz um problema
estrutural num problema individual (Ferreira, 2011: 56; Fernandes, 1991;
Somers, 2008: 3). Assim, o clima da austeridade é catalisador de profundas
transformações nas políticas sociais, nomeadamente no RSI.
Na curta existência do RSI, verificamos uma mudança paulatina de políticas de
inserção social do paradigma de welfare, para uma política social de ativação
do paradigma de workfare. Recentemente temos vindo a testemunhar uma crescente
disponibilização de mecanismos de controlo fiscal e social, em que a prestação
social em questão passa de um mecanismo de inserção para um mecanismo de
regulação, de controlo e de moralização dos beneficiários. Isto é visível ao
verificarmos a passagem da penalização de 12 para 24 meses, se o beneficiário
recusar de forma injustificada uma oferta de emprego considerado “conveniente”,
um trabalho dito “socialmente necessário” ou a frequência de uma formação
profissional. Além disto, com o pretexto de “voltar a habituar (os
beneficiários) às exigências do mundo do trabalho”, são acionadas políticas de
disciplina laboral, uma vez que os beneficiários têm que trabalhar pelo menos
15 horas semanais. Este processo é legitimado pela doxade que “não existem
direitos sociais sem deveres”, o que significa que o acesso a uma prestação
social acarreta um conjunto de obrigações que o Estado exige ao beneficiário.
Esta perspetiva representa um marco: concebe-se os direitos e as obrigações em
termos individuais, sustentando uma retração em termos de direitos porque a
obrigação que é imposta não oferece possibilidade de recusa (Goodin, 1998).
Para Standing (1999), o problema é que as obrigações não estão igualmente
distribuídas, o que compromete o caráter igualitário e universal da cidadania.
Apenas aos beneficiários são impostas obrigações e, caso não as aceitem, ficam
sem a prestação financeira do RSI, o que transforma a medida num não-direito.
A própria falta de investimento das instituições públicas – nomeadamente nos
Núcleos de Inserção – torna a relação entre direitos e deveres unilateral, já
que o Estado e as suas instituições têm o direito de suspender a prestação mas
não cumprem a sua obrigação de criar oportunidades de inserção. Da mesma
maneira, a imposição de trabalho, quando não acompanhada por medidas de
garantia de emprego, não permite uma igualdade de oportunidades, já que não
existe emprego para toda a gente (Standing, 1999: 318).
4. Gerar pânico: os média e o Rendimento Social de Inserção
O senso comum é um produto da história (Gramsci, 1995: 14). Em todos os
momentos históricos existe um senso comum, que gera um entendimento alargado e
explicativo da vida social e das ideias que a rodeia, ideias estas que não
vivem sem organização. No momento atual, produzem-se interpretações
naturalistas, individualistas e etnocentristas da exclusão social que sustentam
visões estereotipadas de certos grupos sociais, caracterizadas pelo total
desconhecimento dos processos sociais que geram a (re)produção da
vulnerabilidade social (Pinto, 1985). No período sob análise, o individualismo
constitui um elemento estruturador da matriz ideológica do neoliberalismo. Hoje
impera a ideia de que a sociedade é constituída por um aglomerado de pessoas e
que a prossecução dos seus interesses numa lógica individualizante é a única
garantia para um coletivo harmonioso. Esta ideia funcionou – e funciona – como
postulado central, não só do senso comum, mas da filosofia política.
Os problemas sociais não têm o mesmo impacto ou importância, não são todos
igualmente mediáticos. Assim sendo, o campo jornalístico opera um verdadeiro
trabalho de construção. Nesta perspetiva, uma parte dos malesevidentes na
representação pública são fabricados explicitamente por interessar aos
jornalistas (Champagne, 1991). Os média são geradores e amplificadores de
pânicos morais e têm três papéis nos dramas do pânico moral: 1) definir a
agenda, ao selecionar os eventos desviantes ou socialmente problemáticos como
material noticioso, selecionando quais desses eventos são potenciais candidatos
ao pânico moral; 2) transmitir imagens, dando a conhecer as reivindicações de
quem incentiva ou acentua a retórica dos pânicos morais; ou 3) quebrar o
silencio, ao divulgar e expor casos (Cohen, 2002: XXVIII-XXIX).
Os sucessivos cortes no Estado têm vindo a ser acompanhados com a construção de
um clima de desconfiança social. O senso comum – a ideia de que um vastíssimo
número de pessoas obtém o RSI de forma fraudulenta – ganha credibilidade. O
Governo confirma essa representação através de práticas institucionais (através
da lei e do reforço de controlo administrativo), cujo objetivo seria “separar o
trigo do joio”. As mudanças legais assumem, a par com a cultura pública, a
noção de que todos os beneficiários do RSI são fraudulentos. Um pânico moral
não implica que algo tenha acontecido e a reação baseada na histeria, na
desilusão ou na ilusão, é criada pelo exagero do problema, tanto no seu cerne
como em comparação com outros problemas (Cohen, 2002: vii). Na sua abordagem
dos incidentes por parte dos média, Stanley Cohen sistematiza um inventário
baseado na premissa de que “as reações desenrolam-se na base dessas imagens
processadas: as pessoas ficam indignadas ou importunadas, formulam teorias e
planos, fazem discursos, escrevem cartas aos jornais” (Cohen, 2002:30). O
inventário dos média pauta-se por quatro características fundamentais: o
exagero, a distorção, o prognóstico e a simbolização (Cohen, 2002).
A distorçãoestá ligada ao estilo de apresentação das notícias acerca dos
incidentes, ao modo de construir o desvio através de títulos sensacionalistas
(Guerra, 2002). No campo da distorção sensacionalista dos beneficiários do RSI
verificamos o recurso à generalização e ao uso sistemático de termos
desvalorizantes, tais como “malandros”, “preguiçosos” e “inúteis”. Stanley
Cohen (2002) ainda destaca um outro veículo de distorção que se baseia nos
rumores. A dinâmica de publicação da imprensa noticiosa é operada pela
repetição exaustiva de histórias falsas, com o intuito de divulgar histórias
não confirmadas (Cohen, 2002: 33).
O exageroexibe-se pela amplificação dos elementos noticiosos, em que o maior
tipo de distorção reside no exagero excessivo dos eventos, dos números
associados e da violência em torno das notícias. O exagero das reportagens
noticiosas emerge como “uma característica não apenas das notícias acerca do
crime como um todo, mas dos inventários dos média em eventos como protestos
políticos, distúrbios radicais, etc.” (Cohen, 2002: 31).
Como elemento do inventário, o prognósticodesempenha o papel de desdobrar
representações sociais, na medida em que, implicitamente, o sucedido nas
notícias irá acontecer novamente sendo que “os prognósticos efetuados na fase
do inventário tornam a forma das afirmações de figuras locais, tais como os
homens de negócio, as autoridades autárquicas e o porta-voz da polícia acerca
do que deve ser feito da ‘próxima vez' ou as precauções imediatas que devem ser
tomadas” (Cohen, 2002: 31). Os prognósticos em torno do pedido e uso
fraudulento do RSI são denunciados, grande parte das vezes, por porta-vozes
partidários, no decorrer das campanhas eleitorais.
O último elemento do inventário é o poder simbólico, o qual exerce-se através
de uma articulação entre palavras e imagens, particularmente propícia à criação
de estereótipos (Cohen, 2002: 40). As imagens tornam-se palavras e as palavras
tornam-se imagens e cada um repercute sentidos e sensações. Como veremos
através da incidência de palavras (Gráfico_1 e Gráfico_2), o RSI tornou-se
símbolo de um indivíduo delinquente ou desviante. As palavras ficam despejadas
do seu contexto neutral de significado, passando a assumir uma aceção
amplamente negativa “por intermédio de simbolização, como acontece com os
outros tipos de exagero e distorção, as imagens podem tornar-se mais enganosas
do que a própria realidade” (Cohen, 2002: 43).
Guerra (2002) considera que o fator mais interessante a analisar é o modo como
as imagens são cristalizadas em opiniões e atitudes que correspondem a um
sistema de crenças que se estruturam dentro de um quadro de opinião pública e
são, consequentemente, interiorizadas cognitivamente de forma a organizarem um
quadro discursivo dos atores sociais (Guerra, 2002). As principais temáticas do
sistema de valores e de crenças podem ser sistematizadas em três categorias: a
orientação; as imagens; as causas. A temática da orientaçãoremete para o ponto
emocional e intelectual em que o desvio é percecionado, encarando e avaliando
os comportamentos grupais com uma profecia de autodestruição. Por outro lado, a
temática das imagens acerca dos beneficiários do RSI e dos seus comportamentos
cinge-se à fonte imagética que é canalizada para atribuições ilegítimas, cujo
objetivo é sustentar uma visão ideológica, dando uma renovada legitimidade para
aplicar políticas assistencialistas. Com esta constituição, entram no
imaginário coletivo os compósitos do estigma composto por um conjunto de
atributos como a irresponsabilidade, a imaturidade e a falta de respeito pelas
autoridades institucionais. A terceira e última categoria temática centra-se na
atribuição de causaspara o comportamento desviante. Esta lógica prende- se com
a perceção de que o desvio é uma patologia, que se tenta explicar através da
noção da doença social para a qual uma cura é necessária. E para justificar as
referências ao comportamento desviante surgem discursos que deixam entender que
muitas oportunidades de emprego não são aproveitadas pelos beneficiários do
RSI.
A maioria dos conteúdos expressos na imprensa escrita faz caminho no imaginário
do público, desencadeando processos de controlo social. Os modelos sociais
dominantes que explicam o desvio formam a base política do controlo social,
que, como sistema, terá que dar as respostas para o “pânico moral” instalado e
acomodado. Na reação ao pânico, as respostas sociais são sistematizadas em três
processos: sensibilização, culturado controlo social e exploração(Cohen,
2002).O processo de sensibilizaçãopromove a transformação de um problema
ambíguo num foco de ameaça generalizado, tornando-o mais percetível, fazendo
com que “qualquer item de notícia que entra na consciência do individuo tem o
efeito de aumentar a sua atenção face a cláusulas que sejam da mesma natureza
que o individuo possa ter ignorado ou passado” (Cohen, 2002: 77). No que
respeita ao RSI, as representações em seu torno ligam os beneficiários a
espaços marginalizados da sociedade – os bairros sociais – e a focos intensos
de pobreza.
Decorrendo da sensibilização, instaura-se uma cultura de controlo socialque se
caracteriza por elementos comuns como a difusão, a escaladae a inovação. Como
elemento mais visível da cultura de controlo social, a difusão sugere que o
problema estende-se para além dos espaços em que o comportamento desviante
ocorreu, contaminado outros campos sociais. A escalada baseia-se no mecanismo
cognitivo que aumenta a intensidade das representações do desvio, para
proporções megalómanas (ver Gráfico_1 e 2). Por último, a inovação centra-se no
acionamento de uma pluralidade de respostas face ao desvio do sujeito,
implicando uma mobilização de técnicas e metodologias para o seu combate
(Guerra, 2002). Os agentes do controlo social – instituições governamentais,
jornais, porta-vozes políticos – desempenham um papel fulcral na etiquetagem,
tanto na reação mais imediata face ao desvio, como numa relação posterior,
cristalizando um sistema de crenças e de generalizações alicerçado em mitos,
estigmas e estereótipos que produzem novos mecanismos de policiamento social.
Os média são elementos estruturantes na construção de representações sociais,
capazes de fabricar um falso objeto. Os indivíduos ou grupos sociais mais
vulneráveis na estrutura social, como os beneficiários do RSI, serão mais
vulneráveis à fabricação e aplicação de representações sobre a sua própria
vida, pois estas mesmas pessoas situam- se numa posição de dominação social,
simbólica e política. Esta expressão da violência simbólica “é uma violência
que se exerce com a cumplicidade tácita dos que sofrem e também, muitas vezes,
dos que a exercem na medida em que uns e outros estão inconscientes do facto de
a exercerem ou de a sofrerem” (Champagne, 1998: 222). Assim, pretendemos deixar
claro que neste quadro de análise é a relação entre as interpretações
individualistas/naturalistas sobre a pobreza e o desvio que iremos incidir,
para refletirmos sobre as tensões entre a política social dirigida à pobreza e
a necessidade de distinguir os pobres que merecem ser mais ajudados que os
outros.
5. Dar sentido(s) à investigação: o corpus de análise
Ao analisarmos a imprensa escrita, focamo-nos em três diários nacionais –
Jornal de Notícias, Correio da Manhã e Público – entre os anos 2007 e 2011,
inclusive. O critério para a seleção dos jornais foi a sua tiragem a nível
nacional, ou seja, terem uma cobertura nacional variada, totalizando uma
tiragem total de 278 mil exemplares por dia, sendo que cada um abrange áreas
geográficas diferenciadas, tem estratégias jornalísticas diferentes e capta
vários segmentos de mercado com públicos-alvo distintos. Para analisarmos as
representações em torno do RSI e dos seus beneficiários, efetuamos uma
exaustiva recolha de notícias e de artigos de opinião de dois jornais
classificados como “jornais de referência” – Público e Jornal de Notícias – e
um jornal popular que é o Correio da Manhã (Mesquita e Rebelo, 1994: 15).
Através desta recolha sistemática de informação obtivemos um corpusde análise
constituído por 918 notícias, distribuídas de forma díspar pelo Jornal de
Notícias (398 artigos), pelo jornal Público (353 artigos) e pelo jornal Correio
da Manhã (167 artigos), como indicado no Quadro_1 (Sá Ferreira, 2012).
No tratamento do corpus, não só testemunhamos uma disparidade entre as notícias
dos jornais, como referente aos anos analisados. Assim, foram publicados um
total de 63 artigos noticiosos referentes ao RSI em 2007, 130 artigos em 2008,
222 artigos em 2009, 285 artigos em 2010 e, por último, 218 em 2011.
Com base no que está estipulado por Sierra Bravo (1995) e partindo de um
universo de 918, constituímos uma amostra de 280 notícias, considerando uma
margem de confiança de 95,5% e uma margem de erro, aproximadamente, de 5%
(Arkin e Colton, inBravo, 1995).
Entretanto, e tendo em vista um afinamento analítico do corpusde análise,
procedemos a uma amostragem estratificada por cotas, tendo em linha de conta o
ano de publicação da notícia e o órgão de comunicação onde esta emerge. Ao
cruzarmos o peso noticioso em torno do RSI dos anos 2007 e 2011 com o número de
notícias por jornal, chegamos a um peso amostral em percentagem (ver Quadro_3)
(Sá Ferreira, 2012), que nos permite ter em conta uma amostra global tanto dos
artigos por ano, como dos artigos por jornal (ver Quadro_4) (Sá Ferreira,
2012).
6. O Blitzkreigdas palavras: tendências, representações e interlocutores
A linguagem como discurso é ação; está inserida numa dinâmica de formação de
relações, de práticas inscritas e interiorizadas na vida social que são
constituídas por relações de poder (Foucault, 1973).
Durante os anos em análise, a palavra “RSI” tem uma presença assinalável,
surgindo 877 vezes, distribuída de forma heterogénea entre os anos e os jornais
(ver Gráfico_1), demonstrando que: “de tempos a tempos a sociedade parece estar
sujeita a períodos de pânico moral. Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um
grupo de pessoas surge para se tornar ameaça para valores e interesses sociais;
a sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotipada pelos média,
as barreiras morais são geridas pelos editores, prelados, políticos e outras
pessoas corretas (ou seja, pessoas ‘de bem')” (Cohen, 2002: 9). Sabemos que o
surgimento da palavra em si e a frequência da sua utilização não são, em si,
suficientes para afirmar a existência de um pânico moral. Contudo, ao longo dos
anos em estudo verificamos que a sua frequência tem um caráter ascendente,
chegando ao seu pico em 2009 (Gráfico_1) (Sá Ferreira, 2012), ano em que o RSI
é sistematicamente conotado num quadro referencial negativo de “delinquência”,
“drogas”, “bairros sociais”, “fraude”, entre outros, enquanto a sua ligação ao
conceito de pobreza é reduzida drasticamente (Gráfico_2) (Sá Ferreira, 2012).
Em 2007 existe uma variedade de registos que inauguram uma caminhada mediática
para a estigmatização da medida e dos seus beneficiários, iniciando o prelúdio
da etiquetagem. Apesar da incidência do RSI na imprensa escrita ser residual,
quando ela surge está inserida em contexto de “fraude”, associada a uma
linguagem economicista em que se destacam os encargos financeiros que o Estado
tem com o RSI (Sá Ferreira, 2012). A própria caracterização dos beneficiários
do RSI oscila entre cenários de “alcoolismo”, “doença mental”, e
“toxicodependência”, e surge, pela primeira vez, o conceito de “oportunismo”
por parte dos beneficiários que se apropriam do RSI, apesar de não estar
prevista a atribuição vitalícia do mesmo. Em 2007, a argumentação que conduz à
estigmatização do RSI começa a estruturar-se.
Ao revermos o ano de 2008, as referências ao RSI totalizam 196 e as de pobreza
somam 71, demonstrando a forte correlação entre o RSI e a pobreza (Gráfico_2)
(Sá Ferreira, 2012). Não obstante esta forte correlação, na construção da
narrativa discursiva verificamos uma rutura qualitativa com o conceito de
pobreza, quando a imprensa escrita quebra o silênciodenunciando que existem
beneficiários do RSI que vivem em “casas muito apetrechadas”2 e que “há
famílias que se gabam”.3 Assim, a referência à pobreza é substituída pela
perceção de uma abundância material, acompanhada por uma pobreza de espírito,
um laxismo, uma propensão para o vício e a subsidiodependência, criando um
clima propício para a propagação do ódio social. Na caracterização dos
beneficiários, existe uma continuidade com o ano de 2007, ao serem associados
“ciganos”, “sem-abrigos”, “toxicodependentes” e “armas”. Acresce que as
referências ao aumento do número de beneficiários e da “taxa de
irregularidade”4
acabam por transformar todo este universo numa ameaça generalizada. É neste ano
que se destacam os empresários morais, Paulo Portas e Pedro Mota Soares, que
optam por centrar o seu discurso na “ética do trabalho”, avançando com
propostas legislativas baseadas no princípio da reciprocidade, introduzindo uma
maior fiscalização para combater a “fraude”. É em 2008 que se começam a
desenhar os primeiros contornos discursivos para a transferência do welfare
para workfare, em que este último ganha força. Importa referir que estes
discursos não correspondem a tentativas para verificar acontecimentos em que,
por acaso, foram cometidos alguns erros. Nas sociedades modernas, resultam,
antes, de “elementos de fantasia, má seleção e criação deliberada de notícias”
(Cohen, 2002: 44). No ano de 2009, verificamos um disparar das referências ao
RSI, totalizando um número de 187 incidências, enquanto a pobreza equivale a 26
alusões, verificando-se, pois, um crescente distanciamento do RSI em relação à
pobreza.
Esta ascensão do RSI na imprensa escrita deve-se, em grande parte, à campanha
legislativa para a Assembleia da República de 2009, em que o CDS-PP integra o
RSI como um dos temas de campanha5. O número de interlocutores ascende aos 31.
Com o RSI no centro do debate eleitoral, as representações como “subsídio de
preguiça” e “incentivo público à preguiça” 6 cristalizam-se no discurso
destinado à produção de opinião pública. Simultaneamente, a centralidade da
“fraude” em torno do RSI ascende a novos níveis, com o bombardeamento noticioso
acerca de “Fraudes de 118 milhões no RSI” e de “prejuízo com burlas”7, que
assume os traços de um verdadeiro massacre simbólico e estigmatizante. A
temática da “fraude” conjuga-se com a caracterização dos beneficiários como
“ladrões violentos” que “conciliam os enormes rendimentos do crime com uma vida
recheada de subsídios à custa do Estado” 8 , mergulhados em cenários de
alcoolismo e prostituição. Endurecendo a sua posição de empresário moral, Paulo
Portas acentua esta associação ao referir-se aos “abusos no Rendimento Social
de Inserção e (à) criminalidade”9 . Reforçando a temática moral da “ética do
trabalho”, números são avançados a respeito dos gastos que o RSI envolve, os
quais ascendem aos “400 milhões”, os quais legitimam os avisos de Pedro Mota
Soares acerca de um “descontrolo na atribuição”10 do RSI. Com o bombardeamento
simbólico do RSI como um subsídio para instigar o desvio, as propostas de
workfaree de ativaçãoestruturam- se com legitimidade.
No ano seguinte, em 2010, registamos 249 incidências do RSI nos três jornais, e
55 incidências de pobreza, dando continuidade ao distanciamento do RSI em
relação ao problema da pobreza, e identificamos 30 interlocutores. Sem negar
esta continuidade, observa-se, contudo, alguma mudança na caracterização dos
beneficiários: deixam de ser classificados por referência à toxicodependência e
à prostituição, passando a prevalecer o tema da dependência, com o risco de
“alimentar ociosos, vagabundos, chefes de gang” e de pagar “à escória da
sociedade”11. A violência da etiquetagem intensifica-se, quando o Correio da
Manhã, em tom de denúncia, diz que “presos têm rendimento mínimo”12 e que o
“Estado dá rendimento mínimo a reclusos”13. A este processo junta-se a
caracterização dos beneficiários como parasitas, que “vive(m) à custa do
sistema” 14 , em que alguns têm “bens de luxo incompatíveis com os
rendimentos”.15
Em 2010 reforça-se a etiquetagem dos beneficiários do RSI como habitantes dos
bairros sociais, com todos os problemas que lhes estão associados, e a todos os
seus focos problemáticos, quando numa notícia do Correio da Manhã se destaca
que “90% dos moradores da Quinta da Fonte recebe subsídio”16, associando a
medida diretamente ao tráfico de drogas e defendendo que esta “se transforma
numa indústria do abuso”17. No trilho dos cenários de “abuso” e da
“criminalidade”, surge a ética do trabalho e a transferência do welfarepara o
workfare, uma vez que se propõe que os beneficiários façam algum “trabalho
socialmente necessário”, considerando, por exemplo, que “deviam limpar
matas”18. A confirmação da substituição de uma rede social por uma rede penal,
transformando o Estado-Providência em Estado Penitenciário, dá-se com a
confirmação do “recrutamento de 50 inspetores”19, por parte da Segurança
Social, para fiscalizarem o RSI.
Em 2011 são identificadas 56 incidências que apresentam 24 interlocutores. Em
2011 o RSI continua estritamente associado ao desvio (ao crime): relata-se que
um beneficiário “usa seringa com HIV para assaltar”20. Esta ligação é
confirmada quando numa notícia se refere que “a PSP deteve um casal que, a
receber do Estado o Rendimento Social de Inserção, chefiava uma rede de
tráfico”21 . Adicionalmente, o tema da fraude perpetua-se em 2011: é anunciado
que foram atribuídos “532 milhões em subsídios ilegais” e que “87% dos que
recebem dinheiro em 2009 sem direito a ele não o devolveram”22.
A conjugação dos cenários de fraude, assaltos, toxicodependência e abusos
canalizados pela imprensa escrita, nomeadamente pelo Correio da Manhã,
estrutura a conceção de que a medida “corrompeu-se” e torna as pessoas
“passivas”. A difusão deste senso comum serve para justificar as medidas que
objetivamente traduzem a retração do Estado-Providência, designadamente por via
da delegação de competências para implementar a medida às Instituições
Particulares de Solidariedade Social, apesar das declarações do Ministro da
Segurança Social que garante que tal “não significa mais Estado, significa,
sim, mais instituições de solidariedade social”23. A disciplinação da medida
avança, quando é afirmado que o “RSI deve ser cortado a quem recusar
trabalho”24 e que é preciso “mais justiça social na atribuição de apoios”25. Ao
longo dos 5 anos analisados, o RSI tem sido estigmatizado e descredibilizado,
tanto no que concerne à medida como aos beneficiários.
Ao longo dos anos, verificamos uma construção mediática estigmatizante em torno
do RSI, discurso este que contribui para a naturalização das grandes
transformações que conduzem ao endurecimento do Estado Social, patente na
redefinição de uma medida de inserção social em medida de controlo social. A
criação de climas de desconfiança e de medo torna-se instrumental para “a
prossecução dos interesses dos que procuram uma intensificação do controlo
social e de uma legitimação da desigual distribuição do poder e do bem-estar”
(Innerarity, 2006: 176; Ferreira, 2011:56). O medo é a base de legitimação de
cenários catastróficos, legitimando as alterações legislativas em torno de RSI,
que bem traduzem a transformação do Estado Social em Estado Brutal (Ferreira,
2011: 56; Wacquant, 2003). Esta reação visa impor disciplina no setor mais
carenciado da estrutura de classe que, com o acentuar da crise, se encontra
cada vez mais polarizada. Esta viragem punitiva e fiscalizadora é uma resposta
à insegurança social e não à insegurança criminal, induzida pela fragmentação
das relações laborais, a precarização da vida e o desmantelamento do Estado
Social.
7. Tolerância Zero: punir os pobres
As representações em torno do RSI – e dos seus beneficiários – têm sido
fabricadas com contornos negativos, apresentando-os em cenários de miséria e
delinquência, circunscritos a atividades marginais em que se sublinham os
“abusos” e as “fraudes”. A construção das representações em torno do RSI pelos
empresários morais– que têm um papel determinante na imposição de normas com
coordenadas ideológicas – é amplificada, fazendo da opinião de poucos o senso
comum de muitos, o que dá razão a Bourdieu quando refere que “a dominação não é
o efeito simples e direto da ação exercida por um conjunto de agentes (‘a
classe dominante') investidos de poder de coação, mas o efeito indireto de um
conjunto complexo de ações que se engendram nas imposições cruzadas que cada um
dos dominantes, assim dominado pela estrutura do campo através do qual a
dominação se exerce, sofre da parte de todos os outros” (Bourdieu, 1997: 34).
Estas representações, tal como o discurso no qual estas se estruturam, estão
armadilhadas pelo senso comum. Na sociedade atual propagou-se a noção
meritocrata, segundo a qual aqueles que possuem riqueza a merecem porque
trabalharam para tal, relegando assim a pobreza à condição individual, cuja
saída depende da vontade exclusiva do sujeito. Nesta perceção incidem algumas
pré-noções e generalizações que caracterizam os beneficiários do RSI como
preguiçosos e portadores de uma “dependência patológica” que resulta em
desamparo moral, ameaçando todos os valores, a começar pela ética do trabalho.
Com a intensificação e a proliferação de discursos da “dependência patológica”
dos beneficiários, constituindo um estereótipo, a reação imediata por parte do
poder político é de cortar nos serviços sociais. Nesse contexto, ganha acuidade
a hipótese de Bourdieu, de acordo com a qual “os símbolos são os instrumentos
por excelência da ‘integração social': enquanto instrumentos de conhecimento e
de comunicação (...), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do
mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social:
a integração ‘lógica' é a condição da integração moral” (Bourdieu, 1989: 10).
Esta estratégia de incriminação da pobreza e de brutalização dos pobres tem por
objetivo impedir a criação de um sentimento de solidariedade e o
desenvolvimento de um sentimento de injustiça que seja capaz de reagir ao
sistema (Bauman, 2000). O senso comum é o menor denominador daquilo em que um
grupo social ou a maioria da sociedade, coletivamente, acreditam, rompendo com
a estruturação de classes e com as suas solidariedades intracategoriais que são
o outro lado do conflito e da luta contra a desigualdade. O senso comum
concilia a consciência com a injustiça e banaliza as desigualdades sociais,
afastando a possibilidade de transformação (Santos, 1989: 37). Além de possuir
a capacidade de vulgarizar injustiças, o senso comum reconfigura a relação de
classes ao traduzir o que seria, expectavelmente, uma luta interclassista, numa
luta intraclassista, endogeneizando o conflito e colocando os pobres contra os
ainda mais pobres.
A imprensa atua como amplificador e instigador de “pânicos morais” (Cohen,
2002). Ao longo dos anos analisados, as representações do RSI têm oscilado e
ganharam dimensões heterogéneas, estando associadas a diferentes conceitos
chave em diferentes anos. Em 2007 a incidência do RSI na imprensa é
relativamente baixa e a sua associação com a pobreza é visível, indicando que
tanto a imprensa como os leitores associam esta prestação social ao alívio de
situações; esta associação estende-se a 2008 apesar do aumento no número de
incidências do RSI na imprensa. Contudo, em 2009 dá-se uma reviravolta: o RSI
começa a ser associado – e subsequentemente etiquetado – a situações de fraude,
de assaltos e de injustiça.
O deslocar do processo de etiquetagem da pobreza para cenários de “dependência
patológica” e de “desamparo moral” é instigado pelos empresários morais,
provenientes da direita político-partidária, causando uma rutura qualitativa
nas representações dominantes. Em 2009 o RSI deixa de ser associado à pobreza,
ao verificarmos uma quebra no número de incidências do conceito “pobreza”,
transferindo o RSI para o campo da “malandrice”. Esta alteração quantitativa e
qualitativa da associação do RSI deve-se à campanha legislativa para a
Assembleia da República, que decorreu em 2009, onde o RSI se torna um foco
noticioso sujeito ao escrutínio político. Com o surgimento dos primeiros sinais
do impacto da crise financeira em 2009 e em 2010, dão-se os primeiros passos
para a domesticação do RSI que, assente nas representações negativas dos
beneficiários, estrutura a legitimação da passagem das políticas de welfarepara
workfare. Em 2011, com a intervenção da Troikaem Portugal, a intensificação da
crise da dívida soberana, aliada à perceção de que o RSI é uma política social
que financia “ladrões” e “preguiçosos”, a crise atua como catalisador de
grandes transformações no Estado-Providência.
A proliferação de pânicos morais é capaz, pela sua dimensão e pela sua
virulência, de legitimar a inflexão das políticas sociais e a retração da
intervenção estatal, redefinindo a fisionomia do Estado Social e das sociedades
(Wacquant, 2000). A associação do RSI a cenários e a comportamentos
caracterizados pelo desvio, bem como o enfoque na ética do trabalho como
elemento estruturante da vida social criam o contexto favorável à
descredibilização e à descapitalização não só desta medida particular, mas das
políticas sociais em geral.
Desta maneira, fica facilitada uma transição qualitativa da rede de segurança
do Estado-Providência para a montagem de uma rede disciplinar do Estado-
Penitenciário, em que os serviços sociais se transformam em instrumentos de
vigilância, controlo e disciplina das “classes perigosas”, uma vez que estas
provocam sentimentos de insegurança que legitimam o reforço do Estado Penal.
Apesar da fabricação das representações sociais parecer algo irrelevante, é o
elemento justificativo para os cortes na ação social, encarada como
“excessivamente generosa” para pessoas que fogem à ética do trabalho e “não
querem trabalhar”. A escalada deste tipo de etiquetagem intensifica o processo
de desfiliação, empurrando os beneficiários do RSI, já altamente
estigmatizados, para as margens da sociedade, instigando a profecia de desvio e
de destruição da moralidade dominante, numa auto profecia que, em certos casos,
se confirma.
As ideias não vivem sem organização e a disputa pela hegemonia é uma disputa
pela direção política das ideias26. A estratégia para efetuar uma profunda
reestruturação e realinhamento do Estado-Providência consiste em
descredibilizar o RSI tanto ao nível da sua implementação – ao demonstrar que
os beneficiários do RSI, os “maus pobres”, não merecem o apoio do Estado –,
como ao nível económico, ao apresentar a medida como um gasto excessivo. A
estratégia consiste em descredibilizar e punir, e o discurso em torno do RSI
torna-se fulcral e determinante, abrindo caminho para um declínio do estado
social e para a ascensão do estado brutal. A gestão do medo e da tolerância
zeroem torno do RSI torna-se uma questão da maior importância porque é uma
questão de poder e legitimação, que ganha uma crescente expressão no espaço
político para transformar o Estado-Providência em Estado Penitenciário.