Os menores estrangeiros isolados ou não acompanhados em França e Portugal: a
“batata quente”
Introdução
Os fluxos migratórios estão em constante transformação. As razões que levam as
pessoas a deslocar-se são de vária ordem. Mas, hoje em dia, sobretudo em alguns
países europeus, assiste-se à chegada de novos protagonistas, ou seja, de
menores desacompanhados.
Halvorsen (2002) estimava que cerca de 20 mil menores isolados ou não
acompanhados, oriundos da África e da Ásia, requereram asilo em países da
Europa. Pierre Henry, diretor-geral da France Terre d'Asile(FTDA), nas
primeiras jornadas dedicadas aos menores isolados, em dezembro de 2011, na
cidade de Lille (França), avançava que o número de menores na União Europeia
(UE) estava avaliado entre 50 mil e 100 mil. A ausência de estatísticas fiáveis
constitui, no seu entender, uma negação à dignidade destes jovens.
A clandestinidade a que muitos menores estão sujeitos, a circulação pelas
diversas regiões e países e a ausência de articulação entre as entidades
regionais, nacionais e europeias poderão explicar este obstáculo de
quantificação do fenómeno.
Se não é fácil para os adultos que emigram, sobretudo os que se encontram
desempregados, compreende-se as dificuldades de um menor com idade inferior a
18 anos que não domina, na maior parte das vezes, a língua do país de
acolhimento e a cultura.
O Conselho Português para os Refugiados (2007: 13) refere que “as crianças
estão, muitas vezes, severamente traumatizadas devido à árdua experiência da
viagem e defrontam-se com um sem número de desafios decorrentes da sua
situação: menor desacompanhado requerente de asilo. Para além das dificuldades
inerentes à chegada a um país estranho, com costumes, tradições e uma língua
muitas vezes diferente da sua, os menores deparam-se com sistemas extremamente
burocráticos que dificultam a sua integração na sociedade”.
Quatro testemunhos (Diome, 2003; Gatti, 2008; Mohammadi, 2009; Geda, 2011)
retratam esses desafios e perigos de uma forma emocional. Denunciam o sistema
de passadores, verdadeira economia fundada no contrabando de seres humanos,
tratados como “gado” (Mohammadi, 2009: 88), e as enormes dificuldades de
integração. Todavia, também existem casos de sucesso, ou seja, de integração
nas sociedades de acolhimento.
Na nossa experiência de terreno, durante mais de dois anos, pudemos testemunhar
as dificuldades dos menores. A difícil integração a que estão sujeitos leva,
por vezes, alguns jovens a tentarem o suicídio ou a entrarem em depressão.
Outros, quando chegam à idade de maioridade (18 anos), são colocados fora do
sistema de apoio pelas instituições públicas ou associativas, de forma brusca,
e têm de recorrer a ajudas de compatriotas ou, não tendo alternativa, passam a
dormir na rua. Outros ainda são obrigados a regressarem aos países de origem ou
a tentar a sua sorte noutro país da UE.
A questão dos menores isolados estrangeiros é um sujeito de atualidade que
concerne à Europa, mas também a outros países para além das nossas fronteiras1.
A situação de Sangatte (França)2, última porta antes de Inglaterra, refletiu os
problemas da globalização (Waters, 1999), a necessidade de proteção de várias
pessoas, os esforços de harmonização das políticas nacionais e a dimensão
internacional deste problema.
Este trabalho procura analisar o fenómeno em dois países europeus: França e
Portugal. Adotámos uma metodologia qualitativa: recolha de informações, de
entrevistas a técnicos e agentes que trabalham com este público-alvo e a nossa
experiência pessoal e de terreno, através da observação-participante.
1. Objetivos, metodologia e técnicas
O presente estudo pretende contribuir para o aprofundamento do conhecimento
sobre o fenómeno migratório dos menores isolados estrangeiros em França e em
Portugal.
Em França, a pesquisa começou em março de 2012, com a nossa integração, através
de um contrato de trabalho, na organização não-governamental FTDA, em Paris, no
departamento de acompanhamento de menores estrangeiros isolados, Maison du
Jeune Réfugié. No caso português, a fonte da informação foi a pesquisa
documental.
Em termos metodológicos, optámos pelo estudo de caso, pois trata-se de uma
abordagem metodológica de investigação adequada quando se procura compreender,
explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos, nos quais estão
simultaneamente envolvidos diversos fatores (Quivy e Campenhoudt, 1998). Para a
concretização do trabalho, recorremos às tradicionais técnicas das Ciências
Sociais (Quivy e Campenhoudt, 1998; Ketele e Roegiers, 2009). Procurámos fazer
uma revisão bibliográfica sobre as migrações e mais concretamente sobre os
menores estrangeiros isolados, bem como uma análise de diversos documentos
escritos e publicados (estudos, artigos científicos, artigos de jornais, etc.)
disponíveis. Em complemento de informação, recorremos aos contactos efetuados
com os profissionais de várias entidades públicas, privadas e associativas, que
trabalham direta ou indiretamente sobre o tema e o público-alvo (sociólogos,
psicólogos, assistentes sociais, educadores, juristas dirigentes, animadores
socioculturais). Recorremos também à observação participante (expressão da
autoria de Malinowski, 1922), técnica que se baseia na recolha de elementos de
informação, a partir da observação feita por um investigador que se encontra
intencionalmente no grupo a observar ou que dele faz, efetivamente, parte. Esta
observação direta e participante foi complementada com dez entrevistas,
assumindo um protocolo de confidencialidade.
No decurso do trabalho de campo cultivámos um relacionamento mais frequente e
mais intenso com interlocutores preferenciais (Costa, 1986) ou testemunhas
privilegiadas (Quivy e Campenhoudt, 1998), no sentido de obtermos informações
sobre aspetos que não se encontraram na documentação disponível. Temos
consciência de que as meras descrições dos informantes podem induzir em erro,
porque, com frequência, os indivíduos são arrastados por ideais ou pela noção
que têm dos factos sociais e poderão dar uma visão deturpada da vida real e
objetiva. A presença do investigador no terreno introduz neste uma série de
novas relações sociais. Através das técnicas de pesquisa, procurámos manter a
distância em relação ao objeto de análise, evitando a imposição dos próprios
valores do investigador. Quando a barreira linguística se impôs, recorremos a
intérpretes credenciados, cujos honorários foram suportados pela FTDA.
Ao longo da investigação, houve “investimento”3 (Bourdieu, 1989). A nossa
experiência situou-se entre dois polos: envolvimento4 e distanciamento (Elias,
1997), por curtos e longos períodos de tempo.
Em França, acompanhámos 80 menores isolados de várias nacionalidades e
visitámos diversos centros de acolhimento dos menores e centros de atividades,
de forma a termos contacto com os serviços prestados, conversámos longamente
com os menores, acompanhámo-los, quando necessário, ao médico, às embaixadas e
aos consulados, procurámos estágios e formação profissional, promovemos
candidaturas para os integrar nos estabelecimentos de ensino, demos aulas de
francês, etc. Para além dos constrangimentos no acesso à informação, fomos
vítimas de agressão, humilhados, etc.5 De facto, trabalhar com os menores
isolados nem sempre é fácil. São por vezes momentos de grande tensão e de
conflito, em que os nervos estão à flor da pele. Se, por um lado, muitos são os
menores que pretendem ficar no território e obter a regularização, por outro,
são muitos os que sofrem de problemas ligados ao alcoolismo, drogas,
delinquência, etc. A pressão existe e por vezes uma palavra mal compreendida
pode degenerar em atos de violência contra os outros ou, não raras vezes, sobre
si próprios (escarificações no corpo, tentativas de suicídio, etc.). Os menores
sofrem de uma enorme pressão dos passadores para pagar as dívidas da viagem ou
para enviar dinheiro para a família. A FTDA teve que fechar uma estrutura de
acolhimento de 70 jovens, pois semanalmente vários atos de violência eram
registados (entre os jovens e contra os educadores e animadores), levando à
intervenção da polícia. Durante seis meses, mais de 15 funcionários colocaram
baixas médicas ou despediram-se.
2. Os menores estrangeiros isolados ou não acompanhados em França
No fim dos anos 1990, as associações de magistrados e os serviços sociais
franceses de ajuda a menores alarmam-se sobre a chegada “em número” (as
estimativas variavam entre 3 mil e 5 mil) de menores isolados ou não
acompanhados ao território pelas vias terrestres, aéreas e portuárias,
provenientes de todos os continentes, por razões nem sempre identificadas.
O debate sobre a responsabilidade política e financeira dos menores não tarda a
estar presente. Se no início é quase de forma anedótica, mais tarde será uma
“questão da sociedade”, posta pelos protagonistas de acolhimento dos menores
isolados, pelos atores políticos e pelos representantes dos Conselhos Gerais e
do Estado francês.
A lei sobre a autoridade parental de março de 2002, no seu artigo 17, prevê a
designação de um administrador ad hocpara representar os menores isolados
mantidos nas zonas de espera e assisti-los em todos os procedimentos
administrativos e jurisdicionais relativos aos seus pedidos de asilo, mas como
nos sublinha Dominique Versini, Presidente da European Network of Ombudspersons
for Children(ENOC), o administrador não encontra o menor que, muitas vezes, já
foi repatriado. Para lutar contra a prostituição dos menores, esta lei introduz
sanções aos clientes dos menores que se entregam à prostituição,
independentemente da sua idade.
No ano seguinte, em novembro de 2003, é criada a lei relativa à imigração e à
estadia de estrangeiros em França para os menores isolados estrangeiros
acolhidos pela L'Aide Sociale à l'Enfance(ASE). No entanto, eles não poderão
pedir a nacionalidade francesa antes dos 18 anos e ter sido acolhidos pelo
menos três meses por este organismo do Estado. A circular de aplicação de 20 de
janeiro de 2004 precisa que esta modificação deve permitir limitar a imigração
clandestina dos menores isolados.
Menores isolados estrangeiros, menores isolados que pedem asilo, crianças
refugiadas, menores estrangeiros não acompanhados, crianças separadas, menores
estrangeiros em trânsito, jovens errantes, etc., as denominações abundam. Para
além da questão da terminologia, estes termos não são anódinos e reenviam para
representações e posicionamentos diferentes dos atores institucionais e
associativos. Traduzem-se pelos modos de abordagem e de práticas diferentes
segundo as instituições, os serviços e os atores sociais.
Em termos de terminologia, os menores estrangeiros não acompanhados ou isolados
são definidos como aqueles que saíram de um país terceiro com idade inferior a
18 anos, que entram no território dos Estados-membros sem o acompanhamento de
um adulto que seja responsável por eles, pela lei ou pelo costume, e que não
são efetivamente responsáveis por uma determinada pessoa.
O Conselho da Europa para os Refugiados e Exilados fala de crianças refugiadas
nos casos em que: i) houve pedido do estatuto de refugiado ou toda a forma de
protecção internacional (pedido de asilo); ii) é considerado como refugiado, de
acordo com o direito internacional ou nacional aplicável, que esta criança seja
isolada, acompanhada dos seus pais ou de outra pessoa; iii) a criança foi
levada a fugir do seu país, passando uma fronteira internacional.
Elaborado pela rede europeia Save the Childrene o Alto Comissariado para os
Refugiados das Nações Unidas, o Guia das Boas Práticas de 2004 utiliza a noção
de “crianças separadas”. Segundo o texto, o termo “separado” é preferível
porque define melhor o problema com o qual estas crianças são confrontadas. Com
efeito, estas crianças encontram-se privadas de assistência e da protecção dos
seus pais ou do seu tutor legal e sofrem social e psicologicamente por esta
separação. Se alguns parecem estar acompanhados quando chegam à Europa, os
adultos que os acompanham não são forçosamente aptos ou capazes de assumir a
responsabilidade.
O Comité dos Ministros do Conselho da Europa, nas suas recomendações de 12 de
julho de 2007, retém o termo de “menores migrantes não acompanhados” e precisa
que a recomendação visa os menores migrantes não acompanhados que se encontram
fora do seu país de origem, qualquer que seja o seu estatuto, independentemente
da causa da sua migração, tenham ou não efetuado o pedido de asilo.
A expressão “menores migrantes não acompanhados” inclui as crianças separadas.
E inclui igualmente os menores que são deixados sós depois de terem entrado no
território de um Estado-membro. Os menores não acompanhados são crianças com
menos de 18 anos, que foram separadas dos seus pais ou de outros membros
próximos da sua família e que não estão sob a alçada de um adulto investido
dessa responsabilidade pela lei ou pelo costume.
Etiemble (2002), num estudo encomendado pela Direção da População e de Migração
(França), define uma tipologia destes menores estrangeiros isolados, segundo os
seus motivos de partida dos países de origem:
* Os “exilados”: menores que vêm de todas as regiões devastadas pela guerra,
pelos conflitos étnicos ou religiosos e pelas tradições opressivas ligadas a
atividades políticas dos seus próximos.
* Os “mandatados”: menores incitados e apoiados a partir pelos seus pais ou por
próximos, a fim de trabalhar, de enviar posteriormente dinheiro ou de
prosseguir os estudos. O mandatado, depois de ter as condições, pode fazer
vir o resto da família. Os mandatados inserem-se numa lógica de sobrevivência
económica e numa lógica de ascensão social.
* Os “explorados”: menores que deixam o seu domicílio fiscal ou o orfanato no
qual vivem devido a conflitos com a família/instituição ou porque são vítimas
de maus-tratos. São explorados de diferentes formas: prostituição, trabalho
clandestino, mendicidade ou delinquência. A sua partida é submetida a este
objetivo de exploração, organizada pelas redes do tipo mafioso, mas também
por indivíduos que fazem o seu “negócio” de forma individual, procurando a
oportunidade para utilizar determinado adolescente para seu proveito, pagando
o seu bilhete de viagem e acompanhando-o ao seu local de destino.
* Os “errantes”: menores que já estavam numa situação de delinquência no seu
país de origem, meses ou anos antes da sua partida para a Europa. Viviam da
mendicidade, de pequenos trabalhos, de delinquência, eventualmente de
prostituição, e decidem tentar a sua sorte num país rico. São as crianças de
rua e o seu modo de vida inscreve-se numa forma de mobilidade provisória.
* Os “agrupáveis”: jovens enviados para se juntarem a outro membro, mais ou
menos afastado, da sua família instalada na Europa e que, pelo facto de as
condições de acolhimento não serem as melhores, se encontram isolados e em
perigo.
A autora refere que as fronteiras entre estas categorias são muito porosas. Não
se trata de etiquetar determinado menor isolado, mas sim considerar o seu
percurso à luz destas diferentes categorias (Etiemble, 2008). Os contextos
económico, político, familiar e cultural misturam-se. De facto, estes perfis
não são exclusivos de uns ou de outros nos seus itinerários migratórios. Um
exilado pode ser ao mesmo tempo explorado quando a pessoa organiza a sua viagem
com destino a um país europeu com vista à prostituição. Um mandatado para
sustentar o bem-estar da sua família pode conhecer a mesma sorte. Um exilado
pode ter conhecido a errância no seu país de origem.
Quaisquer que sejam as razões da sua partida, os menores estão sujeitos aos
caminhos idênticos dos adultos. Eles encontram os mesmos passadores (a quem
pagam avultadas quantias) e viajam nas mesmas condições duras que os adultos,
apesar da sua vulnerabilidade. Eles são submetidos aos mesmos constrangimentos
em matéria de imigração e de asilo.
Quando se fala em imigração e em asilo, refere-se frequentemente em redes e em
fileiras para qualificar um “mercado migratório” inquietante, socialmente
patogénico, criminalizante para os migrantes que são percebidos como vítimas,
mas também como culpados do seu desejo de migração.
Estas representações estão igualmente presentes quando é uma questão de menores
isolados. Elas manifestam-se na reticência a reconhecer o seu isolamento, a sua
menoridade e o perigo da sua situação. Os profissionais procuram descobrir a
mentira da verdade, a manipulação da sinceridade: dinheiro e sinais exteriores
possuídos pelos jovens, etc.
Os jovens que pedem uma proteção e que não a merecem são vistos como
aproveitadores do sistema e de se fazerem passar por aquilo que não são,
mentindo sobre a sua idade ou identidade. Os que não pedem proteção e os que
fogem dos locais onde são acolhidos são igualmente suspeitos de estarem no país
por más razões.
Hernandez (2005) prefere que diferenciemos os menores de acordo com as funções
das causas de migração e da sua situação do país de origem, que levaria a criar
duas categorias clássicas: os menores migrantes por razões económicas (no
sentido amplo do termo) e os menores migrantes por causa de um conflito armado
ou de uma catástrofe natural. Por outro lado, considerando a situação do menor
no seu país de acolhimento (ou na sua viagem migratória), pode ser elaborada
outra categoria: i) os menores protegidos (sob assistência ou controlo dos
serviços públicos nacionais ou de ONG); ii) os menores explorados (em
consequência ativa ou passiva de atividades ilegais ou ilícitas); e,
finalmente, ii) os menores errantes (sobrevivem na rua ou a partir da
realização de pequenos trabalhos ou de atividades mais ou menos legais). Mas,
segundo o autor, só um estudo de terreno rigoroso permitiria estabelecer a
definição ou os limites de cada categoria.
Da observação no terreno, a Cruz Vermelha Francesa acrescenta uma outra
categoria que não está prevista no estudo de Etiemble (2002), que são os
“viajantes normais”: podem ser crianças que entram em França ou aqui residem
habitualmente depois de férias passadas no estrangeiro. Trata-se de menores que
planearam uma viagem a França ou fora da Europa, de curta estadia: os turistas,
as crianças que vieram fazer um estágio, uma formação linguística de curta
duração, um retiro religioso, etc., dando o exemplo de menores provenientes da
Guatemala e do Brasil (Croix-Rouge Française, 2001: 9).
A questão que se coloca é se são menores verdadeiramente isolados. Certos
menores foram acompanhados até ao território francês, nomeadamente quando o
avião foi o seu único meio de transporte. Os passadores, contra remuneração,
fornecem os seus serviços: conhecem os meios de passar as fronteiras e os
controlos policiais sem dificuldades, possuem documentos de identidade e de
viagem. Esta prestação pode ir até ao acompanhamento, no território francês, às
portas de uma associação, de uma circunscrição social, mas também a um
atelierclandestino. A organização da viagem transforma-se numa exploração da
estadia.
Certos passadores são pagos imediatamente, antes mesmo da viagem, outros são
reembolsados depois pelo trabalho do menor na Europa. Os menores não estão
sozinhos, mas o ambiente à sua volta não é de forma alguma protetor. O
testemunho de Mohammadi (2009: 76) é elucidativo:
“Eles consideram-nos como seus escravos. E, de facto, é isso que nós
somos porque no fundo os sucessivos passadores compram-nos e vendem-
nos. Apercebo-me que o ser humano, colocado nestas situações, adota
rapidamente um comportamento de carneiro.”
Da nossa experiência no terreno, existem vários casos. Existem menores
completamente isolados e existem menores que têm família no território e tentam
aproveitar o sistema social francês. Outros não são menores. São jovens
adultos, que passam pela malha do sistema. No entanto, apesar de serem jovens
adultos, não deixam de ser vulneráveis.
Como é que os menores são sinalizados? Alguns encontram-se na rua, num ambiente
desconhecido. Muitas vezes são recolhidos por uma pessoa, um compatriota ou
não, que rapidamente passa a “bola”, mais ou menos brutalmente, a uma
associação, a uma brigada de menores ou a um serviço social. Os menores são
alojados em casas de desconhecidos a quem concedem a sua confiança porque lhe
propõem um teto ou porque são compatriotas, colocam-se em perigo ou vivem em
condições precárias. Algumas crianças e jovens deambulam pelas ruas vários dias
antes de serem vistos por associações, por agentes de segurança ou por
cidadãos. Outros estão em França vários meses antes de conhecerem os serviços
sociais por sua iniciativa ou de maneira fortuita. Alguns apresentam-se
diretamente às estruturas, outros, ao contrário, procuram evitá-las.
Depois da entrada no território, a proteção dos menores estrangeiros não é
imediata nem espontânea. A falta de documentos de identidade ou a
indeterminação da idade são alguns dos constrangimentos do acolhimento de
urgência e a articulação entre as diferentes instâncias – polícia, justiça,
instituições especializadas – não é sistemática e nem sempre é coerente.
Diferentes configurações se apresentam consoante as cidades e os departamentos.
Esquematicamente encontramos três procedimentos de admissão de proteção à
infância. Segundo o artigo L.223-2-2 do Código de Ação e da Família, a ASE tem
a possibilidade de acolher provisoriamente e com carácter de urgência menores
sem a autorização dos pais durante cinco dias, mas tem como obrigação avisar o
Procurador, para que este estabeleça a autoridade judiciária: tribunal de
menores. Nem todos os departamentos aplicam esta proteção administrativa quando
se trata de menores isolados. Preferem esperar por um despacho do juiz do
tribunal, que é a Ordonnance dePlacement Provisoire (OPP) (prorrogável ou não).
Nem todos os departamentos aplicam esta proteção administrativa quando se trata
de menores isolados. Existem convenções entre os serviços de ajuda a menores e
os tribunais que, de maneira mais ou menos sistemática, mandam proceder ao
exame médico para o estabelecimento da idade dos menores, quando esta é
desconhecida ou no caso de ausência de documentos de identidade (método de
Greulich e Pyle e teste de Risser)6. No caso de espera deste exame – que leva
alguns dias, semanas e, por vezes, meses –, os menores são colocados em
alojamentos de urgência, em hotéis, ou, segundo os contextos locais, deixados
na rua.
Como já referimos anteriormente, existem poucos números sobre a realidade dos
menores estrangeiros isolados ou não acompanhados. No relatório de Debré
(2010), estima-se que existam entre 4 mil a 8 mil menores estrangeiros isolados
ou não acompanhados no território, com fortes disparidades entre as várias
cidades, departamentos e regiões. Com um efetivo de mil menores em setembro de
2011, a Seine-Saint-Denis chegava à segunda posição depois de Paris, com 1.637,
e antes da Ille-et-Vilaine, com 294, o terceiro departamento. A título de
comparação, o departamento 93 (Seine Saint-Denis), acolhe o dobro dos menores
isolados estrangeiros que Hauts-de-Seine, o departamento mais rico da França.
Em julho de 2011, Claude Bartolone, na qualidade de Presidente do Conselho
General do Departamento de Seine Saint-Denis, disse que a partir de 1 de
setembro os serviços não acolhiam mais menores, argumentando com a elevada
carga financeira que representavam, o que levou a um braço de ferro político.
Durante várias semanas, as Ordens de Colocação Provisória, ordenadas pelo
Tribunal de Menores, não foram executadas e os menores eram acolhidos pelos
dispositivos dependentes da ASE, o que obrigou à procura de novos locais de
acolhimento. Os funcionários da Protecção Judiciária da Juventude (PJJ)
procuravam encontrar locais alternativos. Incapazes de dar uma resposta,
declaravam não aceitar mais menores não delinquentes confiados às estruturas da
PJJ.
Um acordo acabaria por ser encontrado sob a égide do então ministro da Justiça.
O tribunal de Bobigny ficaria encarregue de enviar um em cada dez menores para
uma colocação em Seine-Saint-Denis e os outros nove seriam repartidos pelos
departamentos mais ou menos limítrofes de Paris. Sem a existência de números
oficiais centralizados, as melhores fontes são o relatório de Etiemble (2002) e
o estudo comparativo nos 27 países da UE, coordenado pela FTDA (2012). No caso
do estudo de Etiemble (2002), utilizam-se principalmente os dados de menores
colocados à disposição dos serviços departamentais da ASE, entre os anos 1999 e
2001 (precisando que apenas 47 departamentos tinham transmitido os números).
Segundo o estudo, a totalidade de menores isolados estrangeiros sobre proteção
da ASE era de 609 em 1999, 985 em 2000 e 1.974 em 2001. As nacionalidades mais
representadas eram a romena (20,7% do total para os 3 anos) e a marroquina
(17%). Relativamente ao género, o sexo masculino é predominante (78% em média,
entre 1999 e 2001). Quanto à idade, apenas 25% eram menores de 15 anos, no
mesmo período de referência. Na argumentação da CPR (2007: 18), é referido que
“Normalmente, a viagem para a Europa é mais problemática para as raparigas do
que para os rapazes, pois estas são as principais vítimas do tráfico para a
exploração sexual. Por outro lado, as mulheres, no país de origem,
particularmente as jovens, têm um papel essencial no apoio à família”.
O testemunho de Wali Mohammadi (2009: 8) é importante quanto ao género:
“Raras são as mulheres e a maioria viajam com os seus familiares. No
decurso dos meus três meses e meio de périplo, nunca vi uma jovem ou
uma mulher a viajar sozinha, no meio dos emigrantes.”
Em 2005, um relatório da Inspeção Geral dos Assuntos Sociais veio completar os
números de Etiemble (2002). Neste inquérito, que foi aplicado em 63
departamentos, são examinados dois tipos de dados: o número de admissões na ASE
por um período de tempo (3.177 menores admitidos entre 1 de janeiro e 31 de
dezembro de 2003 e 2.330 para os primeiros nove meses de 2004 – até 30 de
setembro; e o número de menores tomados a cargo num momento preciso (2.055 em
31 de dezembro de 2003 e 2.467 em 30 de setembro de 2004). Estes números
indicam uma estimativa do número de menores que saem do sistema de proteção.
Segundo as admissões (5.507 entre o início de 2003 e o fim de setembro de
2004), somente 45% (2.467 menores) continuaram com a proteção. Um outro dado
interessante deste relatório é a fraca percentagem que representa os menores
estrangeiros isolados relativamente ao total de menores colocados sob o sistema
de proteção ASE. Em 31 de dezembro de 2003, sobre o conjunto de menores,
somente 2,7% eram menores isolados estrangeiros, percentagem que se eleva até
ao máximo de 13% na ASE de Paris. Uma outra conclusão do estudo, muito
diferente daquele que é apresentado em 2002, é a da evolução demográfica do
fenómeno de menores estrangeiros isolados ou não acompanhados no conjunto do
território francês. Se a cidade Luz continua a concentrar uma parte importante
dos acolhimentos (22%), uma quinzena de Departamentos têm a cargo menos de
cinquenta menores estrangeiros isolados ou não acompanhados.
Relativamente aos pedidos de asilo entre 2003 e 2011, o Office Français de
Protection des Réfugiés et Apatrides(OFPRA), tomou, em 2011, 590 decisões, dos
595 pedidos formulados pelos menores estrangeiros isolados ou não acompanhados.
Em 2010, dos 610 pedidos, foram tomadas 488 decisões. Em 2008, em França, foram
registados 410 pedidos de asilo, quando a Áustria registava 711, a Alemanha
727, a Noruega 1.374 e o Reino Unido7 4.285. No caso francês, comparando 2004 e
2008, houve uma queda de 40%.
O debate sobre a necessidade de proteger os menores estrangeiros isolados ou
não acompanhados em França surge, num primeiro momento, no facto da sua
retenção na zona de espera e sobre o problema que colocam à sua ausência de
capacidade jurídica para poder contestar as eventuais decisões administrativas
de recusa de entrada no território. Efetivamente, qualquer pessoa estrangeira,
maior ou menor, intercetada no momento da sua entrada no território pela
Polícia das Fronteiras, pode ser mantida durante quatro dias na zona de espera,
essa “zona cinzenta”, “em que não se sabe muito bem o que se passa”, segundo
informações de um advogado da FTDA. Para além deste prazo, a espera pode ser
prolongada (a título excecional) por mais 8 dias, por decisão de um juiz. Se
depois do prazo de 20 dias a pessoa estrangeira não for enviada para o seu país
de proveniência ou um país terceiro, ela deve ser autorizada a entrar no
território francês, documentada com um visto de 8 dias. Depois desse prazo a
pessoa estrangeira é “convidada” a deixar o território.
Até uma data recente os menores eram, por norma, autorizados a entrar no
território francês devido precisamente à sua incapacidade jurídica e à sua
impossibilidade de apelar às decisões administrativas ou judiciárias
concernentes. Portanto, uma modificação introduzida pela Lei sobre a Autoridade
Parental de 4 de março de 2002 acrescentou um parágrafo à norma, obrigando o
Procurador da República, logo que se constate a presença de um menor sem
representante legal na zona de espera, a designar um administrador ad hocpara
assistir o menor durante a sua retenção e assegurar a sua representação em
todos os procedimentos administrativos e jurisdicionais.
Um relatório de julho de 2005 da Association Nationale d'Assistance aux
Frontières pour les Etrangers(ANAFE) denunciava que, apesar da presença de
administradores ad hocdestinados a “legalizar” os menores nas zonas de espera,
os reenvios sucedem-se. Os números da Polícia de Fronteiras confirmam esta
tendência. Das 259 colocações de menores na zona de espera para o período de
janeiro a abril de 2005, 55% foram recambiados. A FTDA também apresenta vários
dados a este respeito. No aeroporto de Roissy, em 2010, 411 menores foram
colocados em zona de espera (14% com menos de 13 anos e 86% com mais de 13
anos). Em 2009, foram colocados 637 menores isolados em zona de espera, dos
quais 54 foram admitidos por terem pedido o asilo (8,5%), 318 foram libertados
pelos tribunais (49,9%), 125 foram libertados pela Police aux Frontières(PAF)
(19,6%) e 136 foram embarcados (21,4%). Na França Metropolitana e Além-Mar, em
2009, 698 menores foram colocados em zona de espera, ou seja, uma diminuição de
32,7% relativamente a 2008, enquanto 534 foram admitidos no território (76,5%)
e 160 foram embarcados (22,9%).
Num estudo realizado em 2009, a Human Rights Watch(HRW) denuncia que os
menores, na zona de espera do aeroporto de Roissy-Charles de Gaulle, são muitas
vezes confrontados com uma conduta intimidante e mesmo abusiva por parte dos
polícias. Há casos em que a polícia obriga crianças de 6 anos a assinar papéis
que elas não compreendem; são algemados e revistados nus. Alguns menores
entrevistados pela HRW referem também que ficam fechados em gares todo o dia,
limitando o acesso às casas de banho (HRW, 2009: 6). Adianta que:
“Quase todos os menores interrogados, declararam que os primeiros
contactos com as autoridades francesas tinham sido marcadas por
ameaças, humilhações e num clima coercivo, que tinham por objectivo
destabilizar os menores e de os travar nos seus intentos, renunciando
assim a fazer valer os seus direitos e de aceitarem, de livre
vontade, serem reenviados para os seus destinos de origem.”
O relatório da Cruz Vermelha Francesa (Croix-Rouge Française, 2001: 18) também
denuncia alguns destes factos.
Segundo o artigo 21.12 do Código Civil em vigor em França, o menor estrangeiro
sob a responsabilidade dos serviços da ASE pode pedir a nacionalidade francesa
por declaração antes de atingir a maioridade. Antes da última reforma da antiga
norma de 1945, os únicos documentos a fornecer pelo menor isolado eram a prova
de identidade e a decisão judiciária de assistência educativa. Depois da Lei de
26 de novembro de 2003, designada “Sarkozy”, o menor estrangeiro que deseja
pedir a nacionalidade francesa deve acreditar um período mínimo de três anos
sobre a proteção da ASE.
Uma parte destes menores com mais de 15 anos sobre proteção (75% do total,
segundo os números do estudo de Etiemble, 2002) tentaram regularizar-se pelo
número 7 do antigo artigo 12 bisda norma de 1945. Esta norma prevê a outorgação
da carta de estadia dos estrangeiros que, não podendo beneficiar do
reagrupamento familiar, têm laços pessoais ou familiares em França. A realidade
eficaz desta via de regularização foi muito fraca.
Mais recentemente, uma instrução do Ministério do Interior francês aligeirou as
modalidades de admissão dos menores isolados, especialmente aqueles que foram
colocados sobre a proteção da ASE antes de terem 16 anos. Graças à modificação
do Código de Trabalho, foram criadas condições mais ligeiras para a entrega de
uma autorização de trabalho aos jovens colocados sobre a assistência educativa,
tendo 16 anos ou menos. Uma declaração de estadia deverá ser entregue aos
menores ou jovens maiores que preencham estas condições. Por outro lado,
aqueles que não podem beneficiar do artigo citado anteriormente (confiados à
ASE com a idade de 17 anos) podem também obter uma declaração de estadia
temporária sob certas exigências, nomeadamente seguir um percurso de inserção
profissional em França e não ter qualquer perspetiva de retorno devido à
ausência ou perda de laços com a família que ficou no país de origem.
3. Os menores estrangeiros não acompanhados em Portugal
A realidade dos menores estrangeiros isolados ou não acompanhados em Portugal
não é muito conhecida. O estudo A Situação dos Menores Desacompanhados em
Portugal: características e recomendações, publicado pelo Conselho Português
para os Refugiados (CPR, 2007: 14), salienta que “não existem, porém,
informações precisas sobre a extensão deste grupo”, posição reforçada pelo
relatório Receção, Retorno e Integração de Menores Desacompanhados em Portugal,
realizado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Rede Europeia das
Migrações, 2008.
A lei n.º 67/2003, de 23 de agosto, que transpõe para a ordem jurídica nacional
a Diretiva n.º 2001/55/CE, do Conselho, de 20 de julho, no seu Artigo 2.º,
define como
“Menores desacompanhados os cidadãos de países terceiros à União
Europeia ou apátridas, com idade inferior a 18 anos, que entrem em
território nacional não acompanhados por um adulto que, nos termos da
lei, por eles se responsabilize e enquanto não forem efetivamente
tomados a cargo por essa pessoa, ou menores abandonados após a
entrada no território nacional”.
O quadro legal nacional de referência nesta matéria é constituído pela Lei n.º
23/2007, de 4 de julho (Lei dos Estrangeiros), pela Lei n.º 27/2008, de 30 de
junho (Lei do Asilo) e pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, que tem por
objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e jovens em perigo.
Em termos de números, e segundo o relatório do SEF (2008: 3), “A afluência de
menores desacompanhados a Portugal é bastante reduzida. Tal realidade reflete-
se e, naturalmente, condiciona o desenvolvimento de alguns aspetos da abordagem
desta temática, em especial no que se prende com a vertente estatística”.
Acrescenta ainda que “A dimensão do fenómeno em Portugal inibe a divulgação das
estatísticas relacionadas com esta população, uma vez que a sua publicação
seria suscetível de pôr em risco a confidencialidade dos dados pessoais dos
menores em causa. Desta forma, a divulgação destes dados é restrita,
respeitando a legislação nacional referente à protecção de dados pessoais,
particularmente a Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro”.
A situação identificada de menores desacompanhados é a que resulta de casos de
recusa da entrada, nos termos previstos pela legislação nacional que enquadra o
regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros de
território nacional. A decisão de recusa de entrada tem como pressuposto a
avaliação da existência de risco no retorno ao país de origem, conforme
consagrado no Código Europeu dos Direitos Fundamentais e na legislação nacional
sobre o asilo (Lei n.º 27/2008, de 30 de junho).
Neste contexto destacam-se as recusas de entrada a menores nacionais do Brasil.
“Em termos globais, verifica-se que a pressão migratória de menores
desacompanhados para Portugal é predominantemente originária do Brasil” (SEF,
2008: 4). A existência de uma comunidade brasileira sedimentada e de dimensão
significativa (em 2007, os brasileiros eram a comunidade estrangeira mais
representativa em Portugal – 66.354 residentes brasileiros), as relações
históricas e culturais e a existência de uma língua comum poderão estar na
origem da escolha de Portugal como destino a procurar.
As situações de menores desacompanhados que entram no país reportam-se, em boa
parte, a casos de requerentes de asilo. Dos pedidos entrados nos últimos três
anos, a maioria são rapazes, provenientes de países do continente africano,
nomeadamente de países da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental
(Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gambia, Gana, Guiné, Guiné-
Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo) e com idades
compreendidas entre os 16 e os 18 anos.
Neste período, os pedidos de asilo de menores desacompanhados em Portugal nunca
ultrapassou os 7 por ano. No estudo do CPR (2007), tendo por base sete anos de
análise (de 2000 a 2007), foram registados 34 casos de menores desacompanhados
requerentes de asilo, correspondendo a 4,25 casos por ano, em média. Nos anos
2003, 2004 e 2006 não existem pedidos de asilo efetuados por menores.
Relativamente aos menores isolados ou não acompanhados admitidos em Portugal,
estes são, na sua maioria, provenientes de países da África Ocidental,
sobretudo de países que integram a Comunidade Económica dos Estados Africanos
Ocidentais. A necessidade de proteção, decorrente da fuga a situações de
perseguição no país de origem, podendo ou não culminar num pedido de asilo, são
as principais motivações.
Formalmente, o processo de pedido de asilo de menor desacompanhado é semelhante
ao de pedido de asilo comum. A grande diferença no que concerne a esta
população específica é relativa às medidas de acolhimento e integração destes
requerentes de asilo. Em contrapartida, o número escasso de processos em
Portugal permite um acompanhamento muito próximo destes menores, facilitando a
gestão eficiente e a observância dos direitos previstos na lei.
No que se refere às recusas de entrada de menores desacompanhados em postos de
fronteira portugueses entre 2002 e 2008, verifica-se que os anos em que se
registaram mais ocorrências foram os de 2002 (208 recusas) e de 2003 (79
recusas). Em 2004, foi recusada a entrada a 50 menores desacompanhados e, em
2005, a 40 menores, em idênticas circunstâncias. A partir de 2006, os dados
permitem conhecer a origem dos menores desacompanhados alvo de
Tal como em França (aeroporto de Roissy-Charles de Gaulle, Paris), o posto de
fronteira do aeroporto da Portela - Lisboa (PF001) é aquele onde os menores
estrangeiros isolados ou não acompanhados chegam com maior frequência. O número
de menores que requerem asilo na fronteira portuguesa é escasso, inconstante e
diverso em termos de nacionalidades. Estamos, assim, perante um fenómeno
diferente do que se observa em alguns Estados-membros.
Segundo um relatório publicado pelo Alto Comissariado para os Refugiados, em
2004 ( Trends in unaccompained and separated children seeking asylum in
industrialized countries, 2001-2003), 12.800 menores estrangeiros
desacompanhados ou separados apresentaram pedidos de asilo em 28 países, em
2003. Os países mais afetados foram o Reino Unido (2.800), a Áustria (2.050), a
Suíça (1.330), os Países Baixos (1.220), a Alemanha (980) e a Noruega (920).
Estes seis países sozinhos representavam 73% dos pedidos de asilo apresentados
por menores estrangeiros desacompanhados.
Em termos de dados agregados relativos aos anos de 2006, 2007 e 2008, verifica-
se que, neste triénio, apenas 16 menores desacompanhados requereram asilo em
Portugal, sendo que o número de pedidos nunca foi superior a 7 por ano. A
maioria destes pedidos diz respeito a menores desacompanhados do sexo masculino
e com idades entre os 16 e os 18 anos, provenientes do Continente Africano,
nomeadamente de países da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental.
Nenhum menor desacompanhado proveniente de um Estado Membro da UE requereu
asilo em Portugal. Tal como em França, é importante efetuar a avaliação da
idade cronológica da pessoa.
Segundo a CPR (2007: 20), “Em Portugal, os testes utilizados pelo Instituto
Nacional de Medicina Legal, entidade independente externa que, entre outras
funções, estima a idade dos menores requerentes de asilo, são, normalmente, os
Raios X à placa dentária, designadamente, o Método de Haavikkos (ao sexo
masculino, avalia o estádio de formação dos dentes 18, 28, 38 e 48), o Método
de Kullman (ao sexo masculino que avalia o estádio de formação da raiz dos
dentes 38 e 48), o Método de Harris & Nortjèn (sem discriminação por sexo
que avalia o estádio de formação da raiz do dente 38 e 48) e, por último, o
Método de Demirjian (ao sexo masculino, a técnica mais potente que testa os
dentes 41-47)”.
Sobre as condições de receção e medidas de integração dos menores isolados, o
relatório do SEF (2008) sublinha que vários são os atores institucionais
envolvidos no acompanhamento de processos relativos a menores desacompanhados.
Vejamos quais:
* O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), sobretudo no que concerne aos
procedimentos de admissão em território nacional e à receção, admissão e
instrução dos pedidos de asilo;
* O Conselho Português para os Refugiados (CPR), organização não-governamental
que desempenha um papel fundamental na área do asilo e refugiados e, no caso
particular dos menores desacompanhados, no seguimento dos pedidos de asilo,
na representação legal dos seus interesses, no acolhimento e garantia de
aplicação da lei, bem como no acesso aos direitos aí previstos;
* Os Tribunais de Família e Menores, que promovem os direitos de protecção das
crianças e jovens em perigo, o que enquadra os menores desacompanhados por se
encontrarem numa situação de abandono ou entregues a si próprios;
* As Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJRs), compostas
por equipas multidisciplinares que, numa base concelhia, promovem os direitos
da criança e do jovem e acautelam situações suscetíveis de afetar a sua
segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral.
Para além destas, existe um conjunto alargado de entidades de diversa natureza
que concorrem na missão de acolher e proteger menores desacompanhados ou em
situação de risco. Estas entidades cooperam no sentido de garantir o melhor
interesse das crianças, tanto dos menores requerentes de asilo quanto dos
menores estrangeiros desacompanhados em território português.
O CPR é o único espaço, em Portugal, destinado ao alojamento de requerentes de
asilo. Neste centro existe um quarto especificamente destinado a menores
desacompanhados requerentes de asilo. De acordo com a legislação nacional, os
menores desacompanhados, com idade igual ou superior a 16 anos, podem ser
colocados em centros de acolhimento de adultos requerentes de asilo.
Quando admitidos para instrução do pedido de asilo, o SEF emite uma autorização
de residência provisória ao menor requerente, válida pelo período de quatro
meses, contados da data de decisão de admissão do pedido, e renovável por
iguais períodos até decisão final do processo. Finda a instrução, o SEF elabora
uma proposta fundamentada de concessão ou recusa de asilo.
Os menores desacompanhados requerentes poderão beneficiar do estatuto de
refugiado ou de protecção subsidiária, sendo, neste caso, concedida uma
Autorização de Residência por razões humanitárias, válida pelo período de dois
anos, renovável salvo se razões imperativas de segurança nacional ou ordem
pública o impedirem.
Conclusão
Se em França o número de menores estrangeiros isolados ou não acompanhados é
“assustador” ou “dramático”, para utilizarmos a expressão do Presidente do
Conselho Geral do Norte, Bernard Derosier, levando a que os serviços não
consigam dar resposta cabal, em Portugal o número de afluências de menores é
reduzido (e, de entre esses, pouquíssimos os que pedem asilo), sendo possível
um tratamento praticamente personalizado de cada processo. Estas circunstâncias
facilitam um acompanhamento de proximidade e garantem a execução dos apoios
legalmente previstos.
A CPR (2007: 29) recomenda até que “Dada a vulnerabilidade destas crianças é
necessário que um apoio efetivo seja providenciado assim que cheguem ao
aeroporto, evitando a sua ‘retenção'. Com efeito, uma criança que esteja numa
zona internacional de um aeroporto tem que ser admitida de imediato em
território nacional”.
Fácil de enunciar, para quem tem entre 4 e 7 casos por ano, difícil de
concretizar, como vimos pela experiência francesa, que acolhe mais de 7 mil
casos. Essa dificuldade é devida, por um lado, aos avultados gastos
financeiros. Em 2009, o orçamento alocado para as políticas da infância e da
família foi elevado a 400 milhões de euros. O apoio a um menor por dia pode
custar cerca de 200 euros. O orçamento da agência Frontexpassou de 18 a 83
milhões de euros em três anos. A crise económica e financeira, em França e na
Europa, traduz-se numa recessão terrível. E, nestes períodos, os responsáveis
dos Estados privilegiam o encerramento da liberdade e da generosidade.
Por outro lado, temos a ausência de estruturas adequadas de alojamento, que não
conseguem acolher todos os pedidos. A ASE, por exemplo, dispõe do poder de dar
abrigo para situações de urgência. Quando um menor isolado estrangeiro corre
perigo imediato (falta de alojamento ou comida), esta entidade pode admitir
imediatamente, mas a título temporário durante 72 horas, ou seja, 3 dias. Para
além deste prazo, os serviços têm que pedir a autoridade judicial (Procurador
da República ou Juiz do Tribunal de Menores).
São vários os técnicos, educadores e assistentes sociais da ASE, em Paris, que
têm a seu cargo, em média, 35 menores para “gerir”, ou seja, que é preciso
acompanhar em termos de alojamento (provisório ou perene), saúde, educação,
integração na sociedade francesa, etc. Os serviços públicos e associativos
estão a “rebentar pelas costuras” de trabalho. Um técnico da FTDA, em
entrevista, sublinhava que “fazemos o que podemos, com os meios que nos são
dados, sendo que esta situação não poderá continuar por muito mais tempo”. Mas
a verdade é que ela se mantém e vai-se agravando, pois todos os dias chegam
menores ao território francês.
Myriam El Khomri, adjunta do Presidente da Câmara Municipal de Paris e
encarregada da Proteção da Infância, referia, nas primeiras jornadas europeias
sobre menores isolados estrangeiros, em dezembro de 2009, que:
“Com efeito, entre os anos 2008 e 2009, nós tínhamos registado um
aumento de 60% de chegadas de menores na grande Paris. No total,
faltava em Paris 900 locais de alojamento para os adolescentes
(franceses e estrangeiros). É, por isso, difícil tornar operacional
os serviços e o sector associativo, tal como a ASE, está
sobrelotado.”
Ou seja, uma “batata quente”. Os técnicos, que lidam diariamente com esta
realidade, julgam que os menores são enviados de estrutura em estrutura, entre
um enorme e complexo vai e vem entre o tribunal e os serviços de administração
pública, a distribuição de refeições, kitsde higiene, senhas de refeição,
bilhetes de transporte, idas ao médico, etc., ou seja, um sentimento de
impotência e um dispêndio enorme de energia para escassos resultados no final.
Os menores desacompanhados só podem ser repatriados para o seu país de origem
ou para um país terceiro que esteja disponível para o seu acolhimento se, à
chegada, lhes forem assegurados o acolhimento e a assistência adequados. Na
prática, as autoridades, quer francesas, quer portuguesas competentes nesta
matéria, só fazem retornar um menor não acompanhado se existir a garantia de
assistência, à chegada, de um adulto responsável, nomeadamente um dos
progenitores. Os menores nacionais de países terceiros não podem ser alvo de um
processo de afastamento coercivo do país. Porém, não está excluída a
possibilidade de recurso ao regresso voluntário.
De mencionar ainda, no âmbito do quadro legal do asilo, a proibição de expulsar
ou repelir para territórios onde a liberdade do requerente de asilo fique em
risco, que por qualquer das causas possam constituir fundamento para a
concessão de asilo ou de qualquer forma violem a proibição de expulsar e de
repelir (princípio de non- refoulement), em conformidade com as obrigações
internacionais. Igualmente ninguém será devolvido, afastado, extraditado ou
expulso para um país onde seja submetido a torturas ou a tratamentos cruéis ou
degradantes.
O interesse superior do menor deve ser tido em conta, mas, muitas vezes, ele
não é respeitado. Em França, vários exemplos podem ser dados a este nível. Como
os serviços de proteção dos menores estão sobrecarregados, passam-se meses sem
serem recebidos em entrevista. Por vezes, são enviados para vários
estabelecimentos sem fazer qualquer visita de pré-admissão e sem ter em conta
as suas vontades de fazerem determinada formação.
Existe também uma enorme falta de lugares em centros educativos, sobretudo em
Paris, onde a crise de alojamento se faz sentir há muitos anos, e a seleção dos
candidatos impera (formalmente e informalmente). Quando os menores estão
próximos da maioridade (18 anos), muitos estabelecimentos educativos ou
profissionais não os aceitam. Se não têm documentos em ordem (cartão de
identidade, passaporte) e se se prevê demora na obtenção dos mesmos, não são
aceites. Existe igualmente uma triagem ao nível da seleção dos menores, com
base numa presunção de comportamento. Se são provenientes de determinados
países, como o Bangladesh, por exemplo, são aceites, pois parte-se do princípio
de que são cordiais, respeitadores das regras e, por isso, não irão criar
problemas ao nível da segurança e indisciplina. Se são africanos, muitos
estabelecimentos não os aceitam, pois parte-se do princípio que são agressivos,
que ofendem os educadores e, por vezes, destroem os espaços e o material quando
os conflitos físicos surgem. As dificuldades são também ao nível da obtenção
dos documentos de identidade, pois os funcionamentos das embaixadas e
consulados são muito díspares.
Tratando-se de menores isolados, não acompanhados ou “separados” estrangeiros
parece-nos que deveriam existir várias prioridades. Entre outras, salientamos:
um maior respeito do direito à informação (nomeadamente sobre o direito de
asilo) e das declarações dos menores; uma promoção de esforços de uma protecção
imediata; uma avaliação da idade que respeite a criança, de acordo com as
recomendações do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR);
uma igualdade de direitos; e um acesso à escolaridade e à formação
profissional, por exemplo, elementos fundamentais para a construção do seu
projeto de vida.