Recensão crítica da obra
RECENSÃO
Recensão crítica da obra
De l'artification. Enquêtes sur le passage à l'art
Natália Azevedo 2
Universidade do Porto
De l'artification. Enquêtes sur le passage à l'art é o volume 20 da coleção
“Cas de figure”, organizado pelas sociólogas Nathalie Heinich e Roberta
Shapiro, e centra-se na análise do conceito de artification e na discussão das
suas virtualidades e tensões quando aplicado ao estudo do mundo da(s) arte(s).
Enquadra-se numa coleção que procura desenhar uma relação possível entre as
ciências sociais, no caso a sociologia, e o espaço público, quer quanto aos
modos de diagnóstico da realidade social contemporânea, quer quanto à síntese
refletida sobre os instrumentos operatórios de leitura e intervenção nos
espaços sociais. Como se refere na sua apresentação, La science sociale sort de
son laboratoire pour reconquérir sa place dans l'espace public1.
O volume de 336 páginas que aqui se apresenta, sob um formato quase de bolso,
integra o contributo teórico-empírico de diferentes autores e sob olhares
direcionados para objetos peculiares do mundo da(s) arte(s). Para além dos
sempre necessários índices de autores e remissivo, que dimensionam a vertente
pedagógica da própria publicação, o volume tematiza um conjunto significativo
de objetos, atores e contextos artísticos. Propõe-nos uma circulação entre a
dança hip-hope a fotografia, o circo e a magia, a arte naïfe a arte bruta, a
banda desenhada e o património, o cinema e o teatro, a moda e a “arte sacra”, o
grafittie o artesanato, entre alguns outros. Fá-lo como forma de dar respostas
à questão: o que é a arte?, ou de modo mais adequado às preocupações dos
autores, quando e como é que algo se torna arte?. Numa primeira aproximação ao
conceito, artification (neologismo que numa tradução literal significa
artificação) é o processo pelo qual práticas sociais e culturais do quotidiano
se transformam em arte(s); é o processo de fabricaçãodo objeto artístico. Tais
interrogações têm um lugar central na contemporaneidade das políticas culturais
de iniciativa pública (locais, regionais e centrais) das democracias europeias,
na relação direta com vetores tensos e dinâmicos como cultura/artes/
democratização cultural ou sociedade/poder político/economia da cultura e
dasartes.
A organização formal do livro obedece a um modelo transversal, onde deambulam
olhares da antropologia da arte, da história cultural e da sociologia
pragmática. Expõem-se casos empíricos de passagem de não artes a artes,
ressalvando- se os contextos de emergência e as condições que as sustentam
enquanto artes - onze estudos originais (Enquêtes); e ensaiam-se exercícios de
generalização de propostas de leitura da produção/criação artística no contexto
francês e europeu - cinco sugestões de síntese (États de lieux). O livro traduz
um esforço de consolidação das possibilidades de objeto e de prática
metodológica da sociologia da arte que, na sua trajetória histórica, oscilou
entre a heteronomia e a autonomia da obra de arte como efeito direto das
disciplinas que estiveram na sua origem (a estética, a história da arte e a
sociologia). Hoje, no cruzamento dos vértices da criação, receção, mediação e
(definição) da obra de arte, a sociologia da arte tende a situar-se como uma
sociologia das artes, na pluralidade teórico-metodológica dos seus pontos de
partida e de chegada.
O livro faz uma clarificação operacional do conceito de artificationno contexto
das sociedades marcadas pela globalização cultural e artística. Os autores
entendem-no como um processo de transformação da não-arte em arte que entraîne
un déplacement durable de la frontière entre arte et non-art, et non pas
d'abord une élévation sur l'échelle hiérarchique interne aux différents
domaines artistiques (2012: 20). Situam-se fora da perspetiva de classificaçãoe
de legitimaçãodos fenómenos artísticos, assumem a deslocação e relativização
das fronteiras entre categorias artísticas e tornam visíveis novas formas de
arte. Por outro lado, e face ao contexto contemporâneo da extensão e
visibilidade quotidianas das atividades artísticas (com o alargamento do número
de artistas, dos públicos e dos mercados das artes e da cultura), esta
evidência empírica desenha um duplo processo: o alargamento das chamadas “artes
estabelecidas” e o consubstanciar de “novas formas de arte”, quer nos espaços
convencionais de criação/receção, quer no espaço público e na sobreposição
entre diversos lugares da criação/mediação/receção artísticas.
De l'artification perspetiva as ações dos sujeitos, os sentidos que dão às suas
ações e os efeitos que têm sobre as suas práticas. De cariz etnográfico, e numa
relação estreita com a materialidade das ações quotidianas (sob suporte
analítico de uma sociologia pragmática), a dimensão processual da análise cruza
uma antropologia da arte com uma inscrição microssociológica dos atributos
formais e semânticos dos objetos artísticos, sem obliterar a presença
necessária de uma sociologia de cariz institucional (as instituições da cultura
e das artes do mundo ocidental). Concentra-se a atenção sobre as ações (e não
apenas sobre os discursos das ações) observadas (e não apenas narradas ou
reconstituídas) em situações reais do mundo cultural e artístico.
Nesse sentido, os autores propõem um afastamento (apenas temporário, do nosso
ponto de vista) quanto às propostas meso-sociais, assentes em análises dos
factos externos ao ato criativo: abordam os conteúdos e o valor da obra de
arte, os quadros institucionais e organizacionais da produção, receção e
distribuição das obras de arte segundo pressupostos externos, lógicas de campo
e convenções instituídas. Isto é, a arte como produto das estruturas e atores
institucionais, que criam as barreiras culturais e as hierarquias artísticas.
Ao domínio do paradigma da classificação e da legitimaçãoe, como tal, do
interesse pela operação semântica do campo artístico, sugere-se a descrição
sistemática e necessária das situações e dos atores criadores, prévia a esse
esforço institucional da classificação hierarquizada dos modos de arte.
Por via da artification, é possível compreender a génese dos objetos artísticos
e as condições da sua existência, com base numa teoria da ação dos sujeitos. Ao
paradigma da avaliação, que faz parte do mundo da arte, contrapõe-se o
paradigma da identificaçãodo mundo artístico na sua origem e existência
processual. Assume-se a diferença entre qualificação (identificação)e
legitimação (avaliação)dos objetos artísticos, ainda que entre ambas haja uma
relação causal circular. Num primeiro momento, os objetos são designados com
base em processos concorrentes de descrição porque diferentes atores o fazem;
num segundo momento, são alvo de avaliações positivas ou negativas, legitimadas
ou não legitimadas, no quadro do mundo da(s) arte(s). Não se define a
prioriaquilo que é uma obra de arte ou um artista, mas induzem-se as suas
propriedades efetivas. Para o efeito, os autores constroem indicadores –
marcadores observacionais– que vão desde a análise dos domínios/setores
artísticos e dos atores sociais (criadores, mediadores, mercados, públicos),
passando pelos resultados (duráveis e em curso) e pelos efeitos da artification
(como, por exemplo, legitimação e autonomização das práticas, esteticização e
autentificação das obras, entre outros), até às abordagens terminológica,
jurídica, cognitiva, institucional ou estética, para citar apenas alguns, do
processo em si.
A arte é o resultado de processos sociais, datados e situados, e não um
corpusde objetos definidos uma única vez e por todos os que representam
instituições e disciplinas consagradas. É uma proposta in progress,
contraditória e tensa. A pluralidade dos sentidos dados àquilo que se entende
como artes constitui, nesse esforço disciplinar, a virtualidade por excelência
de uma sociologia das artes que se afirma enquanto tal. Este “Cas de figure” é
um contributo a cruzar com os demais já existentes.