Sobre a justiça no comércio e as escolhas morais de consumo: o caso dos
consumidores de Comércio Justo
Introdução
O Comércio Justo (CJ) pode definir-se, em traços gerais, como um movimento
social que visa promover formas de desenvolvimento e de consumo sustentáveis
assentes na melhoria da qualidade de vida dos pequenos produtores dos países do
hemisfério Sul, através da atividade comercial. Nesta medida, o CJ é também uma
forma comercial alternativa que valoriza as condições sociais de produção,
distribuição e consumo. Em Portugal, o CJ é uma realidade recente, que conta
com dezasseis anos de existência (a primeira loja de CJ portuguesa abriu em
1999, em Amarante). Numa investigação empírica acerca dos consumidores de CJ em
Portugal, procurámos avaliar o potencial desta modalidade comercial, neste
país, enquanto ação de subversão das lógicas hegemónicas de distribuição, e
determinar se o movimento existe nas interações quotidianas e nas consciências
dos atores, ou se, por outro lado, o ato de compra surge dissociado dos
movimentos de contestação aos desequilíbrios gerados pelo mercado convencional,
seguindo critérios de escolha tradicionais.
Como refere Marta Vilar Rosales, o fenómeno do consumo é central na atualidade,
e essa centralidade resulta, em parte, da “apreciação do processo de uso de
‘bens e serviços' enquanto processo complexo, fundamentando a necessidade do
questionamento das suas funções e propósitos” (Rosales, 2006: 82). Seguindo
esta linha de raciocínio, procuramos, neste artigo, questionar a motivação dos
consumidores para aderirem aos produtos de CJ. A conceção de que as práticas de
consumo associadas ao CJ representam um ato de justiça é debatida na literatura
existente sobre o tema, conforme daremos conta neste artigo, no qual refletimos
sobre diversas contendas associadas às práticas de consumo e que nos
possibilitaram compreender as escolhas dos consumidores de CJ em Portugal: a
prática do consumo é um ato simplesmente individual ou é um ato coletivo que se
reveste de signos distintivos associados à expressão de convicções sociais?
Estarão presentes, nas intenções de compra de produtos de CJ, questões como a
responsabilidade social ou o respeito pelos direitos humanos? Poderá ser esta
uma forma de consumo a que subjazem razões morais?
Na pesquisa efetuada1 mobilizámos técnicas metodológicas de cariz qualitativo e
quantitativo. De modo a compreendermos as circunstâncias em que o CJ é
divulgado no nosso país realizámos quatro entrevistas semidiretivas a
dirigentes e a duas colaboradoras remuneradas destas organizações. Para
conhecermos os critérios que subjazem às motivações para a aquisição de
produtos de CJ aplicámos um inquérito por questionário a 300 consumidores de CJ
em Portugal, nas lojas de CJ do Porto, Amarante, Braga e Lisboa, e também
disseminámos o inquérito online, através das mailing listsdas organizações
portuguesas de promoção de CJ. Entrevistámos, posteriormente, nove destes
consumidores, e, com base nessas nove entrevistas biográficas, esboçamos o
retrato sociológico desses consumidores.
Como demonstraremos neste artigo, a análise estatística dos dados recolhidos
através da aplicação do inquérito por questionário revelou que as razões que
conduzem os consumidores ao CJ são plurais: o consumo de produtos de CJ pode
expressar preferências individuais que concernem não só ao gostodo indivíduo
pelos produtos, à sua qualidadee exotismo, mas também pode resultar da
influência que os valores moraisdos indivíduos têm nas suas práticas de
consumo.
1. O consumidor responsávele a sociedade de consumo
A reflexão sobre a miríade de razões que conduziram à emergência do consumo
como uma dimensão sociológica é vasta e remonta aos clássicos da Sociologia.
Efetivamente, a atenção prestada por Karl Marx às mercadorias já reserva um
espaço ao consumo, na medida em que a perspetiva de que tudo é passível de ser
transformado em mercadoria pressupõe o seu consumo. Thorstein Veblen, na sua
obra The Theory of the Leisure Class(Veblen, 1974), efetuou uma abordagem
pioneira no estudo do consumo, associando-o a formas de distinção social. A sua
análise incidiu sobre as práticas de consumo de um grupo social específico, a
classe de lazer, que recorria ao consumo exagerado de bens materiais como forma
de ostentar a sua superioridade económica e social. O autor designou esse
conjunto de práticas de consumo exacerbado como consumo conspícuo. Pierre
Bourdieu analisou as práticas de consumo como forma de distinção social em “La
Distinction” (Bourdieu, 1979). Refutando uma visão economicista, o autor
operacionalizou os conceitos de capital cultural, capital económico, capital
simbólicoe capital socialpara incrementar a sua teoria de que o lugar de classe
do indivíduo não é unicamente definido pelos recursos económicos que este
detém, mas pela conjugação do volume de todos os tipos de capital. A
diferenciação na distribuição dos capitais pelas classes sociais traduz-se numa
capacidade distinta de apropriação e aquisição dos bens de consumo, o que se
reflete numa participação distinta na cultura de consumo de massas.
O consumo massificado ocorre numa sociedade caracterizada pela produção em
série de bens, pela massificação da cultura, disseminação de novos ethos e
hexis, e homogeneizadora de estilos de vida e de gostos. De acordo com Jean
Baudrillard, “a sociedade de consumo é a universalidade do fait diversna
comunicação de massa” (1995:24). O autor defende que este modelo de sociedade
detém uma ideologia que projeta a imagem, o bem-estar e as necessidades, e
dissimula as desigualdades sociais. A vida quotidiana aparenta, portanto, ser
indissociável do consumo.
Por seu turno, Mike Featherstone (1995) afirma que estamos perante uma
sociedade marcada por uma nova lógica cultural de fruição, assinalada pela
permanente aquisição de bens e pelo surgimento massivo de novos produtos e
estilos: a sociedade de consumo. Já para Gilles Lipovetsky (1989), a
transformação dos estilos de vida, motivada pelo incitamento ao consumo
generalizado e desenfreado, promoveu o desenvolvimento dos direitos e desejos
individuais. O autor sustenta que “o processo de personalização impulsionado
pela aceleração das técnicas, pela gestão, pelo consumo de massas, pelos media,
pelos desenvolvimentos da ideologia individualista, pelo psicologismo, leva ao
seu ponto culminante o reino do indivíduo” (Lipovetsky, 1989: 24), reportando-
se, deste modo, ao predomínio do individualismo nas sociedades hodiernas.
Num cenário em que a “desafectação política” (Viegas, 2004: 1) é preponderante,
sendo particularmente visíveis os sinais de que a população se encontra
alienada face ao poder político, a ligação às práticas consumistas impera: a
ida aos shoppingstem assumido contornos ritualistas, consagrados em visitas
regulares a estes templos do consumo. Em plena época consumista, as formas
alternativas de consumo, como o consumo responsável, alter consumoou
consumerismorefletem atitudes e comportamentos de um padrão de consumidor
informado e consciente da sua ação e papel na sociedade, e reações de cariz
interventivo na sociedade de massas, em que o consumo surge como um processo
predominantemente cultural, que combina procedimentos materiais e
representações simbólicas, sendo uma atividade geradora de sentidos.
A noção de consumo responsávelsurge como um procedimento de intervenção, uma
forma de expressão de cidadania que espelha o que cada indivíduo pode fazer
para melhorar o mundo em que vive, através das suas ações quotidianas (Coelho e
Neto: 2011). Este conceito afigura-se como uma proposta alternativa ao atual
modelo de desenvolvimento e de consumo, que cria assimetrias, promove
desigualdades e acentua a falta de solidariedade.
O CJ é um modelo comercial alternativo que procura sensibilizar a opinião
pública para várias questões ligadas ao consumo, nomeadamente a necessidade de
se repensarem as práticas de consumo, tendo em conta a insustentabilidade
ambiental do atual modelo produtivo e de consumo, que exaure os recursos
naturais. Nesta medida, o CJ é uma forma de consumo responsável que procura
formar consumidores mais reflexivos e conscientes de que as suas práticas de
consumo têm impacto ambiental e social.
As desigualdades entre o Norte e o Sul geopolítico não têm cessado de se
agravar nas últimas décadas, e a prática do comércio internacional sublinha
este cenário. A pobreza extrema caracteriza os países do Sul do hemisfério. De
acordo com Boaventura Sousa Santos (2005: 23), vivemos, atualmente, numa
“desordem capitalista global”. O CJ surge como um mecanismo de regulação do
mercado que almeja melhorar a vida dos pequenos produtores dos países em
desenvolvimento (Nicholls e Opal, 2005: 5). A rede do CJ é formada por um
conjunto de ONGs, cooperativas e associações sem fins lucrativos que tentam
aproximar os camponeses e artesãos do Sul do mundo dos consumidores do Norte
através de uma parceria comercial que se rege por regras e princípios (Fridell,
2007: 23) que enfatizam os valores morais e sociais, como a justiça social, a
proteção ambiental, a igualdade de género, a equidade social, em detrimento dos
valores tipicamente associados à racionalidade económica, como a
instrumentalização de meios para atingir fins económicos e a acumulação
incessante de lucro.
O CJ estabelece regras comerciais que têm em conta desequilíbrios entre países
ricos e países pobres, e através dessas regras procura reequilibrar essas
assimetrias. Esta iniciativa comercial coloca a produção e o comércio ao
serviço das pessoas, e tem como fito provar que os benefícios económicos,
direitos dos trabalhadores e respeito pelo meio ambiente não se excluem
mutuamente, não são realidades incompatíveis. Para que tal se concretize, o CJ
alerta os consumidores para os efeitos nefastos do comércio internacional sobre
os produtores, para que os consumidores exerçam o seu poder de compra de um
modo consciente e responsável. Esta educação e sensibilização dos consumidores
materializa-se na realização de campanhas sobre a necessidade de alterar as
regras e a prática do comércio internacional convencional. A formação e a
informação da opinião pública constituem um aspeto primordial na atuação do CJ,
sendo um pilar para a expansão deste movimento. Mas será que a atuação do CJ
tem repercussões ao nível das escolhas de consumo?
2. Haverá justiçano comércio e escolhas moraisnas práticas de consumo?
No entender de Adam Smith (1982 (1759)), a justiça é uma condição
imprescindível para a vida em sociedade. Para este autor, a justiça prevalece
nas relações interpessoais nas quais o potencial de cada pessoa para prejudicar
outra é eliminado, na medida em que a imaginação de cada indivíduo cria uma
situação de simpatia mútua. Matthew Watson (2007) argumenta que o consumo de
produtos de CJ constitui, à luz da teoria de Smith, um ato moral, dado que
envolve uma resposta, por parte dos consumidores, a campanhas perpetradas pelas
organizações que apelam à sensibilidade moral, através da estimulação das suas
capacidades imaginativas, embora, segundo o autor, essas práticas de consumo
não reflitam um ato moral de justiça, quando analisadas sob a perspetiva de
Smith. A estrutura do CJ insta a que os consumidores do Hemisfério Norte sintam
simpatia pelos pequenos produtores do Hemisfério Sul, mas, segundo Watson
(2007), não cria meios que propiciem a que essa simpatia seja mútua. Deste
modo, o autor conclui que, na visão smithiana, as práticas de consumo de CJ são
uma conduta de beneficência, e não um ato de justiça. Estas práticas repousam
na virtude privadade cada consumidor, e não numa ideia de dever público. Não
obstante, Watson (2007) sustenta que a noção que as organizações de CJ
propagam, de que comprar um produto de CJ é exercer um ato de justiça, é
fundamental para a dinâmica das suas campanhas. Para este autor, o consumo de
produtos de CJ expressa a intenção dos consumidores em demonstrar
“solidariedade para com os produtores do Terceiro Mundo” (Watson, 2007: 264).
Nesta medida, o CJ é não só uma forma de consumo alternativa, mas também um
assunto que concerne à política internacional, cuja premissa base é a de que “a
dimensão moral das trocas comerciais ultrapassa as fronteiras nacionais”
(Watson , 2007: 264).
De acordo com os resultados do inquérito levado a cabo por Shaw e Shiu (2002),
a compra de produtos de CJ é uma decisão consciente. A questão que se coloca é
por que razão algumas pessoas adquirem produtos de CJ, e outras que com elas
partilham as mesmas características sociais não o fazem. Watson (2007) advoga
que mais do que seguir princípios morais gerais inerentes a uma sociedade,
adquirir produtos de CJ é uma decisão baseada numa moral particular específica
de cada indivíduo. Tendo esta premissa como ponto de partida, indagamos que
razões levam os consumidores, em Portugal, a escolherem produtos de CJ. Serão,
conforme avançam Shaw e Shiu (2002), escolhas morais? A opção por produtos
justosé movida apenas por valores morais ou também por critérios instrumentais?
Quais são as motivações destes consumidores? Os dados recolhidos através da
aplicação do inquérito por questionário permitiram-nos chegar a algumas
conclusões, que apresentamos nos pontos seguintes.
3. Os consumidores e os valores: rumo a um consumo ético?
A teoria de Adam Smith reveste-se de uma importância peculiar para analisarmos
as práticas de consumo de CJ, uma vez que a teoria moral dos sentimentos que o
autor preconiza destina-se, precisamente, à compreensão da éticanuma sociedade
de mercado.
Para Smith (1982 (1759)), uma ação moral não pode ser compreendida sem que
previamente se identifique a natureza da virtude que influenciou essa ação.
Adam Smith (1982 (1759)) entende que uma ação não se resume à sua execução, há
uma reflexão que a precede. O autor sustenta, de igual modo, que o sistema
moral se baseia na observação das interações quotidianas. A conduta moral
deriva das relações sociais que os indivíduos estabelecem com os restantes
membros da sociedade em que vivem. A moral forma-se como uma espécie de
ambiente que cinge os indivíduos, assumindo-se como uma realidade natural que
afeta e explica o comportamento. Smith reporta-se a um “efeito de espelho”: o
indivíduo constitui-se como ser humano apenas quando se encontra na presença de
outros indivíduos, uma vez que é pela observação das respostas dos nossos
interlocutores às nossas ações que tomamos consciência da nossa moralidade.
Watson (2007: 270) admite que o objetivo principal dos preconizadores de CJ
passa por persuadir os consumidores a usarem as suas compras como um meio para
exprimirem a sua discordância perante um sistema de trocas comerciais mundial
que penaliza os produtores do Terceiro Mundo. O autor credencia que as compras
“justas” constituem mais do que uma forma de assinalar o statussocial dos seus
consumidores.
O CJ é operacionalizado, na sua forma tradicionale dominante(Vivas, 2011), isto
é, uma iniciativa mais concentrada no potencial comercial do CJ, de acordo com
as estruturas do mercado, o que reforça o domínio desse mercado. Segundo Watson
(2007:271), os promotores do CJ procuram desafiar os mecanismos tradicionais de
compra, que assentam num padrão de consumo baseado em três pilares: procura,
aprovisionamentoe preço. Quando atenta somente a estas características, no ato
de compra, o indivíduo identifica apenas os atributos físicos e económicos do
produto. Watson (2007) considera que para que uma campanha sobre CJ seja bem
sucedida, esta deve procurar permutar a identidade que o consumidor sente em
relação a um determinado produto da sua preferência pela preocupação com as
relações sociais de produção em que os bens que adquire são produzidos. Para
tal, algumas organizações de CJ recorrem à estratégia de tentar que o
consumidor se aproxime do produtor através da imagem. É como se tratasse de um
novo modelo de certificação: vender o rosto, a história. Não há selo de
certificação do CJ, mas prevalecem as imagens, que pretendem estabelecer esta
ligação entre consumidor e produtor através do recurso a registos fotográficos
do processo produtivo, como nos relatou um dirigente de uma organização
portuguesa de promoção de CJ:
“(…) fazemos trabalho fotográfico. As pessoas a produzirem no
trabalho, as condições em que produzem, porque depois também queremos
mostrar isso aos clientes, para eles sentirem que não estão a comprar
um objeto, que estão também ali a possibilitar que vidas se
desenvolvam e mostrar o rosto às pessoas é uma arma poderosa.”
Dirigente de organização de CJ, 30 anos, professor
Em termos práticos, o estabelecimento desta simpatia pelo produtor estabelece-
se no rótulo dos produtos de CJ, conforme constatamos nas nossas visitas às
worldshops(lojas de venda exclusiva de produtos de CJ): muitos dos produtos
contêm, no rótulo, informação sobre os produtores ou cooperativas de produtores
que compuseram aquele artigo, e assim se procura “retirar o véu” ao produtor
que se “esconde” por detrás de cada bem: “(…) cada produto tem uma história,
que geralmente se encontra inscrita no rótulo, onde normalmente consta
informação sobre o produtor ou cooperativa que o criou” (Coelho, 2011: 105).
Watson (2007) chama a atenção para o facto de o consumidor apenas poder criar
empatia com o produtor através da sua capacidade imaginativa, conjeturando
encontrar- se numa situação de interação com o produtor, e não com o produto,
pois na realidade o que acontece é que o consumidor apenas tem acesso à
mercadoria, e não mantém nenhum contacto realcom o produtor. Esta aproximação
entre o produtor e o consumidor proclamada pelas organizações de promoção de CJ
“reside somente na imaginação do consumidor” (Watson, 2007: 271). O autor
explica que estas organizações pretendem, ao dar a conhecer a história de cada
produto e de cada produtor, retirar o produtor do anonimato, “colocando um
rosto e um nome no processo de comércio internacional”.
Low e Davenport (2005: 495) sublinham que o marketingligado ao CJ gira em torno
do slogan“comprar para um mundo melhor”, colocando a tónica no consumo ético,
um:
“conceito sedutor, porque se reporta ao poder transformador da ação e
escolha individual. É também uma mensagem de inclusão – todos os
consumidores podem, através do simples ato de escolher um bem em
detrimento de outro, criar (…) mudança ambiental.”
O consumo éticoé definido por Doane (2001) como a compra de um produto que
respeita determinadas dimensões, como os direitos humanos, as condições de
trabalho ou a proteção ambiental. De Pelsmacker, Driesen e Rayp (2005: 363)
declaram que, de um modo geral, os consumidores éticossentem que têm
responsabilidades perante a sociedade e demonstram-no através das suas escolhas
de consumo. Uma das críticas que se tecem com mais frequência ao consumo ético,
e com a qual tendemos a concordar, concerne ao peso e responsabilidade que
atribui à escolha individual, quando, na verdade, não se trata apenas de um
problema de cariz individual. Assim, não nos parece que colocar o indivíduo
contra as instituições globais, de modo a resolver problemas globais, seja uma
estratégia suficientemente eficaz para mudar a paisagem do comércio
internacional.
Como sublinhou Watson (2007: 285), “Mais do que a ação individual do
consumidor, parece ser a Organização Mundial do Comércio a guardiã da justiça
comercial”. A este respeito, Renard (2003) afirma que as práticas de compra de
CJ se encontram normalmente associadas a condutas dignificantes, que,
independentemente do estilo de vida que o consumidor preconize, podem exprimir
solidariedade para com os produtores que procuram garantir melhores condições
de vida. Mas Watson (2007: 284) alerta que as más condições de vida dos
“produtores do Terceiro Mundo resultam de assimetrias relacionadas com o
sistema comercial internacional, e não da inação do consumidor individual”. O
autor aparenta, assim, afastar-se das conceções que colocam esta
responsabilidade nos consumidores.
3.1. Os consumidores de produtos de Comércio Justo e os seus critérios de
compra
Neto (2014: 7) refere-se às “práticas socialmente responsáveis e éticas” como
“princípios estruturantes da vida social.” José Machado Pais (1998) sustenta
que o significado dos valores não se esgota nas suas propriedades mensuráveis,
na medida em que detêm outras características definidoras. João Ferreira de
Almeida (1990) atribui aos valores determinadas características, como a
universalidade, a preferência, a hierarquia ou a estabilidade. Rokeach (1973)
sublinha a universalidade dos valores: os indivíduos partilham os mesmos
valores, mas hierarquizam-nos consoante os processos de socialização a que são
sujeitos. Neste sentido, a perspetiva de Rokeach vai ao encontro da enunciada
por João Ferreira de Almeida: há valores que são universais, mas os indivíduos
privilegiam uns em detrimento de outros, o que pressupõe a escolha e a
hierarquização dos valores. Já Nicholls (2002) considera que, nos últimos anos,
o consumo deixou de ser autocentrado e passou a ser centrado em valores.
De Pelsmacker, Driesen e Rayp (2005: 364-366) afirmam que o preço, a qualidadee
a marcasão os fatores que mais peso detêm no processo de aquisição de produtos.
Não obstante, os autores declaram que, aparentemente, os valores assinalam um
impacto positivo nos comportamentos de consumo ético. Na nossa pesquisa
procuramos perceber se os critérios de compra dos consumidores, quando adquirem
produtos de CJ, são dominados apenas pelas propriedadesdos produtos, mais
instrumentais e baseadas em critérios económicos, como a qualidadedo produto, o
gosto, o preço, a proximidade geográficade um espaço que os vende, a
originalidadeou exotismoda mercadoria, ou se existem outros critérios inerentes
à escolha, que se situam na esfera dos valorese das ideologias, como, por
exemplo, o facto de estes bens se basearem emcritérios sociais, como o respeito
pelos direitos dos trabalhadores, em critérios ambientais, pela rejeição dos
critérios mercantilistasnormalmente associados à globalização neoliberal, ou
porque o consumidor acredita que ao adquirir produtos de CJ está a fomentar a
relação entre produtor e consumidor.
Ponderamos, igualmente, a possibilidade de os critérios destes consumidores
serem mistos, o que pressupõe que há margem para que, no momento da compra, o
indivíduo atenda quer a critérios instrumentais, quer a critérios de valor
moral. Para tal, pedimos aos inquiridos que indicassem as três principais
razões que os motivam para adquirir produtos de CJ, sem ordem de preferência.
Sempre que os três motivos apontados pelo inquirido não possuíssem idêntica
índole, isto é, não integrassem de forma homogénea três critérios instrumentais
ou três critérios valorativos, classificamo-los como critérios mistos, que nos
permitiram categorizar situações em que dois desses critérios fossem
valorativos, e um fosse instrumental, ou vice-versa.
Se atendermos às motivações para a compra de produtos de CJ, constatamos que a
percentagem de inquiridos que somente atribui importância aos critérios
instrumentaisé residual (2%). Prevalecem os critérios mistos, que combinam
valores com critérios instrumentais (50% da amostra), seguidos de muito perto
pelo contingente de inquiridos que adquire produtos de CJ em função de valores
(48%).
Ronald Inglehart (1997) problematiza a mudança de valores entre as diferentes
gerações. O autor considera que o ponto em que se entrecruzam a sucessão de
gerações e o desenvolvimento económico marca um momento de passagem de valores
relacionados com a segurança e as necessidades económicas, mais associadas a
valores materialistas, para valores pós-materialistas, relacionados com a
realização individual. Os desejos e aspirações individuais sobrepõem-se aos
interesses coletivos. Para Inglehart (1997), existe uma associação robusta
entre este processo de individualização da sociedade e os valores pós-
materialistas.
No que concerne à importância dos valores na sociedade portuguesa, José Machado
Pais (1998) sustenta que o quadro português está pintado com aspetos de cariz
materialista, como a segurança financeira, social e familiar, mas também com
tons pós- materialistas, de que é exemplo a preocupação com valores como a
solidariedade ou a ecologia. O autor salienta que, apesar desta nova propensão
para a orientação em função de valores pós-materialistas, o materialismo é a
tendência dominante no nosso país, e são os mais jovens os preconizadores dos
valores pós-materialistas.
No estudo que realizou sobre os consumidores de produtos oriundos de
agricultura biológica, Mónica Truninger (2010: 67) deu conta de que os dados
existentes indicam que os mais frequentes consumidores de produtos biotêm
idades abaixo dos 49 anos (jovens e indivíduos de meia-idade). Na mesma linha,
os dados apurados na nossa pesquisa indicam que a média de idades dos
consumidores de CJ se situa entre os 31 e os 45 anos, conforme se lê no gráfico
1.
Com efeito, constatamos que, na nossa amostra, os grupos etários e critérios
para a compra variam em sentidos opostos. A instrumentalidadeassociada à compra
tende a amplificar-se à medida que a idade avança. São os mais jovens aqueles
cujo critério para a compra de produtos CJ se circunscreve em torno dos
valores. Acima de 30 anos, os resultados apurados demonstram que os critérios
que conduzem os consumidores em direção aos produtos de CJ são mistos(racional-
valorativos): 54,3% dos inquiridos na faixa dos 31 aos 45 anos privilegiam
estes critérios, e o mesmo sucede em 57,5%, a partir dos 46 anos. No que
concerne à compra motivada por valoresa percentagem é de 38,4% na faixa etária
dos 46 ou mais anos, de 44,3% nos consumidores com idades situadas entre os 31
e os 45 anos, e há uma maior concentração da compra motivada por valores em
jovens até aos 30 anos (62,3%).
Doran (2009: 559) concluiu, num estudo que levou a cabo sobre o papel dos
valores no consumo de produtos CJ nos E.U.A., que os consumidores mais jovens
não revelam comportamentos de consumo mais éticos do que os mais velhos. Para
sustentar esta constatação, a autora aponta como possível explicação a de os
“produtos éticos já não se encontrarem restritos a nichos de mercado dominados
por consumidores jovens, e estarem disponíveis nos canais de distribuição
mainstream.” Em Portugal, a realidade da distribuição dos produtos de CJ é
substancialmente diferente. Estes produtos são praticamente inexistentes nas
prateleiras dos supermercados, e vendem-se, maioritariamente, nas worldshops,
em lojas de produtos bio, em restaurantes e bares associados a práticas de
alimentação vegetarianas, o que acentua a tendência para os consumidores desta
forma de comércio alternativa se centrarem num segmento de mercado específico,
o que não coincide com a explicação avançada por Doran (2009) e indicia alguns
traços de singularidade da condição portuguesa.
A evolução dos níveis de escolaridade é uma dimensão crucial para
compreendermos a recomposição da estrutura social portuguesa que sucedeu nas
últimas décadas. Raquel Ribeiro (2011: 40) enfatiza a melhoria dos indicadores
relativos à educação da população portuguesa: forte diminuição do analfabetismo
entre os jovens, aumento significativo do contingente de estudantes nos níveis
de ensino secundário e superior, e o aumento da presença das mulheres no ensino
superior. Litrell e Dickson (1999) constataram que os compradores de produtos
étnicos oriundos de CJ partilhavam características sociodemográficas
homogéneas: possuem níveis de educação elevados (mais do que 12 anos de
escolaridade), e são, na sua maioria, mulheres caucasianas e cuja idade ronda
os 40 anos. De Pelsmacker, Driesen e Rayp (2005) averiguaram que o consumidor
justobelga detém níveis de educação superior, usufrui de rendimentos
relativamente elevados e detém elevado statussocial. Será que idêntica situação
se verifica em Portugal? Atentemos ao que nos diz a evidência empírica.
No âmbito dos consumidores justosque integram a nossa amostra, ao nível das
habilitações académicas, esta tendência é notória: imperam os graus de ensino
ligados aos diferentes níveis do ensino superior: 51% dos inquiridos são
licenciados, 5,4% têm um bacharelato, 15,5% são mestres, 9,8% detêm o grau de
doutor ou de pós-doutorado, o que significa que 81,7% dos inquiridos detêm
formação académica ao nível do ensino superior. O ensino secundário é uma
característica de 15,2% dos inquiridos, sendo residuais aqueles que somente
completaram o ensino básico (3%).
É de realçar, ainda, que entre os inquiridos não encontramos nenhum caso de
analfabetismo. Os consumidores justosrevelam, assim, elevados volumes de
capital escolar.
Cruzando esta variável com os critérios de compra de produtos de CJ verificamos
que a compra mistaprevalece nos consumidores com habilitações de ensino básico
e secundário, com maior incidência nos que completaram apenas o ensino básico.
A compra por valoresassume maior preponderância nos consumidores com
habilitações superiores, assumindo maior incidência nos detentores de mestrado,
doutoramento ou pós-doutoramento.
Tendo em conta que estes consumidores se posicionam socialmente nas elites
culturais, como vimos anteriormente, analisamos, de igual modo, a tipologia
profissional destes consumidores. Concluímos que estes consumidores se situam,
sobretudo, nos lugares de classe de dirigentes e profissionais liberais e nos
profissionais técnicos e de enquadramento. Constatamos que sobressaem os
Profissionais Técnicos e de Enquadramento (PTE), que constituem a maioria dos
inquiridos (68%). Os Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais (EDL)
formam 19,8% da amostra, e os Empregados Executantes (EE) afiguram-se como o
grupo com menor expressividade na amostra (12,2%) 2 . Estas características
estruturais evidenciam, deste modo, que a distinçãoinerente ao consumo de
produtos justosnão reside somente em razões de caráter moral, mas que se
inscrevem, igualmente, nas condições materiais de existência deste segmento da
população: os consumidores de CJ, em Portugal, são altamente escolarizados e
desempenham profissões qualificadas.
4. As motivaçõespara a aquisição de produtos de Comércio Justo
Como constatámos anteriormente, Ronald Inglehart (1997) efetua uma distinção
entre valores materialistase valores pós-materialistas, que decorre de uma
análise acerca dos processos de mudança inerentes às dinâmicas de construção
social de sistemas de valores nas sociedades de capitalismo avançado. De acordo
com a perspetiva deste autor, estamos perante uma fase de mudança de paradigma
que envolve um processo de transição entre um período em que vigoravam e
prevaleciam valores que remetem para o bem-estar físico e para a segurança,
para uma época em que os valores se situam no âmbito da autorrealização,
autoexpressão, pertença, envolvimento, participação e qualidade de vida. Os
valores pós-materialistasorientam-se no sentido da expressão pessoal, em
detrimento dos valores económicos e dos valores materiais. Se atendermos a esta
classificação de valores de Inglehart, constatamos que, como reforça Neto
(2014:13), “as motivações que sustentam as condutas socialmente responsáveis e
éticas são, essencialmente, de natureza pós-materialista.” Bondy e Talwar
(2011: 365) referem que:
“estudos demonstram que o comportamento dos consumidores de CJ não
são unicamente determinados por critérios motivados pelo seu próprio
interesse, como o preço, conveniência e qualidade, são também
derivados de considerações éticas”.
No que concerne aos critérios relacionados com os valores morais atestámos, ao
analisar os dados obtidos através da aplicação de inquérito por questionário,
que os critérios sociais, assentes no respeito pelos direitos dos
trabalhadores, uma das bandeiras do CJ, são referidos por 50,7% dos inquiridos,
conforme é visível no quadro_2, sendo os critérios mais referenciados, e que
assentam em valores pós-materialistas.
A compra de produtos de CJ por conhecerem e acreditarem nos valores defendidos
pelo movimentoé mencionada por 40,7% da amostra.Arejeição dos critérios
mercantilistas normalmente associados à globalização neoliberalé valorizada por
11,3% dos inquiridos, e 18, 3% dosconsumidores justospreferem estes produtos
porque acreditam que ao adquirir produtos de CJ estão a contribuir para a
diminuição das desigualdades entre os hemisférios Norte e Sul, o que vai ao
encontro da fundamentação de Steinrücken e Jaenichen (2007), que argumentam que
a maior razão para a compra de café de CJ é o desejo que os consumidores têm de
ajudar outras pessoas.
Como vimos, o consumo responsávelé uma forma de consumo que se entrelaça com
alguns dos critérios que mobilizam o CJ. Sublinhe-se que 14,7% dos nossos
inquiridos revelam que uma das razões que os impelem à compra de produtos
oriundos deste movimento é a de se assumirem como consumidores responsáveis.
A ajuda aos pequenos produtores, um dos motores de arranque do CJ, é uma
motivação para a compra destes produtos por parte de 23,3% destesconsumidores
justos, ao passo que 12% adiantam que o fazem porque acreditam que estão a
combater o trabalho infantil e a discriminação contra as mulheres.
O fomento da relação entre produtor e consumidoré uma das ideias-chave do
movimento do CJ. Contudo, este fator não é preponderante na decisão de compra
dos consumidores de CJ em Portugal, sendo referido apenas por 9% dos inquiridos
que integraram a nossa amostra.
Para Pierre Bourdieu (1989), as práticas de consumo são sempre distintivas. A
legitimidade dessa distinção radica no reconhecimento da singularidade. O autor
sustenta que “os consumidores defendem a sua raridade defendendo a raridade dos
produtos que consomem, ou a maneira de os consumir.” (Bourdieu, 2003: 179).
Bhate e Lawler (1997) sustentam que os consumidores éticosgostam de adquirir
produtos inovadores. A análise estatística dos dados que recolhemos permitiu-
nos concluir que 4,3% dos inquiridos valorizam a originalidadedos produtos de
CJ. O exotismodos produtos foi referido por 10,3% dos inquiridos, o que nos
permite concluir que, apesar de a originalidade e o exotismo não constituírem
uma motivação primacial para a compra na generalidade da amostra, são fatores
que pesam na escolha de uma pequena parte destes consumidores. Uma fatia dos
consumidores justosbusca, então, pela diferenciação e distinção que marca estes
produtos, o que vai ao encontro das teses de Bhate e Lawler (1997) e de Pierre
Bourdieu (1989, 2003).
Steinrücken e Jaenichen (2007: 205) declaram que, entre produtos que apresentam
a mesma qualidade, os consumidores divulgam a sua preferência por produtos de
CJ, o que revela que há consumidores que se preocupam com o processo de
produção, mesmo que tal não afete a qualidade do produto. No que respeita à
qualidadedestes produtos, 36% dos inquiridos indicam-na como um fator de
decisão na compra. A qualidadedos produtos de CJ foi, efetivamente, um dos
critérios mais mencionados pelos inquiridos, o que vai ao encontro da ideia de
alguns líderes do movimento, que alegam que “o que vende, em primeiro lugar, é
a qualidade do produto, e o uso da etiqueta de Comércio Justo é uma ferramenta
adicional de marketing (…) as pessoas compram porque gostam do produto” (SED,
2002: 5). Esta é também uma constatação dos protagonistas do CJ em Portugal:
“(…) para mim o que chamava mais as pessoas para o Comércio Justo
sempre foram os produtos. Isto em todos os pontos de venda. (…) eu
acho que para as pessoas é complicado perceber o Comércio Justo sem
ter os produtos. Acham que a ideologia é boa e tal… Eu digo sempre se
os produtos fossem fracos, ninguém comprava, e…” Colaboradora
remunerada de organização de promoção de Comércio Justo,
33 anos, licenciada
A pesquisa realizada por Pedro Monterroso (2008: 74) revelou resultados
idênticos: “A escala anterior mostra-nos que a marcaé, evidentemente, dos 5
itens, aquele a que menos importância é atribuída, sendo a qualidade em 1º e o
preço em 2º, ficando a origem e o estabelecimento em 3º e 4º lugares, o que
mostra que a consideração pela marca é bastante baixa.” Inversamente, no estudo
levado a cabo por De Pelsmacker, Driesen e Rayp (2005) sobre a vontade dos
consumidores belgas pagarem mais pelo café de CJ, os autores apuraram que estes
compradores atribuíam primazia à marcade café, em detrimento do selo de CJ ou
do sabor do café. Esta diferença de resultados pode explicar-se pelo facto de a
investigação de De Pelsmacker, Driesen e Rayp (2005) não incidir,
especificamente, sobre os consumidores de CJ.
Low e Davenport (2005: 500) reportam haver “algumas evidências no sentido de
que os consumidores não absorvem a complexidade da mensagem do CJ” e que se
focalizam em fatores como o preço justoe o gosto. Também Levi e Linton (2003:
421) referem que um estudo de mercado demonstrou que os consumidores “estavam
mais preocupados com o gosto do que em ajudar os produtores do Terceiro Mundo”.
Na pesquisa que encetámos, o preçofoi mencionado apenas por 3,3% dos
respondentes, enquanto o gostopor determinados produtos que os inquiridos
adquirem com regularidade foi um critério consignado por 10% da população
inquirida.
Bondy e Talwar (2011) sustentam que, em alturas em que a economia se encontra
estabilizada, o preço nem sempre é a variável que exerce maior influência nos
processos de determinação de compra; contudo, em períodos de recessão
económica, o preço passa a ter mais peso nessas decisões, na medida em que
muitos consumidores são confrontados com exigências de mudança ao nível dos
padrões de consumo, de modo a gerirem os seus recursos que são, agora, mais
limitados. Os autores salientam, ainda, que não existem estudos que comprovem
que as convicções éticas dos consumidores de CJ sejam abaladas durante períodos
de instabilidade económica, embora se distingam dos consumidores tradicionais
em alturas de constância económica.
O facto de os consumidores lograrem atribuir primazia à qualidadee ao gostoem
detrimento da mensagem intrínseca ao produto de CJ pode, segundo Low e
Davenport (2005), conduzir a que os indivíduos que trabalham o movimento se
focalizem na venda do produto e não tanto na mensagem do CJ. Uma das nossas
entrevistadas, colaboradora remunerada de uma loja de CJ, relatou, a respeito
de passar a mensagem do CJ a quem visita a loja, que nem sempre é fácil
explicar o conceito, conforme podemos observar no seguinte excerto:
“(às) pessoas mais velhas é um bocado difícil explicar o conceito de
Comércio Justo (…) a primeira pergunta que vem é logo: ‘porque é que
não ajudam os produtores portugueses, que também são muito pobres?',
e tudo isso. E é um bocado difícil realmente explicar que a situação
de Portugal não se compara com a de outros países.
Embora estejamos mal, estamos mal dentro do conceito de quem viver na
Europa, mas nos outros continentes a vida é muito pior, e as pessoas
não têm noção de que Portugal não está assim tão mau…”
Colaboradora remunerada de organização de promoção de Comércio Justo,
32 anos, licenciada
Low e Davenport (2005: 507) enfatizam a importância que o marketinggerado em
torno do CJ nos canais de distribuição mais mainstreamteve no seu sucesso, mas
também não abjuram o desafio que esse fator acarreta para o movimento:
“A estratégia de criar um sistema de certificação para o café e chá
de Comércio Justo revitalizou o movimento (…) mas também apresenta
grandes desafios para o movimento, sobretudo sobre como manter o
controlo sobre a mensagem.”
A presença no terreno permitiu-nos observar que, não raras vezes, a interação
entre o consumidor que se desloca a uma loja de CJ e o colaborador remunerado
ou o voluntário que o recebe processa-se com base numa relação comercial
típica, em que o consumidor escolhe o produto sem que haja nenhuma menção ao
facto de se encontrar num espaço comercial no qual as mercadorias detêm um
significado social que transpõe a sua funcionalidade. Por outro lado, também
testemunhámos situações opostas, em que os colaboradores remunerados e os
voluntários explicavam ao consumidor as particularidades daqueles bens. A
mensagem, tal como referem os autores supramencionados, nem sempre passa para o
consumidor, durante a transação comercial justa.
Na perspetiva de Weber (1978 (1922)), as ações económicas podem ser
condicionadas por aspetos que ultrapassam as razões relacionadas com a escassez
de recursos ou as preferências individuais profusamente enraizadas na teoria
económica. Na análise das motivações que conduzem os consumidores ao CJ
verificamos que 7% dos inquiridos apontam como critério para comprar bens de CJ
as relações familiares ou de amizade que os ligam a ativistas deste movimento,
o que corrobora a tese de Weber: ainda que a sua expressão seja diminuta na
amostra, alguns destes consumidores fazem uma escolha de compra baseada em
critérios simbólicos, presentes na dimensão afetiva inerente aos laços
familiares e amicais, e que influenciam a decisão enquanto atores económicos.
Os bens de consumo justoaparentam, por isso, ser dotados de uma dimensão
afetiva, como diria Colin Campbell (1995).
Notas conclusivas
Os dados que recolhemos demonstram que os consumidores justos que integram a
amostra são indivíduos com elevados volumes de capital escolar, que se situam
nas elites culturais, maioritariamente jovens e pessoas de meia-idade, e com
profissões especializadas, incidentes, maioritariamente, nos lugares de classe
dos Profissionais Técnicos e de Enquadramento.
A evidência empírica demonstra que os consumidores de CJ em Portugal que
integraram a amostra e que compram produtos oriundos deste canal comercial
privilegiam os critérios sociais, assentes no respeito pelos trabalhadores, a
crença nos valoresque o CJ defende e os critérios ambientaisassociados à
produção de agricultura biológica. Estes são os três critérios que surgem no
topo dos motivos que estes consumidores apontam para adquirirem produtos de CJ,
o que enfatiza a presença de valores pós-materialistasorientados no sentido da
expressão pessoal, e menos focados nos valores económicos e nos valores
materiais. Não obstante, a qualidadee o gostopor determinados produtos de CJ
que os consumidores adquirem com regularidade são também critérios bastante
referidos nesta amostra, o que demonstra que os valores materialistas também
marcam presença na população amostral. Ainda assim, devemos realçar a
percentagem residual de participantes neste estudo que compram produtos
justospor razões estritamente relacionadas com as características materiais dos
bens (2%, como demonstra o quadro1).
Há um equilíbrio entre aqueles que demonstram um critério de compra misto, que
envolve tanto valores instrumentais como critérios sociais e ambientais, e os
consumidores que revelaram comprar produtos de CJ pelos princípios que envolvem
o movimento, e que se emolduram em preocupações sociais e éticas com os
processos de produção e distribuição. Estamos então perante um consumidor
reflexivo, que alia ao ato do consumo uma crítica à sociedade de consumo e aos
processos de produção intensivos que não respeitam o ambiente, a dignidade
humana e os direitos dos trabalhadores. Por outro lado, a prevalência dos
critérios mistoscomo motivação para a compra de produtos de CJ, ou a eleição da
qualidadecomo critério de compra levam-nos a admitir que nem sempre os atos de
consumo são reflexivos ou racionais, e que também obedecem a rotinas, a hábitos
e a preferências individuais patentes no gostopelo produto. No que concerne a
este gosto, o elevado volume de capital culturalque caracteriza a amostra
possibilita-lhe, igualmente, a leitura de códigos de atribuição de significado
simbólico aos produtos de CJ.
Descobrimos ainda que, em alguns casos, a atração pelos produtos de CJ reside
naquilo que os distingue dos que se encontram habitualmente no mercado: são
mais exóticos, como expressaram os resultados apurados através do inquérito por
questionário. Assim, podemos concluir que existem razões plurais para a compra
destes produtos. Não lhe subjazem apenas os valores sociaisinerentes ao
movimento, nem os valores moraisdos consumidores, mas igualmente critérios mais
instrumentais, como a qualidadee o exotismodos produtos, indo ao encontro da
teoria de Lancaster (1966), que postula que as preferências dos consumidores
podem ter origem nas propriedades dos bens e no valor que estes representam
para o consumidor. Neste caso específico, o valor que parece predominar é de
cariz social, patente no facto de grande parte dos consumidores justosque
integra a amostra indicar que os principais critérios para adquirir bens de CJ
são os critérios sociais, que se baseiam no respeito pelos trabalhadores.
Os dados recolhidos permitem aferir que, no universo em análise, o preçonão é
um critério principal de escolha de um produto, sendo esta resposta residual na
amostra. Esta constatação não vai ao encontro dos pressupostos das teorias
económicas: como aferimos, estes consumidores, em situação de mercado, nem
sempre pautam a sua conduta em conformidade com a premissa da maximização da
utilidade e minimização do custo económico de um produto, isto é, o preço dos
bens de CJ não granjeou centralidade nas justificações de compra destes
consumidores. Encontrámos, neste estudo, consumidores que revelam outras razões
que subjazem às suas opções de compra, como o facto de os produtos alimentares
que consomem serem de agricultura biológica e obedecerem a critérios de
produção que não são nocivos para o meio ambiente, por o CJ procurar diminuir
as desigualdades entre os países do Norte e do Sul, ou, ainda, para ajudarem os
pequenos produtores.
A leitura dos dados recolhidos revela que os critérios sociais, a crença nos
valores do CJe os critérios ambientaislideram os motivos que estes consumidores
apontam para adquirir produtos de CJ, o que poderá ser indicativo de que a este
consumo justose alia um ato de compra e de consumo simbólicos, dotados de um
significado que ultrapassa o das propriedades intrínsecas às mercadorias e
assente em valores de ordem moral, que se caracteriza também por uma dimensão
imaterial, expressa por valores sociais, morais e ambientais. Todavia, as
práticas de consumo justo parecem assumir um caráter dual: por um lado,
enraízam-se numa matriz individual, estruturando-se de acordo com o gostodos
consumidores, mas também se aquartelam num caráter valorativo, expresso num
modelo comercial alternativo que exalta uma ação coletiva por melhores
condições de vida e de comércio para os pequenos produtores, e que diligencia
por padrões de produção, de comercialização e de consumo ambientalmente mais
sustentáveis.
No sistema comercial justosubsiste uma valorização simbólica das mercadorias,
visível no discurso dos seus protagonistas, e que espelha preocupações com os
direitos dos trabalhadores, com as condições de vida dos pequenos produtores, a
preservação do meio ambiente e as desigualdades provocadas pelos processos de
globalização; mas também é visível que as propriedades materiais dos artigos de
CJ granjeiam popularidade junto dosconsumidores justos, e são um fator que pesa
nas suas escolhas. Aliás, como verificámos, os próprios protagonistas do CJ
enfatizam a importância da qualidadedos produtos de CJ como um fator que
impulsiona a sua aquisição.
Apesar de, neste estudo, procurarmos compreender as motivações que conduzem os
consumidores ao CJ, não nos foi possível aferir se o CJ constitui uma
ferramenta para a mudança nos hábitos de consumo. Assim, fica em aberto uma
pista de reflexão para futuras investigações neste âmbito: poderá o CJ
constituir um instrumento para a mudança das atitudes dos indivíduos face ao
consumo?