O consumo de espaços residenciais para além dos valores económicos
Introdução
As sociedades contemporâneas capitalistas e ocidentais continuam a ser
sociedades de consumo. Iniciado na década de 1980, este debate centrado no
consumo – seus efeitos e significados sociais – tornar-se-ia parte integrante
de uma discussão mais vasta sobre um tempo definido como pós-modernidade
(Lyotard, 1989; Featherstone, 1991; Jameson, 1995; Eagleton, 1996; Harvey,
1998) ou como modernidade tardia (Giddens, 1997). Entre outros fatores, tal
traduz-se numa economia estruturada em torno da venda e promoção de bens, com a
consequente secundarização da produção (Campbell, 1995), deixando os objetos de
estar exclusivamente ligados ao valor de troca e utilidade para adquirirem um
novo protagonismo enquanto produção e expressão de significados sociais
(Baudrillard, 1995). Significa isto que, através do consumo,é posto em prática
um sistema de significações que extravasa a simples aquisição passiva de
objetos e serviços, passando eles a expressar relações sociais, a evocar
espacialidades e temporalidades diversas, a participar na produção da realidade
em que se inserem, sofrendo constantes reajustamentos, reutilizações e
tornando-se instrumentos centrais nos processos de composição identitária
(Campbell, 1995).
Destacando-se o valor de significação social em detrimento do valor de troca,
tanto os objetos, como as práticas quotidianas, como ainda os espaços e lugares
onde as mesmas acontecem passam a partilhar a mesma lógica de estilização,
podendo ser manipulados pelos consumidores com vista a negociar identidades,
pertenças sociais e a compor determinados estilos ou modos de vida. Pelo que,
tão ou mais relevante do que o consumo de lugares ou produtos, é a fruição
estética de cenários espaciais e as experiências que os mesmos proporcionam
(Cachinho, 2006).
Focando a atenção sobre o espaço enquanto objeto-mercadoria de consumo, importa
ter em conta que a relação que os indivíduos desenvolvem com o espaço não é só
uma garantia universal da particularidade das identidades. O espaço também
contém indícios que norteiam os comportamentos, as identidades e as negociações
sociais (Paul- Lévy e Segaud, 1983), sendo através dele que se produz e
reproduz um tempo social que importa compreender e valorizar (Lefebvre, 1986),
quer enquanto forma de chegar àqueles que o produzem e consomem, quer enquanto
forma de compreender as forças e efeitos espaciais exercidos pelo consumo
(Goodman, Goodman e Redclift, 2010).
De entre o amplo conjunto de produtores e consumidores do espaço, as novas
classes médias têm merecido algum destaque (O'Connor e Wynne, 1996; Zukin, 1995
e 2010; Atkinson e Bridge, 2005; Lees, 2000 e 2008; Rodrigues, 2010), quer
enquanto impulsionadoras de importantes transformações sociais, quer enquanto
mediadoras simbólicas e intérpretes dessas mesmas transformações, que têm
privilegiado sobremaneira os espaços urbanos. Não menos relevante tem sido o
protagonismo das classes médias enquanto consumidoras, quer de novos produtos
imobiliários (Salgueiro, 1994), quer de novas centralidades (Bógus, Ferreira e
Gagliardi, 2012).
Contudo, nem a significativa mudança observada nas últimas décadas ao nível do
regime de propriedade1 é uma característica portuguesa, nem a proliferação do
mercado imobiliário por via do consumo de espaços residenciais é uma prática
imputada exclusivamente às classes médias. A compra quase generalizada de casa
própria diluiu bastante as questões classistas suportadas num capitalismo
clássico e simplista em termos de divisões por classes, com correspondências
previsíveis ao nível das capacidades e hábitos de consumo.
Mas, em simultâneo, não só o mercado imobiliário foi desenvolvendo produtos
dirigidos à procura de espaços residenciais por parte dos diversos segmentos
socioeconómicos que foram surgindo, como o próprio território urbano foi sendo
fracionado em conjuntos de lugares com rotulagens variadas e, de alguma forma,
seletivas (Watt, 2009). A questão do valor e da forma como estes lugares e
produtos imobiliários são valorizados torna-se igualmente transversal nesta
análise, que não deixa de conceber a Lisboa contemporânea enquanto produto de
um sistema capitalista (Lefebvre, 2012).
Em suma, se o capitalismo também é um processo que controla o espaço e as suas
constantes reconfigurações na incessante busca da diferença, competitividade e
acumulação (Louçã, Lopes e Costa, 2014), o consumo do espaço – e dos espaços
residenciais em concreto – não deixa de ser um dos principais símbolos sociais
e identitários numa sociedade capitalista, cujo valor e respetiva valorização
vão muito além da objetividade da dimensão económica. Com efeito, a localização
da residência é um fator cada vez mais valorizado nas sociedades
contemporâneas. Mas se o custo económico é uma variável incontornável na
equação valorativa, o mesmo não deixa de refletir o peso das dimensões sociais,
culturais e simbólicas que são inerentes aos lugares e que lhes imprimem uma
marca distintiva face aos demais territórios urbanos.
Com base neste enquadramento teórico serão apresentados dois casos de estudo
localizados na cidade de Lisboa – Príncipe Real e Parque das Nações – com o
objetivo de, através de entrevistas em profundidade2 realizadas juntos de um
grupo de residentes, demonstrar de que forma a valorização e o consumo dos
espaços residenciais se articula com os processos de significação social e
pertença identitária junto de novas classes médias urbanas.
1. Do consumo do espaço urbano
De entre os múltiplos estudos que vêm explorando dinâmicas urbanas
contemporâneas, podem ser destacadas temáticas ligadas àconversão do espaço
urbano numa fragmentação de lugares para serem consumidos enquanto cenários
estéticos e culturais proporcionadores de múltiplas experiências, o papel dos
diferentes públicos e o leque variado de interesses que os movem, a produção e
promoção de novas formas de habitar, as recomposições sociais e os efeitos de
revitalização e nobilitação em determinadas áreas, as estratégias de composição
identitária e de diferenciação social entre indivíduos, grupos sociais e
espaços.
No fundo, todas estas temáticas confluem no grande denominador comum que é a
sociedade de consumo e as referências sociais e temporais para com uma pós-
modernidade que a contextualiza. Tal traduz-se numa lógica de estetização da
vida quotidiana, em que a avidez do consumo, a necessidade de afirmação
identitária e de distinção social conduzem os indivíduos a centrarem-se sobre
os espaços que promovem experiências de consumo e alguma diferenciação social
(Featherstone, 1991; Campbell, 1995; Lury, 1997; Harvey, 1998).
Um outro fator atribuído ao consumo conotado com uma sociedade pós-industrial e
pós-moderna é a obtenção do prazer associado à procura da novidade e que se
reflete na curta duração dos produtos e das experiências, nas mudanças rápidas
nas modas, na transitoriedade das imagens, na expressividade simbólica de
objetos e lugares. Relativamente aos lugares, importa desde já sublinhar a
centralidade teórica que assumem na conceptualização do consumo, não só devido
à sua inevitável espacialização, mas sobretudo pelos efeitos que o consumo
exerce na produção, transformação e promoção dos espaços e lugares (Goodman,
Goodman e Redclift, 2010).
Tanto a reorientação da cidade enquanto espaço privilegiado de consumo, como a
reconfiguração funcional de territórios urbanos podem ser relacionadas com a
necessidade de reinventar a cidade pós-industrial (Miles, 2010). Um processo
que, entre outros aspetos, tem-se pautado pela criação de identidades e
particularismos diferenciadores, pela produção de imagens e narrativas
territoriais que promovem determinados aspetos temáticos ou culturais, ou pela
criação de ambientes “mágicos” e de vivências socialmente mais exclusivas.
Miles (2010) afirma que a cidade, além de ser um espaço onde se consome é,
sobretudo, um espaço para consumo, assistindo-se por toda a Europa a
“rotulagens” e reclassificações das cidades enquanto lugares destinados a serem
consumidos como destinos turísticos, centros de cultura e lugares dignos das
“cultas”classes médias. Esta leitura surge contextualizada naquilo que o autor
define como “urban renaissance”, um rótulo cada vez mais usado para perspetivar
mudanças sociais regenerativas nas cidades, surgidas a reboque da pós-
industrialização e que suscitam nele um conjunto de inquietações: 1) serão
essas mudanças algo mais do que puramente simbólicas?; 2) serão elas
substancialmente representativas da forma como os indivíduos se estão a
relacionar com a cidade?; 3) estará a alma das cidades contemporâneas a ser
vendida aos consumidores que mais pagam por ela?; 4) que impacto teráesse facto
na sustentabilidade das cidades, a longo prazo? Qualquer tentativa de responder
a uma destas questões deverá entrar em linha de conta com todas elas, tal é a
sua correlação interna, por um lado e, tal é o domínio do consumo sobre as
sociedades e sobre as cidades, por outro.
É reconhecido que o conjunto de mudanças atribuídas às sociedades de consumo
pós-modernas vieram acrescentar à dimensão espacial novas componentes de índole
valorativa e de significação social, que muito contribuíram para converter as
cidades em sistemas de lugares fragmentados, conotados com determinadas
vivências e relações de classe, com conteúdos proporcionadores de múltiplas
experiências. Neste cenário, a cultura surge como um dos principais elementos
de renovação e modernização das cidades (Zukin, 1995), quer por via da produção
cultural seguindo uma lógica de mercadorização(Harvey, 1998), quer por via da
promoção e projeção das cidades através da realização de grandes projetos ou
eventos (Roberts e Sykes, 2000; Carrière e Demazière, 2002).
Com efeito, as estratégias de marketingapensas à mercadorizaçãoespacial não
manipulam apenas as imagens concebidas para um consumo externo. Ao mesmo tempo
que os residentes perdem algum protagonismo face aos visitantes por via de um
turismo urbano em expansão, existe a preocupação de promover diferentes lugares
da cidade à escala interna, exortando um conjunto de valores, traços de
autenticidade e de diferenciação que visam atrair determinados grupos sociais.
Consequentemente, muitos destes lugares resultam em fraturantes e segregadores
face à diversidade de residentes, utilizadores e consumidores existentes na
cidade. Contudo, e tal como afirma Miles (2010), os consumidores não são
vítimas da sociedade de consumo mas sim cúmplices, sendo essa cumplicidade
igualmente reveladora do tipo de relação que desenvolvem com a cidade, com as
imagens que se vão criando sobre determinados lugares que a compõem e com os
grupos sociais que os habitam.
Como tal, a massificação do consumo tornou-se num modo de nobilitação e de
composição de identidades pessoais e sociais, em que o serdepende cada vez mais
do terpara, em conjunto com o parecer, determinar a identidade de quem possui
os bens (Santos, 2001). Entre estes bens está o espaço, também ele convertido
em bem de consumo essencial na identificação social dos indivíduos, visto as
relações com o espaço através dos modos de habitar serem parte integrante dos
processos de constituição da consciência de classe (Louçã, Lopes e Costa,
2014), bem como de um posicionamento social e identitário.
2. O protagonismo das novas classes médias urbanas
Enquanto produto de um sistema capitalista, a cidade contemporânea tem sido
produzida pelo mercado, para o mercado e com vista à obtenção de lucro
(Lefebvre, 2012). Ainda na perspetiva lefebvriana, esta preponderância do valor
económico em detrimento de valores sociais e humanos acentuou desigualdades
sociais, retirou democraticidade no acesso àcidade, reduziu a diversidade
social e fragmentou o espaço urbano de acordo com uma hierarquia de lugares
categorizados, tanto em termos económicos como em termos sociais. Estes não
deixam de ser alguns dos efeitos colaterais resultantes da conversão do espaço
urbano em mercadoria. Uma mercadoria que, de certo modo, também contribuiu para
o fracionamento das classes sociais, numa configuração que é já de capitalismo
tardio (Gottdiener, 1993).
De um modo geral, as classes médias urbanas têm vindo a ser apresentadas na
literatura dedicada às cidades (Zukin, 1995 e 2010; Atkinson e Bridge, 2005;
Lees, 2000 e 2008; Thomas e Pattaroni, 2012; Cusin, 2012; entre outros) como
alvos preferenciais de uma seletividade e dirigismo social dos mercados
imobiliários e dos promotores privados, associando-se a elas uma certa ideia de
revitalização do espaço e da vida urbana, tanto no centro das cidades, como
noutras localizações mais periféricas mas igualmente valorizadas. As
capacidades económicas que lhes são atribuídas – e que resultam quer das
elevadas qualificações obtidas, quer do tipo de profissões desempenhadas –
também potenciam comportamentos de consumo diversificados, regulares e até
diferenciadores. A escolha e o consumo do espaço residencial é um dos bens mais
significativos em termos de instrumentos privilegiados de diferenciação e
identificação social das classes médias. Daí a sua ligação a processos de
nobilitação e/ou gentrificação(Smith, 2002; Lees, 2003; Authier e Bidou-
Zachaniasen, 2008; Rodrigues, 2010) em espaços revitalizados e revalorizados
nos centros das cidades, como a novas produções urbanas concebidas em espaços
mais periféricos geograficamente – como é o caso de frentes de água, antigas
áreas industriais e portuárias –, mas não menos valorizados em termos sociais,
económicos e simbólicos (Sieber, 1993 e 1999; Zukin, 1995).
Se o desejo de diversidade e diferenciação não deixa de ser inerente a qualquer
ato de consumo, a multiplicidade de bens e respetivos custos existentes no
mercado obriga não só a uma racionalização de tais desejos, como a refrear os
mesmos em função de várias condicionantes, de entre as quais se destaca a
disponibilidade económica para consumir. A compra de um espaço residencial é
sempre um processo complexo em si e que envolve uma série de escolhas
igualmente complexas. Contudo, as mesmas poderão ser relativamente facilitadas
quando se conjugam capacidades económicas para consumir com produtos atrativos
e que respondem a “modas” e desejos que, em cada época, marcam tendências entre
os vários grupos sociais.
Enquanto os grupos economicamente mais poderosos têm liberdade de escolha, os
mais carenciados veem-se bastante condicionados e limitados em termos de
produtos disponíveis no mercado e respetivas localizações. No meio fica a
classe média, um enorme grupo social de implantação maioritariamente urbana,
cuja heterogeneidade – social, cultural e económica – preenche um campo
bastante significativo em termos de consumo, designadamente no consumo de
produtos imobiliários.
Continuar a tomar como base de referência uma estratificação social por classes
afigura-se algo contraditório face à múltipla segmentação social que marca as
sociedades contemporâneas e respetivos padrões de consumo. No entanto, a
dimensão subjetiva contida em segmentações complementares – como os estilos de
vida ou modos de vida – não tem tido reflexos notórios ao nível dos espaços
urbanos e seu consumo, pelo que a designação classe médiacontinua a ser
recorrente, salvo a pequena variação para novas classes médias, que a
multiplica em vários segmentos e a renova em permanência.
As novas classes médias urbanas estão no epicentro da competição social, uma
vez que não gozam da segurança económica e social que tipifica os mais
privilegiados, nem apresentam as mesmas restrições dos mais carenciados. Esta
posição intermédia justifica não só um maior dinamismo social dentro de uma
designação que não é consensual e não traduz a diversidade que a mesma encerra,
como também a permanente necessidade de a atualizar ante as suas capacidades de
interpretar e transformar os respetivos cenários de atuação.
De uma forma geral, as novas classes médias urbanas correspondem a grupos
sociais mais escolarizados por via do processo de democratização do ensino, mas
não necessariamente aos que detêm maior capacidade económica. Profissionalmente
exercem um conjunto muito alargado de profissões, sobretudo ligadas à produção
de bens e serviços simbólicos, partilham um modo de trabalhar que permite
alguma inovação mas, acima de tudo, partilham uma cultura ou um modo de vida
que constitui uma identidade distintiva face a outros fragmentos de classe
(Lury, 1997). Entre elas podem-se reconhecer os gentrificadores (Smith, 1996),
os bobosou burgueses boémios (Brooks, 2000), artistas e criativos (Florida,
2005), entre outros.
Em Portugal, a expansão da classe média– e consequentemente, das novas classes
médias urbanas – deu-se tardiamente mas de um modo relativamente rápido e de
forma muito instável relativamente aos critérios que a definem, não se
verificando unanimidade quanto à dimensão da classe média ou quanto à sua
solidez objetiva (Estanque, 2012). A heterogénea classe média portuguesa é, na
realidade, composta por grupos sociais com uma espacialização predominantemente
urbana, profissionalmente muito diversos e mais escolarizados por via do
processo de democratização do ensino, ocorrido já depois da revolução de 1974.
A sua relativa consolidação está estreitamente vinculada ao projeto democrático
pós-revolução e a alterações profundas na estrutura do emprego e dos perfis
socioprofissionais3 de topo, designadamente (e por ordem de predominância)
profissionais técnicos e de enquadramento (PTE), empresários, dirigentes e
profissionais liberais (EDL) e trabalhadores independentes (TI).
Enquanto produto da escolarização, da democratização e da urbanização, as novas
classes médias foram, simultaneamente, as maiores impulsionadoras desses mesmos
processos e, consequentemente, de importantes transformações sociais. Por isso,
é mais expressivo o seu papel em termos de movimentos e dinâmicas sociais do
que propriamente enquanto classe, à qual tanto falta profundidade histórica
como cultural. Talvez também por isso, as novas classes médias urbanas
continuam a ser um grupo muito pouco estudado em Portugal – no âmbito das
ciências sociais de uma forma geral e no âmbito dos consumos residenciais em
particular – não obstante os processos de gentrificaçãoa acontecer no centro
histórico de Lisboa (Mendes, 2006 e 2013) e os de seletividade social a
acontecer na frente de rio (Gato, 2014), por exemplo.
A seleção dos dois casos de estudo que se seguem pretende exemplificar lugares
e modos de habitar seletivos e que traduzem a forma como os mesmos são
produzidos e valorizados com vista a um consumo socialmente dirigido. Se o
Príncipe Real parece apresentar indícios de uma certa nobilitação (Rodrigues,
2010) numa área histórica e central que, na verdade, nunca deixou de ser
“burguesa”, o Parque das Nações é a frente de água que confirma um modo
contemporâneo e seletivo de projetar cidade. Em termos de valor económico – ou
de troca – está-se perante dois espaços onde a propriedade atinge preços
bastante elevados, o que condiciona sobremaneira o tipo de residentes.
Como tal, e mesmo admitindo a presença de outros extratos sociais, estabelece-
se uma equivalência predominante dos residentes destes espaços com as novas
classes médias urbanas, verificando-se a importância das mesmas quer enquanto
referencial identitário, quer enquanto valor social acrescentado ao valor do
espaço residencial e respetivo consumo.
3. Príncipe Real
3.1. Breve caracterização
O espaço aqui definido como Príncipe Real corresponde a um recorte territorial
definido com base num conjunto de subsecções estatísticas. A seleção das mesmas
procurou obedecer a uma relativa uniformidade social e urbanística, à qual é
atribuída uma designação de lugar, reconhecida e partilhada no coletivo de
forma mais ou menos consensual. Assim, o Príncipe Real corresponde ao
território delimitado a norte pela Rua da Escola Politécnica, a sul pela Rua
Academia das Ciências, a nascente pelas Ruas da Imprensa Nacional e de São
Bento, a poente pela Rua de O Século.
A designação deste lugar deriva do nome dado, em 1855, à enorme praça-jardim
pela Rainha D. Maria II, em homenagem ao seu filho D. Pedro V, o Príncipe Real.
Em torno desta praça-jardim construíram-se vários palacetes e casas apalaçadas
de proprietários ricos, comerciantes bem-sucedidos, descendentes de nobres e
governadores (Costa, 1959), bem como outros aristocratas e burgueses que se
foram aproximando e fixando pelas ruas adjacentes àpraça.
Na atualidade, a memória da presença e passagem dessas elites pelo Príncipe
Real permanece visível através de vários imóveis com valor histórico e
patrimonial localizados à volta da praça-jardim. Os mais significativos4 (de um
conjunto de 20) pertencem à empresa de promoção e gestão imobiliária norte-
americana EastBanc, que elegeu o Príncipe Real como alvo para empreender um
enorme e ambicioso plano de reabilitação e revitalização urbana. O objetivo é
converter uma série de palacetes e outros imóveis distintivos em edifícios de
habitação coletiva dirigida a estratos socioeconómico elevados, articulando
esta seletividade habitacional com a seletividade comercial – de lojas,
produtos e consumidores –já em curso.
Menos visíveis são, contudo, as características sociodemográficas da população
presente neste recorte territorial. Dando uma panorâmica geral5, dos 3761
residentes 44% são homens e 56% são mulheres. Em termos de idades predomina a
população adulta em idade ativa (56% com idades entre 25 e 64 anos),
destacando-se a população idosa (26% com 65 e mais anos) sobre as crianças e
jovens (18% entre os 0 e 24 anos). A percentagem de residentes com ensino
superior é de 31%. Das 1912 famílias residentes, 76% correspondem a famílias
com 1 ou 2 pessoas e 21% a famílias de 3 ou 4 pessoas. Dos 2918 alojamentos
familiares existentes, 63% correspondem a residências habituais e 24%
encontram-se vagos. Quanto ao regime de propriedade, 60% corresponde a
alojamentos arrendados e 34% a alojamentos próprios.
A realidade dos números parece apresentar um Príncipe Real socialmente mais
diversificado do que certas imagens construídas à volta da “nobreza” deste
espaço e respetivos residentes. Mas apesar dos dados censitários não permitirem
avançar com uma caracterização socioeconómica dos mesmos, são percetíveis
algumas dinâmicas populacionais que confirmam dados resultantes da observação
espacial e das entrevistas realizadas aos residentes. É o caso de uma relativa
renovação populacional devido à presença de novos residentes em idade ativa,
formando núcleos familiares restritos ou unipessoais, cujas qualificações de
nível superior remetem para profissões e estilos de vida enquadráveis no
cenário das novas classes médias urbanas.
O grupo de seis residentes entrevistados permite ilustrar esse enquadramento de
uma forma mais objetiva. Com idades compreendidas entre os 35 e os 43 anos, os
três homens e as três mulheres integram unidades familiares que vão da ausência
de filhos (2), a um filho (2) e dois filhos (2) com idades inferiores a 6 anos
e cujo tempo de residência no Príncipe Real varia entre os dois e os doze anos.
Em termos de qualificações apenas um dos entrevistados não possui ensino
superior, repartindo-se os restantes entre a licenciatura e o doutoramento.
Quanto às profissões, existem dois arquitetos, um produtor artístico, um
tradutor, um professor universitário e um professor do ensino secundário.
Relativamente àsituação na profissão, metade trabalha por conta de outrem e a
outra metade por conta própria, encaixando todos nas duas categorias de topo da
estrutura definida pelo indicador socioprofissional de classe. Em termos de
rendimentos mensais líquidos auferidos, os valores apontados variam entre os
2500€e os 3500€.
Numa autoclassificação social que se baseia sobretudo nos rendimentos
disponíveis e respetivo estilo de vida, os entrevistados recorrem a uma
representação de classe que se reparte entre aquilo que designam por “classe
média”e “classe média-alta”, sendo de referir que o mesmo rendimento mensal de
2500€tanto justifica a inserção de L. na classe média, como a de J. na média-
alta:
“Eu insiro-me na classe média. Ainda não sou pobre mas também não sou
rica.” (L. tradutora, 43 anos) “Eu insiro-me na classe média-alta
porque sinto que tenho uma vida muito folgada e não tenho qualquer
dificuldade financeira. Isso tem muito a ver com questões familiares…
com o facto de a minha família me meter numa boa situação financeira
e que me permitiu comprar este apartamento sem empréstimo.” (J.
professor, 43 anos)
Se está relativamente comprovada a tendência generalizada de os indivíduos
sobrevalorizarem a sua posição social face àestrutura existente, as entrevistas
permitiram verificar que o espaço residencial também funciona enquanto
identificador e “categorizador” social, legitimando laços de pertença espaciais
e identitários que, podendo ser condicionados por valores económicos, vão para
além deles.
“Eu diria que pertenço àclasse média-alta porque acho que nós temos
um padrão de vida acima da média. Vivemos em condições ótimas, numa
zona ótima da cidade, muito apetecível e em que o preço médio por m2
é enorme e nós temos a possibilidade de estar aqui.” (P. arquiteta,
35 anos)
3.2. O valor de uma centralidade cosmopolita
Partindo da citação anterior, é sabido que o valor económico (ou de troca) do
espaço urbano varia de acordo com vários fatores, de entre os quais se destaca
a localização. Acontece que essa localização faz-se acompanhar de um
determinado contexto histórico e patrimonial, de um capital humano e social, de
uma vitalidade ou ambiência própria, ou, por outras palavras, de um sistema de
valorizações sociais e de uso apoiado em fatores internos, de natureza
qualitativa, mas não necessariamente incomensurável. Com efeito, todas estas
condicionantes apresentadas pelo espaço urbano acabam por ter um impacto
objetivo, quer no seu valor económico (de troca e utilização), quer na sua
valorização simbólica por via de imagens promocionais, experiências de consumo,
grupos sociais e estilos de vida, identidades e autenticidade nas formas de
habitar, etc.
Como tal, e para os entrevistados, viver no Príncipe Real não estáao alcance de
qualquer um e é encarado como uma espécie de “privilégio” de acesso
condicionado, sendo que o custo elevado da habitação6 compensa claramente o
facto de se estar num dos lugares mais centrais e prestigiados de Lisboa7,
usufruindo de uma qualidade de vida única. Essa qualidade de vida decorre,
essencialmente, da condição de centralidade oferecida pelo próprio território e
das vantagens da mesma em termos de rotinas quotidianas8.
São também essas rotinas que, em boa parte, levam os entrevistados a
identificar no Príncipe Real uma “vida de bairro”. Apesar das dificuldades em
definir o conceito de ‘bairro'de forma exata, a sua ampla utilização remete
para um espaço de investimento afetivo, onde se desenvolvem sociabilidades,
relações de interconhecimento e também de controlo social (Rémy e Voyé, 1994).
Ou seja, bairro é:
“Aquilo de ir à mesma pastelaria, ter um sapateiro, ter determinados
serviços de bairro e que eu uso neste bairro e não noutros bairros. E
conhecer a vizinhança. Abrir a porta da rua e fazer um percurso daqui
ali e ver 4 caras conhecidas e com quem me cruzo frequentemente e com
quem falo aquela conversa do ‘bom dia'.” (P. arquiteta, 35)
Como tal, é consensual que no Príncipe Real:
“Ainda há bairro As pessoas conhecem-se na rua e falam… e os velhotes
ainda tomam conta dos miúdos. Se veem algum miúdo sozinho, sabem quem
ele é e se veem alguém estranho a falar com ele, tomam conta. Ainda
não éum sítio onde as pessoas não se conhecem e não se falam.” (L.
tradutora, 43)
Entretanto, estas sociabilidades de bairro também permitem aos residentes
reconhecer diferenças e semelhanças entre si e, consequentemente, posicionar-se
em função dos grupos sociais observados. Significa isto que, não obstante os
entrevistados caracterizarem a população residente do Príncipe Real como uma
grande mistura social e de essa realidade até ser reconhecida como uma marca de
autenticidade, os posicionamentos adotados confluem para uma representação
social ancorada no espaço de residência e na seletividade dos grupos sociais
que lhe conferem uma identidade própria.
De uma forma geral, os entrevistados posicionam-se em contraponto aos
residentes “mais populares”e que se distinguem pela maneira como se vestem,
falam e comportam no espaço público, ou seja:
“Eu sinto-me parte de uma metade deste bairro, pois este bairro tem
claramente duas metades. Isto que eu estou a dizer ésentido por todas
as pessoas do meu prédio. E elas dizem-me que todas as pessoas que
conhecem aqui do bairro têm exatamente essa sensação. Ou seja, há
claramente aqui duas camadas sobrepostas de pessoas neste bairro, que
têm muito pouco contacto. Portanto, não existe uma integração entre
estas duas partes.” (J. professor, 43)
Assim, quer os entrevistados quer os respetivos grupos sociais que lhes servem
de suporte e referência no espaço de residência caracterizam-se como:
“Pessoas que têm trabalhos interessantes… existe um conjunto de
figuras que são pessoas mais exóticas dentro da nossa sociedade, mas
que têm uma voz e que têm uma presença e que têm uma coisa a dizer
sobre o que vivem, onde vivem, o país, a política… têm um papel
cultural importante e eu acho que aqui se encontra isso com mais
facilidade do que, por exemplo, no sítio onde vivia antes… (aqui).
Deve haver uma mistura de classes económicas. Mas o tipo de pessoas
com quem nós convivemos e com quem a nossa filha convive são pessoas
diferentes, pessoas engraçadas…” (P. arquiteta, 35)
Em suma, a par do cosmopolitismo que os entrevistados atribuem ao Príncipe Real
(traduzido na diversidade de pessoas e nas experiências variadas que as mesmas
já viveram), de uma certa cultura alternativa e de sofisticação (em boa parte
atribuída à presença de uma população gay, cuja capacidade de consumo e gostos
mais exigentes interferem no tipo de comércio local) e do ambiente de charme
que resulta da urbanidade que mistura o tradicional com o contemporâneo, existe
uma “classe cultural”9 a residir no Príncipe Real e que serve de referência
identitária aos entrevistados. Como tal, entre eles existe não só a
predisposição para pagar um valor acrescido pelo espaço de residência para ter
acesso a essa “classe”e ao seu estilo de vida distintivo, como a consciência
clara de que o Príncipe Real resulta mais valorizado economicamente devido à
presença de pessoas como eles10 . Esta conclusão reflete bem a relação
inextrincável entre as dimensões económicas e sociais em termos da produção e
consumo do espaço e a forma como ela conduz a uma “pertença seletiva” (Watt,
2009 e 2010) que produz valores acrescidos na valorização do Príncipe Real.
4.Parque das Nações
4.1.Breve caracterização
O Parque das Nações éum território urbano muito recente e bastante periférico
se comparado com a centralidade histórica e geográfica do Príncipe Real. Mas
não deixa de ser a “nova centralidade” de uma Lisboa contemporânea e
representativa de características urbanísticas que se dizem excecionais.
Construído de raiz ao longo de cinco quilómetros de frente de rio11 em pouco
mais de 10 anos, este novo pedaço de cidade resulta de um processo urbanístico
muito particular proporcionado pela realização de um megaevento, a Exposição
Mundial de Lisboa –Expo'98. Do somatório das marcas deixadas pelo evento, com a
localização geográfica, as composições arquitetónicas, o desenho urbano e a
qualidade dos espaços púbicos resulta um território com características únicas
e socialmente dirigido a determinados estratos económicos, incluindo também as
novas classes médias urbanas.
Atéfinais de 2012, o Parque das Nações encontrava-se dividido entre os
concelhos de Lisboa e Loures, não obstante a empresa responsável pela sua
construção e promoção imobiliária (Parque Expo S.A.) ter continuado a gerir
todo o território. Atualmente, o Parque das Nações já se encontra totalmente
integrado no concelho de Lisboa e numa nova freguesia com o mesmo nome,
agregando territórios adjacentes à zona de intervenção da Expo'98. Esses novos
territórios não foram considerados para este estudo, pelo que os dados
apresentados reportam-se ao Parque das Nações na sua formação territorial
original.
Assim e de acordo com os dados censitários de 2011 recolhidos à subsecção
estatística, os 14000 residentes repartem-se em 50% de homens e 50% de
mulheres. Em termos de idades predomina a população adulta em idade ativa (64%
com idades entre 25 e 64 anos), destacando-se claramente a percentagem de
crianças e jovens (30%) sobre a de população idosa (6% com 65 e mais anos). A
percentagem de residentes com ensino superior éde 53%. Das 5552 famílias
residentes, 53% corresponde a famílias com 1 ou 2 pessoas e 42% a famílias com
3 ou 4 pessoas. Dos 8181 alojamentos familiares existentes, 68% correspondem a
residências habituais e 18% encontram-se vagos. Quanto ao regime de
propriedade, 10% corresponde a alojamentos arrendados e 86% a alojamentos
próprios.
Comparativamente ao Príncipe Real, o Parque das Nações representa não só um
território mais extenso e densamente povoado, como a sua população residente é
das mais jovens no contexto da cidade de Lisboa. Este facto está relacionado
com uma consolidação urbana ainda muito recente e com o perfil dos residentes
de primeira geração que láse encontram. Segundo a caracterização dos
entrevistados, os residentes correspondem maioritariamente a “casais jovens com
filhos, com idades entre os 30 e os 45 anos, com licenciaturas e bons
empregos”. Com efeito, a percentagem de residentes com graus de ensino de nível
superior não só é bastante expressiva, como indicia a grande homogeneidade
social que caracteriza este território.
Os seis residentes entrevistados são um bom exemplo dessa homogeneidade. Com
idades compreendidas entre os 30 e os 53 anos, os três homens e as três
mulheres integram unidades familiares que vão da ausência de filhos (1), a um
filho (1) e dois filhos (4) com idades superiores a 6 anos e cujo tempo de
residência no Parque das Nações varia entre os sete e os doze anos. Em termos
de qualificações todos os entrevistados possuem ensino superior (entre a
licenciatura e o doutoramento) e profissionalmente existe um arquiteto, um
engenheiro, um gestor, um consultor, um professor universitário e um professor
do ensino secundário. Relativamente àsituação na profissão predominam os
trabalhadores por conta de outrem, encaixando todos nas duas categorias de topo
da estrutura definida pelo indicador socioprofissional de classe (PTE e EDL).
Quanto aos rendimentos líquidos mensais do agregado, os valores variam entre os
2500€e os 4500€.
À semelhança do verificado no Príncipe Real, a autoclassificação social dos
entrevistados do Parque das Nações também se reparte entre uma “classe média”
(que pode apresentar rendimentos na ordem dos 4500€ mensais) e uma “classe
média-alta” (com rendimentos na ordem dos 2500€). Mas não obstante algumas
discrepâncias individuais face ao posicionamento e respetivos rendimentos,
verifica-se entre os entrevistados a partilha de uma ideia mais ou menos
coincidente sobre a forma como são classificados socialmente a partir do
exterior, com repercussões óbvias a nível interno. A base dessa classificação é
o seu espaço de residência, categorizado desde o início através de um
marketingterritorial e imobiliário assente numa perspetiva de filtragem social:
“Uma coisa éa forma como nos vemos e outra éa forma como nos veem a
nós e, eu acho que nos veem como uma classe média-alta.” (V. gestor,
43) “A maior parte das pessoas que mora aqui são de uma classe média-
alta.” (J. arquiteto, 46) “Sob o ponto de vista económico, os
residentes têm de ser pessoas com um determinado nível económico… Tem
de ser uma classe média-alta.” (S. professora, 53)
4.2.O valor de um espaço prestigiante
Em termos urbanístico, o espaço Parque das Nações corresponde a uma unidade
territorial bastante homogénea e, também por isso, tão facilmente destrinçável
dos territórios envolventes. Tanto esse facto como o perfil de residentes em
presença contribuem para a formação de uma identidade coletiva interna e para
um sentido de pertença espacial que se opõe claramente ao exterior. Neste caso,
o exterior significa não só os territórios circundantes (com destaque para os
de Loures, vistos como desprestigiantes) e a quantidade “desmesurada” de
visitantes que deles provêm, como também o facto de esses visitantes
contrastarem com o perfil socioeconómico e cultural traçado pelos residentes
para se autoclassificarem12.
O prestígio que os residentes atribuem ao território onde vivem e,
consequentemente, a si próprios leva-os a desenvolver algumas estratégias de
evitamento face a “outros”que invadem o seu espaço e perturbam a qualidade de
vida que o mesmo lhes proporciona. Neste contexto, no Parque das Nações é
possível identificar não só a capacidade de satisfazer necessidades de promoção
social de uma classe média que se sente em ascensão por via da sua pertença a
um espaço de residência tão seletivo13, como também a existência de um
“evitamento seletivo”14 dirigido àqueles que, não pertencendo ao Parque das
Nações, constituem uma espécie de ameaça aos valores sociais e simbólicos que
ele representa.
Se os residentes parecem formar um grupo identitário coeso e homogéneo perante
o exterior, uma observação focada no espaço interno permite verificar a
existência de várias demarcações sociais e identitárias. Antes de 2012, a
pertença ao concelho de Lisboa ou ao concelho de Loures era uma questão de
grande relevância para os residentes, sobretudo para os que residiam na zona
norte, na parte que pertencia ao concelho de Loures15. Tendo em conta a
desvalorização territorial e social aplicada a Loures, essa situação de
pertença administrativa não só colidia com o prestígio social inerente ao facto
de residirem no Parque das Nações, como contrariava o sentido de ascensão
social por via da valorização do espaço de residência.
Com a integração de todo o Parque das Nações no concelho de Lisboa16, esta
divisão de caráter administrativo-identitário deixou de se verificar.
Entretanto, a pertença à zona norte ou à zona sul continua a remeter para a
existência de identidades sociais diferenciadas e que tanto se prendem com os
valores económicos atribuídos ao espaço e refletidos pelo mercado imobiliário,
como em valores simbólicos associados à
proximidade a determinados equipamentos de prestígio, como é o caso da
marina17. A localização da residência em frente ao rio éoutro elemento
diferenciador àescala interna, funcionando a primeira linha de rio como uma
espécie de marca social que, localizando uma “classe alta”18, acaba por situar
e classificar as restantes.
Em suma, o caráter discricionário e seletivo intrínseco à conceção urbanística
do Parque das Nações determinou o perfil socioeconómico dos residentes,
refletindo-se as suas características relativamente homogéneas numa identidade
social coletiva cuja base éo espaço residencial de pertença. Mas é no confronto
com o exterior que esta identidade social coletiva ganha especial significado,
surgindo como uma espécie de proteção dos valores excecionais de um espaço que,
por si só, confere prestígio aos residentes, não obstante as várias demarcações
sociais observadas àescala interna.
Conclusão
O espaço urbano e, mais especificamente os espaços urbanos residenciais, podem
ser entendidos enquanto objetos-mercadoria de consumo, integrando igualmente os
processos de significação social e de composição identitária dos residentes,
podendo ser manipulados com vista a negociar diferenças, pertenças e valores.
De entre um conjunto de valores, o económico ganha uma óbvia preponderância em
termos de efeitos provocados num mercado imobiliário discricionário, que
fraciona os consumidores e limita as suas escolhas. Contudo e no contexto
destas escolhas, os valores sociais e simbólicos também se afiguram
incontornáveis em termos de diferenciação e categorização social dos espaços
residenciais, assistindo-se a uma espécie de estratificação espacial que remete
para as classes sociais.
De acordo com uma estratificação social por classes, as novas classes médias
urbanas continuam a ser apontadas como as principais impulsionadoras de
importantes transformações sociais e respetivos impactos ao nível da produção e
vivência urbana. Para isso muito contribui o seu papel enquanto intermediárias
culturais e produtoras de códigos de significação, no âmbito de um paradigma
social que ainda se diz de consumo. No entanto, quer a ampla heterogeneidade
das novas classes médias, quer as múltiplas dinâmicas a que estão sujeitas por
via da posição intermédia que ocupam, têm dificultado a sua objetificação em
termos de estudos sociológicos.
A escolha do Príncipe Real e do Parque das Nações enquanto exemplos de espaços
residenciais associados maioritariamente à classe média procura, de alguma
forma, contribuir para esse objetivo, partindo das escolhas residenciais e
respetivos processos de valorização espacial. É certo que as entrevistas
realizadas junto de um pequeno grupo de residentes localizados nos dois casos
de estudo apresentam um quadro social relativamente homogéneo e não permitem
fazer generalizações. Mas através das mesmas é possível exemplificar como é que
a rotulagem dos espaços urbanos concorre para as formas de seletividade social
e composição identitária, com implicações diretas ao nível dos valores que lhe
são atribuídos e, sobretudo, perceber que esses valores resultam de um processo
relacional interativo entre pessoas e respetivos espaços.
Em ambos os espaços verifica-se que o valor económico é uma variável
condicionadora e incontornável em termos da seletividade social existente e
reconhecida pelos residentes. No entanto, esse valor económico não deixa também
de refletir o peso das dimensões sociais, culturais e simbólicas inerentes a
cada um dos espaços. No Príncipe Real éreconhecido que a presença de residentes
com determinado perfil cultural e económico representa um valor acrescido no
preço a pagar para ali residir e assim aceder à identidade cosmopolita que o
diferencia no contexto da cidade de Lisboa. No Parque das Nações evoca-se
sobretudo o prestígio e a excecionalidade do espaço construído para reclamar as
pertenças identitárias face ao mesmo e, simultaneamente, reforçar as diferenças
face ao exterior e àvariedade social que o caracteriza.
Apesar da existência de maior diversidade social no Príncipe Real, tanto as
aspirações de aceder a um espaço seleto como o reconhecimento de estar “entre
iguais” acabam por ser coincidentes com o verificado no Parque das Nações, não
obstante os preços praticados pelo mercado imobiliário determinarem, em ambos
os casos, uma diferenciação social espacializada à escala interna. Mas enquanto
as composições identitárias e as estratégias de partilha espacial dos
entrevistados do Príncipe Real sugerem alguns indícios condizentes com um
processo de nobilitação, a seletividade social prévia do Parque das Nações não
só motiva uma confrontação dos entrevistados com o exterior, como sustenta a
partilha de uma identidade social interna.
Em suma, tanto a “cidade espetáculo”, que parece ter sido projetada no Parque
das Nações, como a “cidade autêntica e com alma”, alegadamente sentida no
Príncipe Real, poderão ser entendidas como exemplos de um processo de
mercadorização, que fragmenta a cidade de Lisboa em diversos espaços seletivos
e dirigidos a quem estiver disposto a pagar por eles para, entre outros
aspetos, aceder aos valores sociais e simbólicos que os caracterizam.