Palcos de inovação social: atores em movimento(s)
Introdução
Apesar dos esforços empreendidos na tentativa de sistematizar o conhecimento
disponível sobre a inovação social, esta permanece ainda um terreno de
indefinições, pouco estudado do ponto de vista da sua relação com outros
fenómenos sociais, bem como dos seus próprios produtos, processos e
protagonistas (Read, 2000; Mulgan, 2006). O que se pretende neste texto é, de
uma forma necessariamente sumária, problematizar a relação entre dois domínios
analíticos ainda pouco “íntimos” na literatura científica – os movimentos
sociais e a inovação social. Tomando as sugestões de alguns teóricos dos
movimentos sociais sobre o papel da identidade na ação coletiva, concebe-se o
movimento social como um referencial identitário e cultural a partir do qual os
atores sociais desenham soluções socialmente inovadoras para os problemas que
identificam. Reconhece-se, ainda, que estas soluções tendem a apresentar várias
das características que pautam a inovação social, problematizando-se, portanto,
os movimentos não apenas como palcos ideológicos e identitários de conjuntos
mais ou menos estruturados de ações socialmente inovadoras, mas também como
potenciais campos de ação dos quais emergem os seus principais protagonistas.
1. Atores de inovação social: a centralidade da ação coletiva
O tema da inovação social é tido como relativamente incipiente no seio das
ciências sociais. Embora as primeiras referências ao conceito possam ser
remetidas para os trabalhos Joseph Schumpeter, de um modo geral os
investigadores nesta área concordam com o estado relativamente pouco estudado
do fenómeno (Read, 2000; Mumford, 2002; Sharra e Nyssens, 2009; Howaldt e
Schwarz, 2010). Todavia, o desenvolvimento recente de estudos sobre inovação
social permite descortinar algumas tendências nos usos do conceito, sendo
possível identificar os seus contornos dentre dois principais universos de
significação (Sharra e Nyssens, 2009). Destes, como veremos, o segundo afigura-
se mais abrangente, introduzindo uma maior plasticidade aos seus limites
analíticos e oferecendo assim potencialidades na problematização dos fenómenos
de inovação e mudança social.
Dees e Anderson (2006) têm aplicado o termo como designação de uma escola de
pensamento relacionada com o empreendedorismo social. Na sua aceção, a inovação
social referir-se-á ao processo de condução de um empreendimento económico de
propósito social (Dees e Anderson, 2006; Sharra e Nyssens, 2009), isto é, uma
iniciativa que, apesar de gerar receitas e poder contemplar uma restrita
apropriação lucrativa, não tem como finalidade principal a criação de lucro,
mas sim a geração de impactos positivos na resolução de um dado problema
social. Os inovadores sociais serão, nesta linha, atores socialmente
empreendedores (Sharra e Nyssens, 2009) e caracterizar-se-ão como agentes de
mudança por: (i) adotarem uma missão social; (ii) procurarem continuamente
novas oportunidades que sirvam essa missão; (iii) incorrerem num processo de
contínua inovação, adaptação e aprendizagem; (iv) não se limitarem à
mobilização de recursos disponíveis; e, ainda, (v) por prestarem contas às suas
clientelas e beneficiários (Dees, 2001: 4)1. O fenómeno da inovação social
aparece, neste âmbito, intimamente relacionado ao campo económico e a sua
problematização é ancorada na conceção schumpeteriana do agente empreendedor,
que espoleta o “processo de destruição criativa” na resolução de problemas
sociais (Swedberg, 2009). Uma tal conceção de inovação social, como denotam
Sharra e Nyssens (2009: 3), “está enraizada numa mentalidade típica dos países
de língua inglesa, que celebram particularmente a iniciativa individual e o
empreendedorismo, bem como a liderança e o sucesso pessoal”. Acrescentar-se-ia,
ainda, que uma tal conceção, apesar de situada no mainstreamdos estudos sobre
inovação social, restringe o aparelho conceptual disponível à problematização
do fenómeno ao perspetivá-la, mormente, como um fenómeno de cariz económico e/
ou organizacional; oferece, portanto, um campo epistémico limitado a um
entendimento plural e multidimensional da inovação social.
Um outro universo de significação construído em torno do termo inovação socialé
edificado por Frank Moulaert e sua equipa (Moulaert, Martinelli, Swyngedouw e
Gonzalez, 2005; Moulaert, 2007), cujos trabalhos de investigação começaram por
associá-lo ao desenvolvimento local, abrindo pistas a uma reflexão dos pontos
de encontro (ou de desencontro) entre este e outros fenómenos. Os autores
(Moulaert, 2007: 81) propõem, como alternativa, um conceito de inovação social
mais compreensivo, apelando ao seu caráter contextual e comunitário, porém
enfatizando o facto de combinar, necessariamente, duas dimensões centrais: uma
estrutural, que reporta a mudanças ao nível do institucionalizado, portanto,
das estruturas sociais (“ laws, regulations, organizations, habitus…”) e das
suas dinâmicas de construção e reprodução; e uma outra relativa à agência, que
releva o papel da ação social nas dinâmicas de mudança e transformação dos
elementos de estruturação (na sua construção, reprodução, transformação e
subversão) do status quo. Trata-se, neste âmbito, de uma proposta conceptual
multiescala, passível de analisar fenómenos de inovação social que têm
expressão micro, meso e macro, não havendo, nesta medida, uma proposição
restrita sobre os seus atores, mas antes uma posição compreensiva face à
necessária combinação de atores e impactos a diversos níveis de ação.
A inovação social aparece, neste âmbito, com uma dimensão normativaque importa
considerar, expressa na sua relação com a promoção da inclusão social.
Apresenta, neste sentido, dinâmicas de governação de baixo para cima (bottom-
up) e processos de empoderamento (capacity-building) que advêm de
transformações ao nível das relações de poder, das formas de governação e de
participação política, bem como de aprendizagem social (e organizacional), e
transcende, em larga medida, o domínio das relações de tipo económico (embora
sobre estas também possa incidir). Ela adquire, por conseguinte, um âmbito de
significação mais lato que o da noção de inovação social desenvolvida no quadro
das mudanças de tipo económico, como é proposta pela escola norte-americana.
Enquanto tal, a inovação pressupõe uma transformação das relações e práticas
sociais em diversos campos de atividade social e sugere a alteração das agendas
e dos modos de participação de diversos atores sociopolíticos em prol de um
incremento da justiça social (Moulaert, Martinelli, Swyngedouw e Gonzalez,
2005: 1976-1978).
Murray, Caulier-Grice e Mulgan (2010: 3) sumariam ainda a definição de inovação
social como o conjunto de novas ideias (que poderão ser produtos, serviços ou
modelos de ação) que satisfazem necessidades humanas e geram novas relações
sociais, pelo que, não apenas beneficiam a sociedade, como potenciam a sua
capacidade para agir. É nesta linha de entendimento que Moulaert e sua equipa
se situam, elevando a questão da agência. Os autores (Moulaert, Martinelli,
Swyngedouw e Gonzalez, 2005:1970) aprofundam mais detalhadamente esta dimensão,
afirmando que o objetivo das iniciativas socialmente inovadoras é, por um lado,
promover a inclusão em diversos campos do social (especialmente nos laboral,
educativo e sociocultural), mas também, e por outro, dar voz a grupos sociais
que são frequentemente privados de participação e protagonismo nas estruturas e
sistemas políticoadministrativos, por via de uma restruturação das dialéticas
de poder que pautam as suas práticas sociais e as estruturas que as enformam. A
inovação social apresenta, portanto, três dimensões: uma primeira, que se
debruça sobre os seus produtos; uma segunda, que recai sobre os seus processos;
e, uma terceira, que foca a questão do empoderamento de indivíduos e grupos nas
múltiplas esferas da vida social (Moulaert, Martinelli, Swyngedouw e Gonzalez,
2005:1976). Ao trabalhar estas dimensões, os autores chegam a uma definição de
inovação social que tem vindo a ser largamente aceite e que destaca o papel
central do coletivona inovação social. Defendem que a “inovação social – tanto
ao nível dos seus produtos, como dos seus processos – caracteriza-se por
apresentar três tipos de resultados, quer isolados, quer em combinação,
atingidos através de algum tipo de ação coletiva(por oposição à ação
individual):
1. contribuir para a satisfação de necessidades humanasde outro modo não
consideradas ou satisfeitas;
2. aumentar o acesso a direitos(e.g., através da inclusão política, de
medidas redistributivas, etc.);
3. potenciar as capacidades humanas(e.g., através do empoderamento de grupos
sociais específicos, aumentando o capital social; etc.)” (Martinelli,
Moulaert, Swyngedouw e Ailenei, 2003: 47-48).
As inovações sociais referem-se, pois, a novos arranjos nas relações sociais
que melhoram a condição de vida dos indivíduos em domínios como a saúde, o
trabalho, as relações de género, a participação cívica, as relações
intergeracionais, a gestão ecológica e ambiental, etc.. Elas implicam um tipo
de resultado ao qual subjaz a participação, por via de relações mais ou menos
estruturadas entre vários atores sociais, individuais ou grupais, em atividades
que contribuem para atingir os objetivos dos participantes e do coletivo.
Resultado este que, por via de uma ação concertada pela sua difusão e
disseminação, poderá institucionalizar-se como nova prática social largamente
assumida (André e Abreu, 2006; Howaldt e Schwarz, 2010).
Ora, a pesquisa empírica sobre a inovação social vem permitindo descortinar o
seu ciclo de desenvolvimento (Mulgan, 2007a: 11) e evidenciar o indispensável
papel que a participação coletiva nele assume. Desde o seu surgimento a um
eventual processo de scalability(SIX, 2010), a inovação social implica um dado,
e crescente, nível de participação e reconhecimento coletivo. Como refere
Hochgerner (2009, apudHowaldt e Schwarz, 2010: 31) a “adaptação das inovações
sociais, por definição, não ocorre em ambientes individuais, mas antes, e
sempre, numa dada formação social”. Esta adaptação, que implica que os
resultados acima apontados por Martinelli, Moulaert Swyngedouw e Ailenei (2003)
se concretizem por via da reconfiguração de uma dada prática ou conjunto de
práticas dos atores sociais, não poderá acontecer como resultado da ação
isolada de um agente social (Howaldt e Schwarz, 2010: 31). Ela pressupõe,
outrossim, um processo de difusão e de disseminação que, por sua vez, comporta
uma necessária aceitação social da prática per se,bem como dos seus efeitos na
vida dos atores e grupos que a concretizam e a reproduzem(Howaldt e Schwarz,
2010: 31). Portanto, mesmo nos estudos que focam a ação de um empreendedor
social, em que se enfatiza a atividade “messiânica” de um indivíduo, o processo
de inovação social que lhe subjaz será sempre, em última instância, um processo
de participação coletiva. Curiosamente, os próprios autores das principais
correntes de análise da inovação social, apesar de recorrentemente evidenciarem
o papel dos empreendedores sociais, tendem a concluir que não há evidência
empírica sobre a possibilidade de um indivíduo ou uma única organização
conseguirem atingir, isoladamente ou sem algum tipo de ação política, os fins
últimos de transformação social a que se propõem (Mulgan, 2007b: 23).
2. Inovação social em movimento(s)
É pela inevitabilidade do reconhecimento da natureza coletiva da inovação
social que alguns autores apontam, precisamente, os movimentos sociais como
“espaços” privilegiados de inovação social (Moulaert, 2007; André e Abreu,
2006; Howaldt e Schwarz, 2010). Os movimentos sociais são, nesta linha de
entendimento, perspetivados como “forças sociais organizadas que aglutinam as
pessoas” e como “campo de atividades e de experimentação social” nos quais a
mobilização de recursos e a ação coletiva organizada se constituem como forças
“geradoras de criatividade e inovações socioculturais” (Gohn, 2003: 14). Não
obstante, é a perspetiva acionalista dos movimentos sociais que parece oferecer
especial heuristicidade à análise das suas aposições com a inovação social. A
edificação de um projeto– denominador comum aos movimentos (Gohn, 2002) e à
inovação social –, pressupõe a verificação dos três princípios identificados
por tal perspetiva na análise dos movimentos: identidade, totalidade e oposição
(Lima e Nunes, 2004). A existência de um ator social coletivo (princípio de
identidade) que se constrói na relação com o meio e por demarcação a um
adversário (princípio de oposição), pressupõe tomadas de posição do mesmo face
a um determinado referencial sociocultural, político-institucional ou económico
e organizativo (princípio de totalidade), quer nos movimentos, quer na inovação
social. Conforme Lima e Nunes (2004: 2) nos elucidam, “os actores envolvidos na
construção da acção comum têm de partilhar uma identidade assente em relações
de solidariedade (...)”. Apesar de não muito discutido pelos investigadores da
inovação social, este princípio identitário estará também na sua base
estruturante. Não haverá ação socialmente inovadora, independentemente do tipo
de ator que a propulsione (seja este um indivíduo, grupos informais ou uma
organização) se, a dada altura do seu desenvolvimento, esta não sedimentar uma
partilha, relativamente manifesta, de um conjunto de princípios que estabeleçam
os contornos de uma cognição particular que situe e imbua de sentido o conjunto
de práticas “inovadoras”. Como Melluci (1995: 43) enfatiza “os atores produzem
a ação coletiva por estarem aptos a se definirem a si próprios e às suas
relações com o meio”. Uma tal capacidade de autodefinição e autoidentificação
de um coletivo deriva de um trabalho contínuo sobre o seu projeto, no que
respeita aos seus fins, aos seus meios e, especialmente, à sua relação com o
meio – o seu campo de ação (Melluci, 1995: 44). A ação coletiva processa-se,
pois, por via de uma relação partilhada por um grupo de atores que se define e
se demarca pela sua especificidade relacional com o meio que, por sua vez, não
apenas delimita o campo de ação, mas também enquadra o seu sentido e apresenta
as condições que lhe são dadas, isto é, as suas possibilidades e os seus
constrangimentos. A identidade confere coesão entre os planos da ação e da
cognição coletivas.
Touraine (1998: 127-128) expõe ainda a questão da relação com o meio referindo-
se à existência de um conflito central em que o sujeito (representado no
movimento social) põe em causa o modelo cultural dominante, isto é, questiona o
mercado, a tecnocracia e os poderes autoritários, colocando em questão o “modo
de utilização social dos recursos e dos modelos culturais”. Ora, reportando-se
aos modos em que se dá a inovação social, também André e Abreu (2006: 128-129)
destacam as dinâmicas de construção da adversariedade e do caráter oponente ao
status quocomo elementos de demarcação identitária. Os autores adiantam que “
(...) a inovação social emerge fora das instituições e geralmente contra elas,
sendo o resultado de uma mobilização em torno de um objectivo, protagonizada
informalmente por um movimento social ou, com uma matriz mais estruturada, por
uma organização” (André e Abreu, 2006: 129). Também Mulgan (Mulgan, 2007b: 22-
23), afirmando a mudança da forma como as sociedades pensamcomo “objetivo
último da inovação social”, releva esta ideia da oposição ao status quoe a
natureza política implícita dessa oposição.
A inovação social parece apresentar, portanto, os três elementos constitutivos
dos movimentos sociais (Gohn, 2002): os atores, o adversário e o que está em
jogo. Sobre os atores, como é possível perceber, parece não existir consenso,
situação que deriva da ainda frequente associação entre inovação social e
inovação tecnológica ou económica, que leva certos autores a tomarem a inovação
social meramente como um produto ou um serviço. Reduzi-la a este nível,
deixando cair a sua natureza eminentemente relacional(tão claramente descrita
por Moulaert, Martinelli, Swyngedouw e Gonzalez, 2005; Moulaert, 2007 e
Martinelli, Moulaert, Swyngedouw e Ailenei, 2003), impede-nos de equacionar a
inovação social como parte de um processo coletivo de transformação social em
que agência e estrutura surgem como dimensões analíticas imprescindíveis, quer
ao nível dos produtos e dos “conteúdos” da inovação (isto é, dos resultados
obtidos pelas suas propostas/projetos de mudança), quer ao nível dos seus
processos (o seu modus operandi, que reporta aos elementos de estruturação
relacional). Impede, ainda, de compreender que a inovação social
(independentemente do domínio ou campo de atividade em que emerge) comporta um
projeto de caráter normativo onde a própria conceção de sociedade está, de
forma mais ou menos manifesta, em jogo.
Repare-se que as inovações que encontramos no seio dos novos movimentos
sociais, isto é, todos os processos e resultados que são experimentados e
difundidos por estes movimentos no seio das sociedades ontemporâneas, acontecem
como produto de uma construção coletiva, decorrente da partilha de uma matriz
de princípios identitários e de uma posição de adversariedade face às normas e
instituições conservadoras. Pense- se no movimento por uma economia social e
solidária, por exemplo, e no modo como este reúne as condições para ser
problematizado como palco de inovação social ao aglutinar coletivos de atores
que, ainda que dispersos a nível global, partilham um projeto de transformação
social assente numa oposição ao modelo económico dominante. Os movimentos
sociais, seja por uma economia solidária, por uma green society, pela defesa
dos direitos humanos, de género ou das crianças, bem como os alterglobalização,
antinucleares, etc., tendem a desdobrar-se num conjunto de coletivos, mais ou
menos organizados ou formalizados, que empreendem as suas lutas com referência
a uma identidade coletiva que simultaneamente os define e os demarca dos demais
(Melluci, 1995). Enquanto tal, eles enformam um referencial normativo para
iniciativas socialmente inovadoras protagonizadas por coletivos informais,
organizações formais e/ou atores individuais “empreendedores”. Aliás, num
processo de contínua construção identitária, os movimentos tendem a traduzir-se
em estruturas organizadas da sociedade civil (Touraine, 1998), cujas ações se
vão concertando na procura de resultados e envolvendo os atores, individuais e
grupais, num processo de capacity- building(Moulaert, Martinelli, Swyngedouw e
Gonzalez, 2005; Moulaert, 2007), decorrente dessa contínua aprendizagem que os
permite delinear propostas de resolução, a diferentes escalas de intervenção,
para os problemas no campo em que atuam e tornarem-se, cada vez mais,
autonomamente ativos nas relações que estabelecem com o meio (Melluci, 1995:
49).
Este processo, que se trata de um processo de empoderamentodos atores da
sociedade civil (Gohn, 2003), é um dos principais efeitos processuais da
inovação social sobre os seus atores, uma vez que implica a sedimentação de
capacidades do coletivo para agir (capacity-building) e ser autónomo na
satisfação das suas necessidades e exigências (Gohn, 2003: 16-17). O incremento
do poder de ação e de participação social, que ocorre por via das conquistas
sucessivas dos movimentos, é também característica-chave da inovação social,
decorrendo de um rearranjo das relações e práticas sociais do coletivo face ao
quadro de legitimação imposto pelo campo identitário e de ação que define o
adversário, seja este um ator identificável ou, de forma mais difusa, um dado
estado de coisas. Em ambos os casos, tanto os atores socialmente inovadores
como os movimentos sociais (pressupondo-se que se tratam de atores
diferenciados) vão, assim, “ganhando terreno” na legitimação dos seus
postulados e objetivos de mudança social. Questão que nos leva,
inevitavelmente, a destacar que, também em ambos os casos, os atores coletivos
conhecem o que está em jogo e trabalham os elementos constituintes do campo, de
modo a produzir os resultados por si esperados (Mulgan, 2007a: 28). Conforme
denotam André e Abreu (2006), os recursos informacionais, designadamente os
conhecimentos e os saberes são elementos-chave da inovação social, sendo-
o também, como ressalva Melluci, dos movimentos sociais. Tendencialmente, serão
os atores mais experientes no campo e mais conhecedores do que está em jogo a
espoletar e a liderar os movimentos sociais (Gohn, 2002: 156), assim como o
parecem ser, igualmente, no seio das iniciativas sociais inovadoras.
Todavia, o facto de se verificarem dinâmicas de liderança no seio das inovações
sociais, à semelhança do que acontece no seio dos próprios movimentos (Della
Porta e Diani, 2006), não pode significar que os processos de mudança e de
inovação espoletados se efetivem pela ação individual. Como frisa Nilsson
(2003: 6), a inovação é sempre sociale, tendo os movimentos um papel histórico
nos processos de mudança social, a literatura sobre os mesmos não pode deixar
de oferecer potencialidades de esclarecimento à identificação dos atores de
inovação social. Se a inovação é sempre social, e se compreende um projeto de
transformação – seja a nível comunitário, seja societal –, ela implica que
diversas escalas de intervenção sejam trabalhadas no sentido da mudança social
– pressupõe, portanto, que uma luta socialseja empreendida. Não se trata de
considerar os movimentos sociais como os protagonistas da inovação social.
Trata-se, antes, de reconhecer que os repertórios da ação coletiva e de luta
social são diversificados e assumem formas organizativas variadas (e com
diversos graus de formalização), apesar de poderem remeter a um referencial
ideológico e identitário comum (que unifica o movimento). Não se trata, também,
de afirmar-se que os atores que promovem a inovação social são as organizações
e os grupos do movimento social. Apesar de se conceber o movimento social como
uma rede de atores, não se deve, todavia, deixar de reconhecer a diversidade
dos mesmos nem de esclarecer que as organizações dos movimentos – aquelas
afetas à gestão dos seus recursos e ao trabalho de networkinga que o mesmo
obriga para a sua manutenção e atuação – não são as únicas que reportam ao
sistema de crenças, valores, opiniões e projetos que o caracterizam. O
transnacionalismo que atualmente caracteriza as exigências societais parece
dificultar um processo de filiação categorial dos repertórios de ação e de
protesto dos diferentes sujeitos (Wieviorka, 2003: 35). Como somos levados a
concluir pelos estudos da inovação social e como a literatura sobre os
movimentos nos vem elucidando, a dinâmica dos novos movimentos sociais e das
novas formas de associativismo parece caracterizar-se por um regresso ao local
e à comunidade, que passa a ser “tratada como um sujeito ativo, e não como
coadjuvante de programas definidos de cima para baixo” (Gohn, 2003: 19).
Facilmente os atores se movem entre a participação em protestos e formas de
comunicação reivindicativa à escala planetária e a atuação “na vida local de
uma associação” (Wieviorka, 2003: 35), tornando, portanto, cada vez mais
difícil situar em limites analíticos os tipos de sujeitos e de ação
potencialmente transformadora que eles preconizam.
Nesta medida, a diferenciação entre atores do movimentoe atores em movimento
(s)parece profícua à análise articulada da inovação e dos movimentos sociais,
já que ela permite diferenciar repertórios de ação “tipicamente” empregues em
diversas escalas de intervenção – a nível macro, de intervenção política e de
transformação sistémica; a nível micro e meso, de intervenção e mobilização
comunitária na experimentação de propostas de organização social alternativas.
Compreende-se, assim, os primeiros como atores que servem os interesses do
movimento ao nível da luta pelos projetos de transformação estrutural – aqueles
que implicam a atuação de aparelhos de governação central e apresentam,
portanto, um reportório de ação direcionada para a luta política propriamente
dita (manifestações públicas, protestos, fóruns de discussão, petições, etc.);
e permite sugerir os segundos como coletivos que, a nível local e comunitário,
agem ao nível da experimentação social, isto é, operacionalizam, a uma escala
micro-meso, as propostas concretas do movimento social com o qual partilham o
sistema de crenças e referencial ideológico.
3. Atores, escalas e história – problemas em discussão
Assumindo-se a natureza “dual” da inovação social (estrutura vs.ação; global
vs.local; sociedade vs.comunidade), o problema da escalana sua análise torna-se
uma inevitabilidade. O processo de “escalabilidade” que certos autores
reconhecem na inovação social implica dinâmicas de mudança que acontecem a
diversas escalas do social – do plano micro (da interação social), ao meso
(inovação organizacional) e macro (societal). Todavia, a história traz-nos
inúmeros exemplos de inovações sociais cuja origem não reside, necessariamente,
no plano das micro relações sociais. Exemplos históricos dados por autores da
inovação social – o caso do ensino público e universitário gratuito, dos
seguros sociais nacionais (que vieram originar o Estado Social) ou outras
inovações de caráter universalista – tendem, com efeito, a implicar uma ação
centralizada, de tipo top-down, para a sua concretização, ainda que as suas
reivindicações emirjam no seio da sociedade civil. O papel dos movimentos
sociais, neste enquadramento, é imprescindível, já que estes tendem a
estabelecer um sistema de ação cosmopolita no qual as organizações locais, que
representam os interesses comunitários, se inserem. Como denota Moulaert (2007:
69), as situações em que os processos de governação são especialmente
centralizados tendem a originar movimentos socialmente inovadores que procuram
maior controlo local sobre a ação pública. A ação cosmopolita dos movimentos,
que constituem redes alargadas (nacionais e transnacionais) de coletivos que
convergem os seus repertórios de ação para a defesa de interesses que lhes são
comuns (Della Porta e Diani, 2006), constitui um elemento central ao nível da
luta política (mediante representação, defesa, pressão, protesto na esfera
pública, etc.) pela incorporação de tais interesses ao nível das estruturas
centrais de governação. E, como não poderia deixar de ser, quanto maior o
caráter universalista dos interesses (medidas redistributivas, defesa de
direitos sociais, preservação do estado social, etc.), mais a ação pública
centralizada é necessária (Moulaert, 2007).
O caso do movimento por uma economia social e solidária é um exemplo claro das
dinâmicas de interdependência que se estabelecem a diferentes escalas na
produção da inovação social. A proliferação de modelos alternativos de
organização do trabalho e de distribuição de riqueza produzida – de autogestão,
de gestão participada, cooperativos, associativos, etc. – acontece ao nível
comunitário, mas tem expressão a diversas escalas de observação: (i) micro –
relativa às relações de trabalho, subvertendo o modelo dominante ao nível da
divisão social e técnica do trabalho no seio das novas organizações criadas,
etc.; (ii) meso – já que origina processos de experimentação de novos, ou
renovados, modelos organizacionais e comunitários; mas também (iii) macro – já
que congrega, no plano transnacional, a partilha de um referencial ideológico
que apresenta um projeto de transformação do modelo capitalista de organização
do trabalho e da produção, por um lado, e de acumulação e distribuição de
capital, por outro. Isto não significa, no entanto, que os atores coletivos
perpetrem ações com impacto a todas as escalas analíticas. O movimento, que não
pode ser confundido com uma organização (Della Porta e Diani, 2006: 25),
apresenta-se como uma rede de múltiplos atores coletivos, com repertórios de
ação diversificados, que constituem um ator identificável num sistema de
crenças e ideologias, enquanto movimento por uma outra economia(Laville, 2009).
Reúne, pois, sob uma identidade comum, uma variedade de organizações – por um
lado, as organizações do movimento(que trabalham a continuidade e a manutenção
do movimento enquanto rede de cooperação na defesa de uma causa ou de um
projeto de sociedade), mas também todas as outras formas de organização
(formalizadas ou não) que espelham os processos de experimentação social que
efetivam as propostas concretas de um tal referencial ou projeto ideológico – o
que podemos designar de atores em movimento(s)2 . Neste âmbito, Laville (2009:
9) propõe uma diferenciação interessante entre militantes políticose sujeitos
alternativos, que podemos considerar como atores do movimentoe atores em
movimento. Reportando-se ao movimento por uma economia social e solidária, o
autor explica que “os militantes permanecem fiéis à prioridade atribuída à
acção política”, enquanto os segundos “(…) procuram constituir imediatamente
espaços de autogestão limitados” (Laville, 2009: 9). Veja-se, a título de
exemplo, os casos das empresas de autogestão, recuperadas por trabalhadores na
Argentina e no Brasil, cujas formas começam a multiplicar-se noutras partes do
mundo.
Esta diferenciação é também percetível no caso da Barefoot College3. Tendo a
sua génese nos anos 60 do século XX, a Barefoot College – atualmente uma
organização não-governamental – disseminou uma estratégia de desenvolvimento
local alternativo que tenta operacionalizar um modelo comunitário cujas bases
ideológicas reportam aos ideais dos novos movimentos pacifistas, ambientalistas
e de defesa dos direitos humanos, que nasceram da onda dos novos movimentos
sociais das décadas de 1960-1970. E, apesar da sua declarada ligação aos
movimentos sociais, a Barefoot College não é uma organização de movimento
social, mas sim uma organização comunitária que trabalha os domínios da
educação, da sustentabilidade ecológica, das relações de género (o direito das
mulheres) e de poder, ao nível das comunidades locais. Isto não a isenta,
todavia, de associar o seu referencial ideológico a alguns dos novos movimentos
sociais ou mesmo de participar na mobilização política e cívica das comunidades
com que atua. Neste ponto, ela exemplifica claramente um ator em movimento, na
medida em que propulsiona uma dinâmica de inovação social comunitária e não
resume a sua ação à militância política.
Seja no caso do movimento por uma economia social e solidária, seja no caso dos
movimentos pacifistas, feministas ou ecologistas, é possível identificar, no
plano empírico, diferentes níveis de intervenção que privilegiam a conquista de
mudanças em diferentes escalas, sendo as diferentes formas de intervenção sobre
o social o produto da ação de coletivos que assumem formas organizativas
tendencialmente mais ajustadas à exequibilidade das suas propostas. A
existência de um problema de escalana interseção da análise da inovação social
com os movimentos sociais é, nesta medida, um problema aparente, que emerge de
dois problemas efetivos – um primeiro, que deriva da persistente tendência dos
estudos sobre inovação social penderem para um processo de teorização arreigado
a uma terminologia economicista na leitura deste fenómeno, descurando a
heuristicidade das perspetivas (estruturalista, acionalista, construtivistas…)
da sociologia e outras ciências sociais; e, um segundo, de se perspetivar, na
linha de um decorrente viés epistemológico, a predominância da ação individual
na geração da inovação social. Os princípios de análise económica – de
racionalidadedos agentes, decusto-benefícioe custo-efetividade, de
aproveitamento de oportunidade, bem como as dinâmicas entre a ofertae a
procura, de escalabilidadee de ciclo de produto –usados na análise da inovação
social (Mulgan, 2007b), oferecendo, decerto, potencialidades a uma análise
transdisciplinar do fenómeno, não podem assumir a sua exclusividade analítica.
Uma tal exclusividade tolda uma perspetiva holística sobre a inovação social,
impedindo a compreensão das diversas dimensões do fenómeno e da sua
interdependência mútua. No caso, por exemplo, dos movimentos ecologistas/
ambientalistas é possível compreender a integração, num sistema de crenças e
valores comum (numa identidade), diversos tipos de organizações que trabalham a
introdução de mudanças a diversas escalas: (i) organizações de trabalho
político – que introduzem inovações ao nível dos aparelhos e mecanismos de
regulação central e assumem, inclusivamente, uma escala de integração
supranacional; (ii) das organizações dos movimentos – grupos ativistas que
trabalham ao nível da esfera pública na defesa de uma causa comum e na
manutenção de uma identidade coletiva a que se referenciam outras formas
organizativas da sociedade civil que trabalham essa mesma causa; e, ainda,
(iii) das organizações ou grupos comunitários que concretizam, ao nível local,
soluções alternativas para os problemas vividos do ponto de vista da
sustentabilidade ecológica4.
Importa, ainda, não alhear o fenómeno da inovação social da sua historicidade.
Como Moulaert (2007) refere, a inovação social não implica necessariamente a
introdução do novo, mas antes a assunção de “boas práticas”, isto é, práticas
que servem melhor interesses que são atuais, mesmo que impliquem retomar
arranjos institucionais ou normativos que existiram no passado. O caráter
normativo da inovação social, presente na proposta de mudança que esta
pressupõe e, portanto, nos pressupostos ideológicos e valorativos que a
norteiam, implica que as transformações propostas reportem ao estado atual de
coisas, mas não isenta as propostas de se ancorarem em “velhos” padrões,
valores ou ideologias, ou mesmo de pressupor o retorno de formas de organização
social já experienciadas. Nas suas palavras, “a inovação social, enquanto
mudanças ao nível das instituições, pode também, por conseguinte, significar o
retorno a ‘velhas' formas institucionais, formas que podem até ser consideradas
como reformistas” (Moulaert, 2007: 81). Neste sentido, o novoconstrói-se como
referência a um aqui e agora, mas essa construção não é desvinculável da
história e da memória coletivas. Quando as inovações visam satisfazer
necessidades humanas, aumentar o acesso a direitos ou incrementar a capacidade
sociopolítica, elas podem, com efeito, fazê-lo de acordo com propostas que
visam recuperar situações que foram perdidas. Ao nível comunitário, as empresas
cooperativas de autogestão são exemplo disso, como são também as pressões para
condições estruturais que garantem o acesso e exercício de direitos sociais. Os
movimentos, mais uma vez, têm aqui um papel mediador, tanto ao nível das
escalas em que a ação social visa surtir efeitos, quer ao nível da reconstrução
da memória coletiva que está na base de propostas mais “reformistas”. É neste
sentido que Moulaert (2007: 70) adianta que, ao contrário do que acontecia no
século XIX com as iniciativas de entreajuda comunitária, de tipo mutualista e
cooperativista, a atual institucionalização da economia social e solidária não
constitui uma inovação social que preencha um vazio; na realidade ela reemerge
como resposta de substituição ao desmantelamento de direitos previamente
adquiridos (do Estado Social).
Ora, estas respostas, ainda que ressurgentes ao nível comunitário, comportam
uma dinâmica de participação cívica bottom-up. Isto significa que elas contêm
em si um pressuposto de afetação de outras escalas da vida social, visando
alterações a nível meso no plano das organizações e das instituições, mas
também macro, pressionando a uma modificação das estruturas socioeconómicas
mais vastas. Uma tal articulação de planos de ação obriga, portanto, a uma
integração dos planos de observação e de análise, impedindo-nos de cair num
argumento de localismo(Moulaert, 2007: 82), seja este:
* existencial, presente na ideia de que as ações e iniciativas locais poderão
ser suficientes à satisfação das necessidades humanas e sociais; ou
* sociopolítico, presente na ideia de que a descentralização da governação e a
sua devolução ao nível do local e do comunitário é uma estratégia
intrinsecamente ótima, dispensando o papel e a importância da governação
interescalar.
A inovação social é, portanto, um fenómeno com enquadramento contextual e
temporal (path-dependency), que compromete diferentes tipos de ação e de atores
coletivos e que visa surtir efeitos em diferentes escalas das estruturas,
dinâmicas, práticas e instituições sociais. Compreende, portanto,
interdependências complexas entre estas, e tem uma relação manifesta com um
referencial normativo partilhado por atores coletivos com atuação a diversas
escalas da organização social, que podem, mediante certas circunstâncias,
integrar ou autoidentificar-se com um ou vários movimentos sociais.
Notas finais
Para finalizar, importa deixar claro que não se advoga que a inovação constitua
um movimento social nem que estes sejam, necessariamente, socialmente
inovadores. Pretende-se, sim, demonstrar que, dado o caráter normativo da
inovação social – a sua relação explícita com a promoção da inclusão social e o
relativo pressuposto de empowerment(capacidade sociopolítica) dos atores
sociais –, ela pressupõe processos de mudança social que não podem ser
analisados exclusivamente através do local, do ahistórico (uma perspetiva
estritamente sincrónica) ou do económico. Os movimentos sociais, bem como a
literatura que sobre os mesmos está disponível (e os respetivos
desenvolvimentos teóricos e epistemológicos) oferecem, nesta medida,
potencialidades heurísticas incontornáveis à análise da inovação social,
especialmente porque, do ponto de vista empírico, se reconhece que estes têm um
papel ativo – que não é apenas o exercido no campo político – na produção da
própria inovação social e podem, com efeito, constituir sistemas de ação
socialmente inovadores.
O texto pretende, neste sentido, frisar a natureza coletiva dos fenómenos de
inovação social, natureza essa assente nos processos de construção social
inerentes à transformação das instituições sociais, aqui compreendidas no seu
sentido sociológico (desde leis e regulações aos habituse disposições
institucionalizadas). A compreensão de como estas transformações se processam,
todavia, não pode ser restrita à observação das características do
“empreendedor” social, nem vincular-se exclusivamente a uma análise de tipo
economicista como as que são frequentemente usadas para a análise da inovação
social. A partir do momento em que assumimos uma tal noção de inovação social
somos impelidos a socorrer-nos de outros conhecimentos disponíveis à
compreensão do fenómeno. Neste caso, privilegiámos um encontro entre a inovação
social e os movimentos, procurando dar conta de algumas potencialidades
analíticas de um entendimento sobre o papel dos coletivos na produção da
inovação social.