A insustentável sustentabilidade das previsões económicas: reflexividade,
etnoeconomia e neoliberalismo
Introdução
Desde o desencadear da crise económico-financeira em 2008, as previsões de
natureza económica têm ganho um relevo especial. De forma constante, deparamo-
nos com elas a partir das suas múltiplas procedências: governos nacionais,
organismos internacionais, observatórios, institutos de investigação,
universidades, agências ou instituições financeiras. Neste terreno também
contamos com a voz dos peritos, da comunicação social, dos partidos políticos,
dos sindicatos, das associações e da sociedade civil em geral, a discutir essas
e sobre essas previsões enquanto estruturadoras do discurso público sobre da
evolução da economia. Matéria habitual de previsão é, por exemplo, o quadro
macroeconómico básico e variáveis como o PIB, a despesa pública e privada, o
investimento, as exportações e as importações, o desemprego ou a balança
comercial. Em suma, se o cidadão necessitar de uma ideia sobre o futuro, o que
não faltam são prognósticos semanais, mensais, trimestrais ou anuais; ou
previsões novas, recentes, corrigidas e atualizadas. Como tal, este artigo tem
por objetivo a análise, sob o prisma da reflexividade social, dos pressupostos
e dos fundamentos habitualmente assumidos na elaboração de previsões
económicas. Trata- se, pois, de refletir sobre:
a. O fato de as previsões serem conhecidas pela mesma sociedade cujo futuro
económico está ser prognosticado;
b. A possibilidade de as previsões gerarem, mediante o seu prognóstico, uma
alteração da situação prevista;
c. As possíveis consequências da interação existente entre as previsões como
materialização do conhecimento económico especializado e o saber económico
de senso comum.
A partir deste conjunto de reflexões procura-se demostrar que as previsões
económicas têm interesse para a sociologia sempre e quando abandonemos uma
compreensão das mesmas como instrumento descritivo do futuro e as analisemos
como instrumento performativo do porvir. Isto é, contrariamente ao significado
normalmente atribuído, as previsões não só descrevem uma possibilidade de
futuro mas também fazem parte do cenário económico que procuram prognosticar.
Este artigo tem uma pretensão concreta: refletir teoricamente sobre a
componente reflexiva da previsão como um tipo específico de conhecimento
social. Tal significa que serão ponderadas diferentes possibilidades tendo como
referência questões clássicas e estruturais da teoria sociológica relativas à
interdependência de leis e regularidades sociais e a capacidade de agência dos
atores. Sendo esta a prioridade do artigo, não se pretende aqui oferecer uma
revisão exaustiva e completa do estado da arte no que diz respeito à questão da
previsão económica. Neste sentido, existem contributos recentes e qualificados
acerca da vertente metodológica e filosófica da previsão (González, 2015) que
neste texto só poderá ser, em parte, abordada.
De acordo com este objetivo, enquadramento e pretensão, este artigo apresenta,
numa primeira seção, uma abordagem genérica da questão da capacidade de
previsão no domínio da ciência económica. Numa segunda seção são introduzidas
as principais considerações desenvolvidas por vários economistas acerca das
relações entre essa capacidade de previsão e reflexividade, o que implica
refletir sobre as eventuais alterações a que essas mesmas previsões estão
sujeitas quando conhecidas pela sociedade. A terceira e última seção centra-se
na relação entre previsões e leis económicas, na produção intencional ou não
intencional de resultados económicos com base em previsões e na interação entre
as previsões e o saber económico de senso comum. Em resumo, as páginas que se
seguem consideram as previsões económicas como um objeto legítimo de indagação
sociológica que coloca questões teóricas, epistemológicas e cívico-políticas de
grande transcendência, quer para o cientista social, quer para o conjunto dos
atores sociais.
1. Previsões económicas: enquadramento geral
Uma previsão económica é uma estimação probabilística do futuro baseada em
informação passada ou presente. Fala-nos da verosimilitude da ocorrência de um
dado fato, fenómeno ou processo. No entanto, há dois elementos estreitamente
ligados ao exercício da previsão que convém antes de mais apontar e que serão
desenvolvidos posteriormente. O primeiro é o fato de as previsões serem
construídas a partir da enunciação de alguma lei económico-social, mesmo na sua
aceção mais lata. Isso explicaria a existência de certas regularidades ou
tendências típicas no funcionamento das sociedades que, por sua vez, gerariam a
previsibilidade necessária capaz de permitir a elaboração de previsões. O
segundo é a frequente associação entre as previsões e a prescrição de medidas e
políticas que visariam a sua confirmação ou a sua refutação e que, por esse
motivo, se comportariam como pontos de referência para os decisores político-
económicos. Assim, a questão da regularidade e da prescritividade gravitarão,
como veremos, de maneira constante em torno das previsões económicas.
É consensual considerar Milton Friedman como o autor que define a ortodoxia num
sentido positivista e objetivista no campo das previsões. De acordo com
González (2012), para Friedman, o êxito na previsão deve ser adotado como
critério epistemológico, axiológico e metodológico fundamental da ciência em
geral, e da economia em particular. Como tal, a sua cientificidade medir-se-á
pelo grau de coerência entre a realidade e a previsão: quanto maior for essa
coerência, mais sólido será o estatuto científico da disciplina. Com mais ou
menos retificações e adendas, a posição de Friedman tem instituído certa
ortodoxia entre os economistas de orientação positivista: segundo esta
perspetiva, a ciência económica é capaz de antecipar cenários e resultados
futuros com um grau elevado de precisão e com umas margens de erro
progressivamente reduzidas (Lucas, 2003: 1). Esta ortodoxia, que é
simultaneamente uma espécie de senso comum entre os setores da disciplina que
partilham a referida orientação, tem conduzido à elaboração de um conjunto de
justificações típicas que supostamente explicariam os desvios ou os erros nas
previsões, e que são baseadas numa noção genérica de complexidade (González,
2006). Tal complexidade faz com que:
a. seja difícil antecipar a conduta humana, inevitavelmente determinada por
múltiplas variáveis.
b. seja difícil ter em conta e selecionar as variáveis estritamente
relevantes para a elaboração de uma dada previsão;
c. seja difícil calcular o possível resultado agregado produzido por uma
miríade de ações individuais submetidas ao influxo de inúmeras variáveis;
d. seja difícil saber se estão a ser considerados os dados necessários ou se,
pelo contrário, os dados disponíveis são insuficientes para realizar uma
previsão.
Apesar dos problemas que se colocam, os peritos continuam a oferecer
recomendações de ordem técnica ou deontológica que, supostamente, contribuem
para afinar as previsões: ampliar as séries temporais de dados, melhorar a
recolha e o tratamento da informação, desenvolver programas informáticos mais
sofisticados, trabalhar em rede para aumentar o número de potenciais
avaliadores, rever e medir periodicamente os erros cometidos, elaborar
previsões alternativas de acordo com cenários também alternativos de futuro e
interpretar com prudência os dados e as próprias previsões (Pulido, 2013).
Argumenta-se que, apesar dos erros e dos desvios, as previsões são
imprescindíveis para decidir, planear, organizar e gerir tanto uma empresa como
um Estado (Pulido, 2006).
Contudo, nem todas as correntes de pensamento económico se revêm nesta
centralidade outorgada às previsões. As correntes que poderíamos chamar de
heterodoxas – institucionalistas, neomarxistas, pós-keynesianos… – estão mais
próximas de uma visão que Lawson (1997) designou como realismo crítico. Os
princípios deste realismo reconhecem: a) a impossibilidade de realizar
previsões fora de contextos experimentais; b) a possibilidade de identificar
tendências e cenários futuros alternativos; c) a inutilidade de declarar como
objetivo prioritário da ciência económica a previsão; e d) a necessidade de
afirmar que a verdadeira missão da ciência económica é a compreensão das
estruturas e dos processos económicos.
1.1. A reflexividade das previsões vista pela economia
Até agora, todas as considerações que foram feitas acerca da precisão,
fiabilidade, erros e desvios das previsões remetem para explicações de cariz
técnico ou deontológico. No entanto, um dos fenómenos sociais mas interessantes
associados à previsão económica é o da reflexividade social. Este conceito
refere-se aos eventuais efeitos da difusão pública da própria previsão na
sociedade ou, dito de um outro modo, é um conceito que chama a atenção para a
influência das previsões na sociedade e, simultaneamente, da sociedade nas
previsões. Nesta linha, uma outra possibilidade explicativa dos erros e dos
desvios passa pelo conhecimento da previsão pela sociedade de receção. Eis,
portanto, um convite para refletir sobre as implicações sociais das previsões
ou para pensarmos, por exemplo, em que medida a previsão da variação da taxa do
PIB, da poupança, da dívida, do investimento ou do desemprego pode ou não
alterar os comportamentos dos atores económicos incluídos nessa previsão, no
momento em que estes conhecem o seu conteúdo. Não podemos esquecer que essas
previsões são difundidas na sociedade, que pode aceitá-las total ou
parcialmente ou que pode tomá-las como elemento orientador da sua ação: a sua
finalidade, teoricamente descritiva já que avança um cenário futuro provável,
pode gerar alterações na situação cujo desenvolvimento é suposto prever.
Basta uma simples analogia para perceber melhor as implicações da reflexividade
neste terreno. Sempre que um meteorólogo prediz as condições climatéricas tem a
certeza absoluta que o tempo atmosférico não pode “ler” as suas previsões.
Também não o faz o meteorito cuja trajetória é prevista pelo cosmólogo, nem o
vulcão que poderia entrar em erupção segundo o geólogo. Pelo contrário, um ser
humano é perfeitamente capaz de saber o que é que dizem as previsões dos
economistas sobre a sociedade na qual vive e, em função dessa informação, pode
ou não orientar a sua conduta. Quando este processo individual tem lugar em
termos agregados, a previsão pode vir a ser confirmada, refutada ou, o que
costuma ser mais habitual, o resultado final pode ser diferente do inicialmente
previsto. Esta é, de fato, a característica mais distintiva das ciências
sociais: o conhecimento que produz pode ser utilizado pelos indivíduos para
orientar o seu comportamento, motivando modificações da situação, do fenómeno
ou do processo cuja evolução esse mesmo conhecimento diz descrever. A previsão
perde o estatuto de afirmação externamente elaborada sobre a realidade para se
converter em mais um elemento da realidade prevista. A consequência imediata
deste fenómeno é a insustentabilidade da suposta neutralidade axiológica da
economia como garantia de cientificidade. A ciência económica não é um saber
assético ou distanciado como corresponderia ao estatuto ideal do conhecimento
científico; é sim um saber envolvido e comprometido com a realidade que procura
analisar ou compreender, fato que hoje é amplamente reconhecido por muitos
representantes da disciplina (Reis, 2010).
No campo da economia, a questão da reflexividade tem merecido diferentes
abordagens. Segundo Sandri (2009: 74), a primeira vez que a questão ganha
alguma centralidade é num artigo de 1928 da autoria de Oskar Morgensten. Neste
artigo o autor assinala o principal paradoxo derivado da formulação e difusão
de previsões económicas: cada uma delas vem acompanhada de um ajustamento da
conduta dos atores económicos, fato que altera a situação e que requere uma
nova previsão que, por sua vez, gera um novo ajustamento e uma nova previsão
num processo de ação-reação que, segundo esta lógica, poderia prolongar-se ad
infinitum. Apesar de essa progressão infinita ser possível no plano
estritamente lógico, as evidências empíricas, tal como afirma Lehmann-
Waffenschmidt (1990), refutam essa infinitude. Em primeiro lugar, nenhum ator
económico possui a capacidade de realizar um número infinito de ajustamentos e
de reflexões antecipatórias do futuro. E em segundo lugar, existem restrições
de tempo, ou seja, o custo de uma não-decisão provocada por um processo de
reflexividade infinita pode ser superior ao de adotar uma decisão.
Em resposta a Morgenstern, Grunberg e Modigliani (1954) entendem que uma saída
para o problema da reflexividade infinita seria a não divulgação da previsão, o
que permitiria eliminar como fator de distorção o conhecimento que dessa
previsão tem a sociedade. Mas afirmar que a exatidão deriva da não divulgação
da previsão implica também a) conhecer como é que são formadas as expectativas
dos atores económicos e, por isso, saber como é que estas se alteram em função
das mudanças da previsão; e b) conhecer como é que reagem os atores
relativamente ao cenário futuro desenhado pela previsão. Portanto, se a
previsão for divulgada, a eventual distância entre o resultado previsto e o
resultado final seria exclusivamente atribuível às variações de a) e b).
Contudo, a proposta de Grunberg e Modigliani levanta um problema de natureza
cívico- política especialmente crítico em sistemas democráticos que outorgam à
livre produção e circulação da informação um valor ético positivo. A não
divulgação de informação – previsões, neste caso – considerada socialmente
significativa, pode ser associada a tentativas de manipulação da cidadania
mediante a ocultação de dados. Apontamos aqui esta questão sobre a qual
voltaremos mais à frente.
Face à opção da não-divulgação, Lucas (1976) oferece uma alternativa mais
transparente baseada na desejabilidade de políticas económicas que gerem o
maior consenso social possível. Não existem políticas económicas consensuais
pelo fato de a economia não ser um conhecimento neutro. Mas sim podem existir
políticas económicas com as quais amplos setores da população possam concordar.
Para Lucas, quanto maior for este consenso, maior será a possibilidade de
conseguir previsões económicas bem sucedidas.
Em geral, o desenho e a implementação de qualquer política económica estão
associados à utilização de modelos econométricos mediante os quais podem ser
testados possíveis cenários futuros ou medido o impacto esperado dessa
política. Mas essa política económica pode provocar, inspirar ou incentivar
adaptações nas condutas dos atores económicos e, por essa razão, os
pressupostos dessas condutas a partir dos quais foram construídos os modelos
econométricos que fundamentam aquela política, já não coincidiriam com as
condutas reais, uma vez que esses mesmos modelos dos quais derivam as
previsões, ficam inúteis. Para Lucas, a solução passaria pelo desenho de uma
política económica que fosse a expressão de um consenso social o mais alargado
possível. Desta forma, a resposta perante a implementação dessa política
económica ganharia em previsibilidade e estabilidade – o grau de acordo
aumentaria pelo fato de ser o produto resultante de uma participação e
colaboração mais ampla –, os pressupostos que inspiram os modelos econométricos
aproximar-se-iam das condutas reais e as previsões nascidas daqueles modelos
convergiriam com a realidade.
Um outro contributo na abordagem da reflexividade é o trabalho de George Soros
(2008). Talvez a sua condição de investidor-especulador tenha retirado
credibilidade académica e científica aos seus trabalhos. Mas essa credibilidade
tem vindo a crescer, como revela o número especial que dedicou à análise da sua
obra a revista Journal of Economic Methodology, em 2013. George Soros há anos
que reflete sobre a interação entre a conduta individual nos mercados
financeiros e as suas orientações de acordo com a visão da evolução desses
mercados. O que os atores pensam sobre o mercado – e isso inclui os seus
prognósticos acerca do futuro e as potenciais reações face aos prognósticos –,
tem influência no seu próprio desenvolvimento. Ou, de uma forma mais simples,
se os atores possuem algum tipo de conhecimento acerca do futuro, esse futuro
previsto pode vir a ser modificado.
2. Sociologia e previsões económicas
A questão da reflexividade tem sido estudada pela sociologia desde diferentes
pontos de vista: como condição essencial de um tipo de sociedade altamente
diferenciada (Beck, Giddens e Lash, 1994), como elemento consubstancial aos
sistemas complexos (Luhmann, 1991) ou como critério de validez epistemológica e
ferramenta metodológica nas ciências sociais (Bourdieu e Wacquant, 2005). No
nosso caso, temos vindo focar a análise na reflexividade ligada ao conhecimento
económico e, mais especificamente, no impacto das previsões na sociedade e da
sociedade nas próprias previsões. Com este propósito, a nossa reflexão vai
centrar-se em três questões que até agora emergiram apenas de forma indireta:
a. A relação entre as previsões e as supostas leis económicas que as
sustentam.
b. A relação entre as previsões e a divulgação, ocultação ou manipulação
estratégica do conhecimento socialmente relevante.
c. A relação entre as previsões e o saber económico de senso comum.
A partir desta reflexão tripla, procuramos chamar a atenção para o fundo social
e político da produção de previsões económicas muito além da visão
hiperespecializada e técnica que habitualmente existe sobre elas.
2.1. Previsões e leis económicas
Qualquer previsão económica é sustentada por algum tipo de pressuposto
relacionado com a existência de leis económicas. É verdade que falar em leis
remete amiúde para um universo determinista e fechado de relações causais que,
pelo menos teoricamente, permitem efetuar previsões sobre cenários futuros com
uma precisão absoluta. No entanto, no campo das ciências sociais (e quer a
economia, quer a sociologia fazem parte do mesmo), o conceito de lei é bem mais
modesto. Segundo Lamo de Espinosa (1990: 97-104), autor imprescindível nesta
matéria e a quem recorreremos sistematicamente para construir a nossa reflexão,
seria possível falar em leis sociais ou económicas quando identificadas com
regularidades ou generalizações empíricas cuja validez é sempre limitada. Como
tal, a sua formulação geral adotaria a forma seguinte: sob certas condições,
uma dada causa produz um dado efeito com umadada probabilidade compreendida
entre 0 e 1. Embora a formulação pareça extremamente simples, a relação entre
causa e efeito não é linear, sendo necessário especificá-la:
a. Nem todos os atores económicos sabem o mesmo acerca da causa. De fato,
pode suceder que não saibam nada ou que não percebam que essa causa é,
efetivamente, a que produz o efeito associado.
b. Os atores podem reagir de forma variável perante a causa. Essa reação
dependerá dos seus interesses, valores ou objetivos. Mas essas reações não
são governadas pelo acaso nem, numa situação extrema, existem tantas
reações diferentes como o número de atores económicos. Com isto queremos
dizer que há reações tipificadas perante situações análogas, uma vez que,
nas sociedades, existem normas que prescrevem o tipo de reação adequada ou
desejável para cada situação.
c. As ações dos atores não têm o mesmo peso no cômputo geral agregado. Há
atores que, pelos seus recursos, pela sua capacidade de influência, pelo
seu acesso ao poder ou pelo seu prestígio, acumulam mais oportunidades de
reconduzir, condicionar ou mesmo determinar esse resultado geral agregado.
d. Os atores económicos podem agir segundo o que querem, mas também em função
do resultado final previsto ou das condutas que são esperadas por parte de
outros agentes.
Tendo presentes estas considerações, para que uma previsão económica antecipe
com precisão um cenário futuro, a relação entre causa e efeito tem de ser
equilibrada, ou seja, para que uma mesma causa gere sistematicamente o mesmo
efeito devem ser reunidas as seguintes condições:
a. O mesmo estímulo tem de ser entendido do mesmo modo pelo mesmo ator ao
longo do tempo. Isto não significa que todos os atores o entendam da mesma
maneira, mas que a perceção de um dado ator se mantenha constante.
b. Os objetivos, recursos e valores dos atores devem manter-se também
constantes e se mudarem, terão de mudar de forma conjunta.
c. Os atores devem desconhecer a regularidade que liga a causa ao efeito. Se
a conhecerem, poderão orientar a sua conduta em função dela, bem para
tirar proveito, bem para se protegerem.
Este último ponto é fulcral. Se nos for permitida a expressão, uma lei é mais
lei quando a regularidade que estabelece é mais estável. Mas, ao mesmo tempo,
quanto mais estável, mais previsível e, por isso, mais fácil será para os
agentes económicos descobrir essa regularidade e orientar a sua ação em função
dela.
2.2. Divulgação e ocultação
Um outro desafio que a previsão terá de confrontar é a sua divulgação pública,
ou seja, ser conhecida pela sociedade. Esta questão já foi apontada
anteriormente, mas voltamos a ela com a finalidade de avaliar teórica e
criticamente as suas implicações.
O conhecimento público de uma previsão cria as condições de possibilidade para
a alteração da situação inicialmente prevista. Sendo assim, e sob uma
perspetiva estritamente pragmática, uma previsão terá mais hipóteses de sucesso
sempre que essa mesma previsão seja apenas conhecida pelos especialistas que a
produzem. Só desta forma, essa mesma previsão não se converte num guia de
conduta dos atores económicos nem num item de informação potencialmente
disruptivo para a sua concretização.
O problema que se coloca é a admissibilidade da opacidade criada mediante a não
divulgação da previsão. Se entendermos que essa previsão é um tipo de
conhecimento socialmente relevante, a sociedade estaria a ser privada de
informação coletivamente útil. É, sem dúvida, uma operação extremamente
controversa num contexto democrático onde, em termos gerais, a transparência
informativa é valorizada positivamente. Simultaneamente, a ocultação da
previsão e da lei que a inspira entrariam em contradição com um dos valores
éticos essenciais ligados à ciência, isto é, a revelação da verdade. Tratar-se-
ia de atingir ou evitar um dado resultado anunciado por uma previsão cuja não
divulgação permitiria que fosse atingido ou evitado. Os produtores de
previsões, mediante a opacidade gerada pela ocultação, criariam as condições
para a previsão se concretizar. Lamo de Espinosa (1990) identifica esta
situação como um caso de reflexividade alienada que alimenta um processo de
engenharia social: o conhecimento de origem técnico-científica é empregue para
promover um dado resultado que exige, como condição para a sua materialização,
não ser divulgado.
As possibilidades de ocultação são potencialmente mais eficazes em contextos e
situações onde a disponibilidade de previsões é baixa ou mesmo inexistente. Não
é este o caso de sociedades complexas e altamente diferenciadas, caraterizadas
pela tendência contrária, ou seja, pela profusão de previsões e pela
concorrência entre elas em termos de credibilidade, precisão e capacidade de
influência. Neste sentido, é possível falar num mercado de previsões ao qual os
atores económicos podem socorrer para orientar a sua conduta. E, orientar a
conduta, envolve uma sequência de passos:
a. Os economistas realizam a sua previsão e procedem à sua divulgação
pública.
b. Os atores económicos aos quais é aplicada a previsão podem ou não conhecê-
la, mas essa divulgação torna-se acessível na maioria das vezes através da
comunicação social.
c. Esses atores têm de considerar a previsão significativa. E podem fazê-lo
por diferentes motivos sendo que a fiabilidade, o prestígio e a
proximidade aos decisores políticos ou financeiros serão alguns dos mais
importantes. Portanto, que seja significativa implica que não é rejeitada
ou ignorada.
d. Quando a previsão é considerada significativa, os agentes orientar-se-ão
segundo o seu prognóstico. Será a agregação total das ações individuais a
que determinará a autoconfirmação e a autonegação da previsão, ou aquilo
que costuma ser mais habitual, a concretização de um resultado
simplesmente diferente do previsto.
De acordo com este raciocínio, há um ponto de fricção com uma visão
ortodoxamente positivista das leis e das previsões económicas. Segundo esta, os
agentes manteriam a conduta que prevê a lei, mesmo conhecendo-a, pois a sua
força impositiva, que deriva da agregação de múltiplas ações particulares, é
superior à margem de manobra de qualquer agente individual. Vista assim, é uma
força externa não modificável cujas previsões não são afetadas pelos atores
económicos. Esta conceção restringida, mecanicista e determinista ignora os
efeitos da reflexividade quando considera que os atores económicos nada têm a
dizer sobre as previsões ou que a receção das mesmas é essencialmente passiva.
2.3. Previsões, conhecimento especializado e senso comum
Resta considerar a hipótese do tipo de receção das previsões e, sendo mais
precisos, a possível combinação entre o conhecimento especializado,
representado pela previsão económica, e o conhecimento de senso comum acerca da
economia. No debate público, assume-se com certa leviandade que a economia é,
sobretudo, um conhecimento estritamente técnico reservado apenas aos peritos e
inacessível para quem carece da formação apropriada (Colander, 2005). Mas a
materialização do conhecimento económico especializado nas previsões que
desenvolve, convive com o conhecimento leigo de senso comum, ou seja, com uma
etno-economia adquirida pelo fato de o indivíduo estar integrado numa dada
cultura. A este respeito, Lamo de Espinosa (2005) recupera um exemplo
interessante que mostra bem a importância do saber etno-económico: qualquer
sistema monetário baseia-se no valor de troca dado ao dinheiro, e que depende,
em grande medida, dos conhecimentos que as pessoas aplicam sobre o dinheiro. Do
mesmo modo, este raciocínio pode ser aplicado a relações fulcrais tão presentes
no quotidiano como a do preço e a qualidade: nestes domínios, todos sabemos de
economia. As previsões económicas interagem com o saber etno-económico sobre o
valor do dinheiro, dos preços e dos salários, da evolução do desemprego, da
distribuição dos impostos, da carga fiscal ou da gestão dos recursos
económicos. É um saber composto por experiências pessoais e notícias (Ross,
2011) ou, na adequada e vívida expressão de Henderson (1985), um “Do It
Yourself Economics”. Sendo assim, pode ocorrer que os indivíduos não entendam
integralmente a informação ou as teorias económicas, mas apenas tenham uma
compreensão parcial ou não saibam nada das mesmas. Não obstante, agem como se
soubessem economia (Marques, 2010: 141-147) e geram condutas agregadas com um
dado impato económico.
Uma das fontes primordiais da etnoeconomia é a receção do conhecimento
produzido pelos peritos económicos: inquéritos, sondagens, índices de confiança
e relatórios elaborados por observatórios, universidades, jornais, bancos
centrais, instituições financeiras ou agências de classificação de risco. Prova
da sua existência é a utilização que desse mesmo conhecimento se faz com uma
finalidade persuasiva no debate político-económico. Este saber tem sido
mobilizado na atual crise de forma a legitimar muitas das medidas implementadas
ao abrigo das políticas de austeridade e dos programas de assistência
financeira. Assim, apelos à metáfora do Estado como uma “família” e ao
orçamento nacional como um “orçamento doméstico”, à bondade da gestão
tradicional do lar como modelo de gestão da economia nacional, ao pagamento das
dívidas como uma questão de honra pessoal ou ao ajustamento estrito entre
receitas e despesas têm feito parte, em geral, do debate público, e em
particular, das próprias recomendações oferecidas por alguns economistas para
contornar ou ultrapassar os constrangimentos financeiros (Soeiro, Cardina e
Serra, 2013). Em consequência, não podemos pensar nas previsões como um tipo de
conhecimento que será recebido, parafraseando Harold Garfinkel ([1967] 2006),
por “idiotas económicos” que agem apenas de acordo com o estipulado pelas leis
da economia. Ao contrário, a previsão incorporar-se-á ao acervo etnoeconómico
de cada indivíduo se a achar significativa, convertendo-se em mais um elemento
que contribui para a complexidade, a variabilidade ou a imutabilidade da sua
resposta.
Conclusão
O tema da reflexividade coloca dificuldades relevantes ao exercício da previsão
económica e que estão associadas aos seguintes elementos:
a. De, quando divulgadas, poderem trazer consigo uma alteração do cenário
previsto.
b. Poderem constituir um elemento orientador da conduta dos agentes
económicos, que poderão agir para se proteger ou beneficiar da previsão,
provocando eventualmente uma alteração das condições sob as quais foi
elaborada.
c. Poderem interagir com o conhecimento etnoeconómico provocando resultados e
respostas não equacionados pela previsão.
A nossa argumentação fica mais completa se olharmos para a figura_1, onde
descrevemos o percurso esquemático e típico de uma previsão:
Partindo dos produtores, as previsões divulgadas passarão a fazer parte do
mercado de previsões, desde onde chegam aos recetores. Se a conduta agregada
for a prevista, atingir-se-á o cenário antecipado pela previsão inicial. Se não
for assim, emerge um cenário alternativo que inaugura uma nova situação cujos
parâmetros fundamentais passarão, numa lógica de circularidade, a ser
integrados na produção de novas previsões. Em geral, as previsões económicas
não possuem apenas uma finalidade eminentemente descritiva, isto é, não são
unicamente uma antecipação cientificamente sustentada de um cenário futuro.
Também possuem um sentido performativo na medida em que são concebidas como
instrumentos que podem intervir na formação da realidade económica e,
consequentemente, no tipo de resposta dada pelos agentes económicos. Quando
interpretadas desta maneira, o fenómeno da proliferação das previsões ganha um
novo contorno.
Às dificuldades derivadas da reflexividade pode associar-se a constatação
empírica dos erros e desvios sistemáticos das previsões. Não convém esquecer
que muitas das previsões são guias ou objetivos de políticas económicas
específicas e que, por esse motivo, não são inócuas.1 Mas o fato indiscutível é
que, apesar dos erros, dos desvios ou da falta de realismo, e apesar das
dificuldades colocadas pela reflexividade, a elaboração e produção de previsões
não se detém. Portanto, cabe interrogar-nos pelo porquê da sua presença, ou
seja, pelo seu significado social.
Inicialmente, é factível considerar a previsão económica como um dispositivo de
auto-observação próprio das condições socioeconómicas complexas que apresentam
as sociedades com elevados níveis de diferenciação (Izquierdo, 1999).
Simultaneamente, essas condições são as que permitem manter a infraestrutura e
os custos associados ao funcionamento da indústria da previsão. Assim, são o
desenvolvimento da economia e a sua complexidade os que geram a necessidade de
auto-observação reunindo informação acerca do seu alcance, implantação e
crescimento. Só uma economia complexa é que pode permitir-se sufragar os custos
da auto-observação – derivados do funcionamento de observatórios,
universidades, ministérios… – ou transformá-los em produtos pelos quais pagar
um preço como são pagas, por exemplo, as previsões e as avaliações das empresas
de consultoria. Isto conduz a postular a existência de um mercado de previsões
concorrentes entre si em virtude dos seus atributos – fiabilidade, prestígio,
precisão técnica… – sendo que um deles, talvez o fundamental, seja a capacidade
para influir no presente mediante a definição de cenários económicos futuros.
O seu significado social é intrinsecamente político ao servir para orientar
políticas económicas que se tencionam executar ou discutir. Mas orientar
políticas é também orientar condutas e, neste sentido, as previsões são
elementos significativos no momento de tomar decisões individuais e
corporativas. É extremamente reducionista supor que quando um banco central, um
ministério, a OCDE, o FMI ou qualquer organização nacional ou internacional
relevante elaboram um relatório ou análise, ignorem que essa informação, junto
com as previsões que contém, será com certeza conhecida e assimilada por
diferentes atores económicos, quer sejam peritos, quer sejam leigos.
Sendo assim, resta avançar uma hipótese que necessariamente terá de ser
considerada e para a qual ainda não existem evidências empíricas satisfatórias,
embora seja amplamente sustentada, a nível teórico, a partir dos estudos
neofoucaltianos sobre governamentalidade. Neste sentido, seria possível pensar
nas previsões como um dispositivo de governo com a capacidade de alinhar as
políticas económicas e as decisões individuais ou corporativas, ou seja, um
dispositivo de governo com a potencialidade de reconduzir e orientar condutas.
Trata-se de um governo à distância, próprio de uma racionalidade política
neoliberal (Gordon, 1991; Rose e Miller, 1992; De Marinis, 1999), que concebe o
indivíduo não como um corpo para disciplinar ou cuja resistência seja
necessária vencer, mas como um agente mediante o qual agir tendo em conta a sua
autonomia, que terá de ser alinhada de acordo com os objetivos de governo. As
previsões serão um dos dispositivos ativados em prol desse alinhamento e que
procura influir numa dada direção na conduta económica individual em busca de
um resultado agregado específico. Portanto, sob esta perspetiva, uma previsão
é, sobretudo, um método de intervenção no presente em nome de um futuro
teórico.