A lusofonia do século XXI
A lusofonia do século XXI
Mário Murteira*
Estive recentemente, e pela primeira vez, em Goa. Foi uma surpresa encontrar
sinais aparentemente tão vivos da cultura portuguesa numa economia e numa
sociedade de grandes contrastes, tão referidos a propósito das novas
"nações emergentes" no mercado global e de grandes dimensões, como
a China e o Brasil.
O estado de Goa tem o maior nível médio de vida na Índia. A miséria atroz que
podemos observar, por exemplo, em Bombaim, não é ali patente. Recém-chegado a
Goa esqueci, por algum tempo, o espectáculo horroroso das duas velhas
desgrenhadas, esfomeadas e andrajosas, em Bombaim, lutando ferozmente pelas
rupias que lhes dera como esmola, sem saber o que fazer perante tal exibição de
degradação humana.
Em Pangim, ou Nova Goa, um bairro de nome Fontaínhas (palavra que o jovem
indiano que me conduzia no seu táxi não conseguia pronunciar correctamente)
exibe belas moradias que pertencem a famílias de nomes como Gonçalves, Cunha
e Soares. Por tais sítios, ainda hoje podemos falar bom português, em especial
com goeses idosos que gostam de voltar a estar com portugueses No majestoso
palácio de Chandor, insólito sobrevivente na velha Goa, uma idosa senhora,
amável e triste, ajuda-nos a conhecer as maravilhas ainda sumptuosas do palácio
dos Menezes e Braganças onde, entre outras memórias de tempos gloriosos,
percorremos amplo e bem decorado salão de festas, como se estivéssemos no
palácio de Buckingham, na Inglaterra. E encontramos belas peças decorativas
oriundas de Macau. Abundam as sugestões de velhos impérios globais que se
desvaneceram no imenso tempo decorrido, deixando todavia, teimosamente, marcas
nos caminhos percorridos, tal como os animais pré-históricos assinalaram a
respectiva passagem.
Em Macau, todavia, a presença portuguesa não penetrou tão profundamente como em
Goa. Um miradouro localizado na ilha da Taipa, que contempla a cidade de Macau,
exibe uma estátua de Dona Sancha e um letreiro em mau português, ali abundante
(e que os chineses ignoram), onde se lê, "Ponto de vista da Dona
Sancha". O chinês vestido de campino que fazia de porteiro do emblemático
Hotel Lisboa, não podia resistir muito à passagem do tempo. Mas o Hotel -
Casino, esse tinha certamente futuro, já que, como um dia me disseram,
"ali, um homem pode encontrar tudo quanto necessita para ser feliz, até
um quarto" E milhões de chineses procuram a felicidade, como é sabido.
Mas a China de hoje pretende utilizar Macau como ponte de acesso ao mundo
lusófono, incluindo Angola e Moçambique. Macau que, ironicamente, alguns
portugueses pretenderam promover a "ponte" entre a China e a
Europa...Uma ponte demasiadamente estreita para tal trânsito.
Na passagem por Goa recordei estadias, também recentes, na ilha de Moçambique,
onde ainda hoje encontramos persistentes traços históricos da presença
portuguesa. Não só do tempo das Descobertas, pois aí também pude conversar com
o último barbeiro negro do Governador português da ilha, que – um tanto
arrependido – me confessou não ter querido acompanhá-lo no regresso a Portugal.
Um ilhéu próximo da costa de Moçambique, à saída da ilha do mesmo nome e
chamado Goa, apontava o trajecto das naus portuguesas que passavam a caminho da
Índia
Que valem hoje, para além das potencialidades turísticas, estes vastos espaços
culturais deixados por um Portugal pioneiro da globalização então vigorosa e
também tão cheia de promessas e ameaças nos tempos que correm?
É visível o esforço da UE para alargar o seu espaço económico, político e
cultural nas várias direcções do mundo global em movimento para destino
desconhecido neste século XXI agora iniciado. O Primeiro Ministro português,
agora também na presidência da UE, multiplica as suas digressões e contactos
estratégicos na América Latina, na Ásia e na África. Num movimento que, além do
mais, arrasta consigo uma promessa de maior identidade e presença global dos
países lusófonos. Uma forma, talvez, de ressuscitar a globalização portuguesa
de há cinco séculos. Agora, evidentemente, com cenários, modelos, meios e
propósitos bem diversos dos que conduziram nossos gloriosos antepassados à ilha
de Moçambique ou a Goa.
Diz-se muitas vezes, sobretudo em meios bem pensantes, que vivemos em tempo de
"redes", isto é, parcerias e conexões de grande agilidade e
significado estratégico, bem suportadas pelas novas tecnologias da informação e
comunicação. Os actores do mercado global, com efeito, dificilmente trabalham
hoje "sem rede", como corajosos e imprudentes artistas de circo.
Mas convém, é claro, não esquecer que as redes não dispensam os actores nem a
clareza e convicção no desempenho dos respectivos papéis.
Por isso, a revitalização e globalização da Lusofonia, além do mais, requer
diálogos e comportamentos sérios, por exemplo, entre Portugal e Angola,
Portugal e Moçambique, Portugal e o Brasil.
Dir-se-á, nesta perspectiva, que estamos a minimizar a Europa também em
(re)construção. Tudo depende, claro, do que se entende e projecta nessa
"Europa", ao mesmo tempo difusa e omnipresente neste Século XXI.
Talvez esta Europa, no fim de contas, não seja mais do que um trânsito, ou
movimento inter-activo, mais incidente em determinadas dimensões - monetárias e
financeiras, por exemplo - do que noutras, mais especificamente culturais. E
que nestas, espaços carregados de História, mas também com possíveis futuros
relevantes, em particular para um pequeno e periférico país como Portugal,
possam globalizar-se segundo vias específicas.
Voltando a Goa. É curioso verificar que uma herança cultural portuguesa deixou
na Índia dos grandes contrastes, uma ilha de relativa coesão social.
Desejavelmente, a Europa da UE deveria consolidar-se também como uma grande
"ilha" de coesão social num mercado global cada vez mais
desequilibrado, onde ainda prolifera a pobreza relativa e mesmo absoluta.
Vias lusófonas e afinal também europeias por "descobrir", uma vez
mais, nas condições do século XXI e não dos séculos XV ou XVI que recordámos em
Goa e na ilha de Moçambique.
*Mário Murteira
mlsmu@mail.telepac.pt
Doutor em Economia (Universidade Técnica de Lisboa). Prof. Catedrático Jubilado
de Economia do ISCTE. Antigo Presidente da Escola de Gestão do ISCTE. Director
da revista Economia Global e Gestão.
Complexo INDEG/ISCTE
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