Para um paradigma de desenvolvimento humano solidário
Nesta introdução, vou em primeiro lugar apresentar algumas questões relativas
ao conceito de «desenvolvimento humano» e recordar grandes problemas que a
Humanidade defronta neste início do Séc. XXI, em particular em matéria
demográfica, de sustentabilidade ambiental ou ecológica e também de
sustentabilidade social.
Referirei depois, ainda de forma sumária, a conjuntura actual de crise
sistémica mundial e as respectivas implicações na perspectiva do
«desenvolvimento humano».
Na última parte desta exposição, abordarei características específicas da
situação portuguesa e terminarei pela referência a um possível paradigma para o
«desenvolvimento humano e solidário» dos portugueses.
Claro que se trata de temas imensos e complexos.Não posso ambicionar mais do
que proporcionar-lhes algumas pistas iniciais para uma reflexão pessoal e
colectiva muito mais aprofundada.
Desde os anos 1990 que a ONU publica um relatório anual sobre o
«desenvolvimento humano» à escala mundial, incluindo diversas informações
estatísticas relacionadas com o conceito, por países e grandes regiões da
economia mundial. Aquilo que é correntemente entendido por «desenvolvimento
económico», muitas vezes estimado pelo produto interno bruto por habitante, é
apenas um dos componentes desse conceito de «desenvolvimento humano». São
publicadas séries estatísticas muito pormenorizadas sobre o tema, incluindo um
IDH, «índice de desenvolvimento humano», que varia entre 0 e 1, e que traduz o
crescimento de três elementos fundamentais: a esperança de vida à nascença, o
nível de instrução e o nível de rendimento, avaliados em médias por habitante.
Neste sentido, o «desenvolvimento humano» de uma população significa, no fim de
contas, viver mais tempo, saber mais e dispor de maior rendimento.
O crescimento do IDH nas últimas décadas, de uma maneira geral, tem sido
impressionante, embora algumas regiões tenham apresentado recuos, sobretudo na
África ao sul do Sara, e isso sobretudo por efeito da degradação das condições
sanitárias da população e correspondente redução da duração média de vida.
Todavia, se pensarmos que, segundo as estimativas disponíveis,a população
mundial aumentou cerca de dez vezes nos últimos três séculos, as tendências do
IDH são encorajadoras. Apesar das guerras, calamidades naturais, crises
económicas, assimetrias e injustiças de toda a ordem, há hoje muitas mais
pessoas «humanamente desenvolvidas», no sentido referido, do que em qualquer
período do passado. Afinal, parece que o «Progresso» continua a fazer algum
sentido, e não só para o Dr. Pangloss ironizado por Voltaire, e que continuava
optimista na segunda metade do Séc. XVIII, mesmo ao tempo do terramoto de
Lisboa
Pois há, certamente, outros aspectos positivos a considerar neste assunto
multi-dimensional. Assim, ao menos numa parte considerável do planeta, se não
por quase todo o lado, pode reconhecer-se que aumentou o espaço da liberdade
humana: o ser humano está geralmente mais liberto da superstição, da sujeição
da comunidade local, da família tradicional, do partido e do Estado. E, sem
dúvida, há a registar a impressionante promoção da mulher, talvez o facto mais
marcante do «desenvolvimento humano» neste dealbar do Séc. XXI. E a ONU, além
do mais, tem defendido a «liberdade cultural para o desenvolvimento humano».
Mas há também a registar um imenso lado sombrio em toda esta evolução. A
globalização acentuou desigualdades a nível internacional e intra-nacional.
Multidões vivem em periferias das grandes cidades em condições de pobreza
absoluta. Mahamad Yunus, na sua conferência por ocasião da cerimónia em que
recebeu o prémio Nobel da Paz, em 2006, reconheceu o absurdo intolerável das
condições de vida num planeta em que os 40% mais ricos obtêm 94% do rendimento
global, enquanto os 60% mais pobres dispõem apenas de 6%. E onde cerca de um
bilião de pessoas (sobre)vivem com menos de um dólar por dia. No momento em que
muito se fala das economias emergentes, com rápidos ritmos de crescimento
económico, não se pode esquecer que cerca de 35% da população da Índia e 17% da
China vivem em condições de pobreza absoluta, isto é, dispondo de menos de 1
dólar de rendimento por dia.
De tudo isto resultou a fixação dos «Objectivos do Milénio» pela ONU,
procurando mobilizar recursos e vontades para superar nalguma medida as
desumanas condições de vida em que se encontra parte significativa da população
mundial. Mas esses objectivos, ainda que modestos, não estão a ser atingidos.
Por outro lado, as novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC)
tornaram, sem dúvida, o mundo mais transparente e podem servir como algo
decisivo para o desenvolvimento humano mundial, ou seja, a globalização do
conhecimento. O acesso fácil ao conhecimento em qualquer ponto do globo, por
mais remoto que seja, desde que tenha acesso à Internet, é hoje uma
realidade...
Mas se o mundo se tornou mais transparente, também se tornou mais enganador.
Mediático, como se costuma dizer, e também mistificador. Verifica-se que, por
vezes, como é flagrante no caso português, aumentou sobretudo a distância entre
aspirações e expectativas, isto é, entre desejos e reais possibilidades de
atingi-los.
Pode, assim, haver melhoria absoluta das condições de vida, mas, ao mesmo
tempo, ter aumentado a frustração da pessoa.
Reconheça-se, ainda: mais do que na «economia baseada no conhecimento» tantas
vezes anunciada, pode dizer-se que estamos na sociedade do «conhecimento
baseado na economia». De certo modo, o conhecimento geralmente procurado é o
conhecimento valorizado pela economia mercantil. Há como que um «mercado do
conhecimento», em lugar do «mercado de trabalho», a ocupar o lugar central na
acumulação de capital do capitalismo «desenvolvido». Parece que, muitas vezes,
é o dinheiro que dirige o conhecimento, em lugar do contrário, como seria
desejável.
Numa visão de mais longo prazo, podemos identificar grandes questões nos
caminhos possíveis do futuro «desenvolvimento humano», que explicitarei a
seguir.
TENDÊNCIAS DEMOGRÁFICAS E SUSTENTABILIDADE
Embora crescendo cada vez mais lentamente, ou mesmo decrescendo nalgumas
regiões, como em grande parte da Europa, estima-se que a população mundial
atingirá cerca de 9,5 biliões por meados deste século, ou seja, um crescimento
da ordem dos 50%. Se a tendência dominante vai no sentido de prolongamento da
esperança de vida, mas com redução das taxas de natalidade, tal significa
tendência para o envelhecimento médio das populações. E isto, como é evidente,
terá consequências sobre modos de vida, expectativas e valores dos seres
humanos, questão que não irei aqui desenvolver.
Mas referirei duas dimensões fundamentais do chamado desenvolvimento
sustentável. Uma refere-se à relação com o meio ambiente: o moderno crescimento
económico, associado à grande expansão demográfica que referi, tem tido
consequências nefastas sobre a envolvente natural do planeta e que não poderão
prolongar-se por mais tempo. A degradação do meio ambiente, note-se, tem no
imediato dois grupos principais de vítimas: os pobres ou muito pobres das áreas
mais atrasadas do planeta, sobretudo dos localizados em subúrbios poluídos de
grandes cidades, como São Paulo, Bombaim, Calcutá, Cantão ou Xangai; e as
futuras gerações que irão habitar um planeta porventura irrecuperável. Isto é:
em ambos os casos, aqueles que mais sofrem ou poderão sofrer da degradação do
meio ambiente, não dispõem de qualquer poder para influenciar positivamente o
presente curso de acontecimentos.
O que nos conduz à outra dimensão da sustentabilidade, no plano estritamente
social: as presentes tendências de exclusão e de acentuação de desigualdades
também não poderão manter-se num sistema económico e social compatível com
noções elementares de liberdade e dignidade humanas. Um desenvolvimento
realmente sustentável pressupõe coesão social, não um mundo em que coexistem
minorias muito ricas entrincheiradas em condomínios reservados e multidões
sobrevivendo com dificuldade nas periferias circundantes. Num mundo como o
sugerido pelo humor amargo dos brasileiros que habitam a favela de São Paulo
que eles próprios designam de «Alfavela» circundando a denominada «Alfavila»
dos ricos citadinos.
A PRESENTE CRISE SISTÉMICA
Para além de tudo isto, muito distante de algum «Admirável Mundo Novo», que o
paradigma neo-liberal prometia nos seus tempos áureos, entrámos num período de
crise económica global que parece terminar um ciclo de expansão do capitalismo.
O lado positivo desta crise será, porventura, forçar caminhos alternativos para
a economia e a sociedade, caminhos que, embora por muitos desejados, têm vindo
a ser adiados ou desvirtuados.
Procurarei referir essa crise na perspectiva do desenvolvimento humano que
tenho questionado. A presente crise sistémica parece marcar o fim de uma
trajectória do capitalismo em que a globalização financeira predominou sobre a
globalização do conhecimento, num sentido que passo a expor de forma
necessariamente muito abreviada.
A «globalização» que se acentuou a partir do último quartel do século passado
significa essencialmente maior integração ou interdependência da economia
mundial. Uma das dimensões deste processo foi a liberalização dos movimentos de
capitais que, em tempo de novas TIC, permite que o capital real ou supostamente
titulado em dinheiro possa, afinal, deslocar-se à velocidade da luz. Neste
sentido, pode dizer-se que o «capital» se tornou mais ágil do que nunca, e
também mais poderoso.
As imaginativas criações da chamada «engenharia financeira» permitiram, por
outro lado, que a expressão nominal ou financeira da economia mundial crescesse
desproporcionadamente, sem correspondência com a chamada economia real, ou
seja, a efectiva produção de bens e serviços. Neste panorama alucinante, os EUA
desempenham um papel fundamental: mais do que o pobre Portugal, pode dizer-se
que a economia norte-americana tem vivido «acima das suas possibilidades», com
uma dívida pública (além da privada) equivalente a um quinto do PIB mundial. E
é, em grande parte, a China que sustenta esta posição, pois titula excedentes
da sua balança de pagamentos em bilhetes do Tesouro norte-americanos.
Veja-se o absurdo desta situação: a pobre China vive «abaixo das suas
possibilidades» e financia a economia mais poderosa do sistema mundial que,
afinal, vive «acima dos seus meios»! Claro que a viabilidade de uma economia
mundial assente em tais relações era precária e à beira de um colapso, que
ocorreu, como se sabe, a partir da recente crise do mercado imobiliário
americano.
A avidez mercantil e a ganância do capitalismo financeiro parecem ter conduzido
a esse resultado. É, pois, urgente a prática de um novo paradigma baseado na
solidariedade inerente à condição humana.
Mas vejamos agora brevemente o contexto português inserido nesse fundo afinal,
mesmo sem fundo que descrevi.
REFERÊNCIA À SITUAÇÃO PORTUGUESA: UMA CRISE GLOBAL ENVOLVENTE DA CRISE ENDÓGENA
No Portugal de hoje sentimos o divórcio crescente entre aspirações e
expectativas: entre o que se deseja e aquilo que «vai acontecendo». Sofrimento,
frustração, azedume e amargura em lugar da esperança no futuro parecem dominar
a presente consciência que os portugueses têm de si mesmos.
Chamo a essa consciência a «ideologia portuguesa». Algo que em lugar de
estimular uma acção positiva surge muitas vezes mais como queixume, lamúria,
enfim pretexto para transferir para os outros a responsabilidade que afinal
cabe a todos, no quadro da vivência activa de uma sociedade verdadeiramente
democrática. Mas, claro que Portugal está longe disso: de ser uma sociedade
verdadeiramente democrática. Para tanto, a conquista da democracia formal, dita
«política», só pode ser um ponto de partida e não de chegada.
Não me compete, nesta sessão, examinar como economista a crise nacional. Basta-
me reconhecer que estamos longe de garantir a chamada convergência real no seio
da integração europeia ' ou seja, de seguirmos uma trajectória convincente e
sustentada de redução do nosso atraso em relação à média europeia ' e que, além
disso, há informação estatística que revela uma acentuação da desigualdade e da
exclusão social, em lugar da correcção que julgáramos ao nosso alcance depois
da queda da Ditadura.
Julgo que este simpósio apela para a estratégia mais apropriada para o contexto
global e nacional que tenho referido e que afinal remete para algo a que chamo:
Um Novo Paradigma para o «Desenvolvimento Humano» na Sociedade Portuguesa
Algo que, desejavelmente, deveria tomar o lugar da deprimente e paralisante
«ideologia portuguesa» que referi. De que se trata?
Creio que, nas presentes condições, o grande impulso só pode provir da
sociedade «civil» e não do Estado.
Como hoje se afirma muitas vezes, mas não se pratica tanto, trata-se de
conceber o desenvolvimento «de baixo para cima» (bottom up) em lugar de «cima
para baixo» (top down).Ao nível individual, trata-se de entender a acção como
modo de conhecimento, de dar primazia ao «homem aprendente», que constantemente
procura aprender com a sua própria experiência activa, sobre o «homem
marketing», que consciente e/ou inconscientemente sobretudo procura «parecer»,
não se interrogando sequer sobre se «ser» é apenas isso.
Nesta perspectiva, e vendo as coisas de forma mais prática, creio que está por
fazer o autoconhecimento da própria sociedade civil portuguesa. E que esse
conhecimento alargará o espaço da solidariedade activa dos portugueses. Creio
que esta tarde iremos aprender muito sobre o tema e encontrar novos motivos de
esperança na linha do desenvolvimento humano e solidário de que carecemos.
Em resumo: o «desenvolvimento humano» é ser mais numa relação solidária com os
outros.
Em Portugal, como no resto do mundo.
* Este texto foi escrito para a minha intervenção inicial do Seminário
«Reinventar a Solidariedade em tempo de crise», organizado pela Conferência
Episcopal Portuguesa, que decorreu em Lisboa em 15 de Maio último. Por razões
de saúde, não pude estar presente no seminário para que fui convidado, como era
meu desejo e intenção.
** Mário Murteira
mlsm@iscte.pt
Doutor em Economia (Universidade Técnica de Lisboa). Prof. Catedrático Jubilado
de Economia do ISCTE ' IUL. Antigo Presidente da Escola de Gestão do ISCTE-IUL.
Director da Revista Economia Global e Gestão.
PhD in Economics (Lisbon Technical University). Emeritus Professor of Economics
of ISCTE ' IUL Lisbon University Institute. Former President of ISCTE '
Business School. Director of Global Economics and Management Review.
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