Ponta Final (A gestão da condição humana)
Ponta Final (A gestão da condição humana)
Mário Murteira
INTRODUÇÃO
A «ponta final» da vida humana tem vindo a prolongar-se nas últimas décadas,
graças à impressionante dilatação da duração média da vida humana. Esta
circunstância, só por si, deu maior relevo ao que chamo a «ponta final da
existência». No mundo dito «desenvolvido» (seja o que for que isso signifique),
a ponta final que refiro corresponde a um tempo em que a pessoa já terminou a
sua carreira profissional, vive da pensão de reforma ou do rendimento acumulado
ao longo dos anos de actividade, e dispõe de muito «tempo livre», embora com
frequência toldado pelos problemas de saúde que geralmente se associam à idade
avançada.
Na melhor hipótese, é tempo de grande liberdade individual, pois acabou a
«lufa-lufa» quotidiana para de algum modo ganhar a vida, mesmo que noutro
sentido seja de modo a perdê-la, por permanente falta de tempo para realizar o
que mais se deseja.
E é a altura, também, de olhar «pelo retrovisor» e tentar reconstituir o
caminho percorrido, e também o tempo da nossa vida, incluindo as peripécias
mais felizes ou mais dolorosas do trajecto. E encontrar as possíveis respostas
para questões essenciais da condição humana que foram, deliberada ou
inconscientemente, ignoradas durante a vida activa. Em suma, trata-se de
encontrar a «moral da história», ao menos da história pessoal, ao passo que a
outra História, com maiúscula, é muito mais enigmática e, aliás,
desinteressante para a grande maioria dos seus passageiros figurantes.
O «mundo» tem mudado tal como a nossa maneira de vê-lo e de vivê-lo
Como sabemos, o «mundo» tem mudado cada vez mais rapidamente e também a nossa
maneira de vê-lo, e sobretudo de vivê-lo.
Cabe aqui uma referência ao processo histórico que usualmente é designado por
«modernidade» e que remonta aos Sécs. XVII e XVIII. No essencial, e na
perspectiva deste ensaio, regista-se uma afirmação radical da liberdade
individual, a construção de um novo conceito de cidadania, e tudo isto
resultando na liberdade de pensamento da pessoa, ou pelo menos, na abertura de
novos caminhos para essa liberdade. Essa afirmação, entre outros efeitos,
implicaria a necessidade de profunda reforma da Igreja Católica, apesar da sua
teimosa resistência que ainda hoje se mantém.
Pois é essa «modernidade», com todas as suas ambiguidades e incertezas, que nos
traz, cada vez mais rápida e globalmente, o tempo de grandes mudanças em que
nos encontramos.
Noto que há a registar três diferentes dimensões de mudança: o que o mundo «é»,
por exemplo, em termos de condições materiais de vida, de configuração de
centros urbanos, de meios de transporte; o que «observamos» nesse mundo, por
meios como a televisão, ou os instrumentos científicos de conhecimento da
realidade; e ainda como «vivemos» nesse mundo, segundo padrões culturais em
evolução, por exemplo, em matéria de relações sexuais ou convivência de pais e
filhos.
Neste último aspecto, é impressionante o distanciamento cultural que se observa
entre sucessivas gerações, ocasionando que por vezes exista um sólido e espesso
muro separando o entendimento, e mesmo o afecto, de pais e filhos.
Este ritmo de mudança decorre de vários factores, entre eles, o desenvolvimento
científico e tecnológico, em particular no domínio das tecnologias da
informação e da comunicação (TIC).
Mas resulta também do próprio fluxo tumultuoso da História, onde se situa o
sistema de organização social dominante, isto é, o capitalismo, hoje
globalizado como nunca antes.
Globalização que, por sua vez, significa crescente interdependência entre as
economias e as sociedades do sistema mundial. As «partes» desse «todo», a que
chamamos o capitalismo do mercado global, nunca estiveram tão integradas como
actualmente sucede, pesem embora as conhecidas desigualdades e assimetrias do
sistema. Além do mais, e apesar de todas as resistências formais ou informais,
as pessoas movimentam-se hoje no espaço com maior facilidade, mesmo correndo
sérios riscos na sua segurança pessoal.
Estes factos, entre outras consequências, determinam no sistema, embora
fortemente interdependente, uma assimetria de conhecimentos e visões do mundo
dificilmente compatíveis, apesar de todas as tentativas de «democratização
cultural» que têm sido esboçadas, com maior ou menor seriedade e determinação.
É de assinalar que, ao contrário do que seria de desejar, não se tem
aprofundado e consolidado uma visão de direitos fundamentais comuns, algo como
um denominador comum no processo em curso de democratização, pelo menos, de
convivência intercultural.
Essa assimetria é, como já notei, assinalável no distanciamento entre gerações,
implicando crescentes dificuldades no diálogo entre pais e filhos. A relação
familiar tradicional intensa tende a dar lugar a outros tipos de relação
intergeracional e intrageracional, em particular através de novos meios de
comunicação social entre indivíduos e grupos.
Pode colocar-se a questão de saber como, neste contexto, tem (ou não) evoluído
também a dimensão religiosa da condição humana, e em particular, a percepção
dessa entidade misteriosa a que chamamos Deus.
Faz sentido, hoje, «procurar Deus» como fizeram (por exemplo) santos de séculos
passados? Ou esta questão, ela própria, não tem sentido?
O que, por seu turno, nos conduz a questionar a expressão colectiva e
institucional da religião ' em particular a Igreja Católica ' nesse processo.
Essa dimensão institucional dificilmente poderia adaptar-se ao ritmo em que
muda o meio social circundante. Mas surge, antes do mais, a questão de saber o
que é ' ou deve ser ' permeável a essa mudança ou, pelo contrário, deve ser
preservado e guardado como o porventura mais precioso de todos os bens ao
alcance dos homens, isto é, a fé num Deus misericordioso.
Por hipótese, essa seria a grande missão da Igreja Católica, designadamente.
A grande diversidade de conhecimentos e visões do mundo no seio da cristandade
A grande diversidade de conhecimentos e visões do mundo, a que acima aludi,
manifesta-se hoje mesmo no seio da cristandade, ou seja, daqueles que
partilham, ou julgam partilhar, a religião cristã.
No caso do catolicismo, o facto levanta dificuldades consideráveis ao papel da
Igreja Católica, enquanto supostamente depositária de um determinado património
espiritual e cultural. Neste, confundem-se elementos fundamentais da religião
cristã ' a leitura e interpretação dos Evangelhos, nomeadamente ' com regras
caducas e cada vez mais questionadas, como o celibato dos padres e a
diferenciação dos géneros, com óbvia descriminação do género feminino.
A geral tendência, que não se manifesta só em Portugal, mas também noutros
países europeus, para a diminuição do número de sacerdotes e também da
frequência das cerimónias religiosas, e para o aumento daqueles que se
consideram «crentes, mas não praticantes», é indício de tendências profundas da
prática religiosa cristã actual.
Mas em África ou na América Latina, no Brasil designadamente, as tendências são
diferentes e sugerem o renascimento da religiosidade. Embora, é certo, nestas
tendências surjam também propósitos de mercantilização da religião, como
expressão de forças dominantes num sistema social tão profundamente mercantil
como o capitalismo.
Do ponto de vista mercantil, com efeito, a religião tornou-se um apetecível
nicho de mercado.
Pois, a troco de promessas de «salvação da alma», algumas organizações
oportunistas podem, e efectivamente têm-no conseguido, ganhar muito dinheiro.
E, como ameaçador pano de fundo nesta tão complexa questão, propagam-se
manifestações violentas e terroristas de fundamentalismo religioso, o que
conduz, entre outras consequências, ao suicídio ou sacrifício desesperado de
muitos jovens, cuja morte é ao mesmo tempo causa de muitas vítimas inocentes e
testemunho da doentia fidelidade a certa visão do mundo.
Destes factos parece resultar uma dupla tendência no seio da cristandade.
Por um lado, surge um apelo forte em cada verdadeiro «crente» para um
aprofundamento pessoal e próprio da vivência religiosa.
O que conduz, ou pode conduzir, à redução, ou mesmo, exclusão da dimensão
colectiva dessa vivência.
Mas, por outro lado, podem procurar-se novas experiências colectivas da
religião cristã, eventualmente afastadas dos padrões normativos da Igreja
Católica.
No primeiro aspecto, surge a questão de «compatibilizar», se tal fizer sentido,
uma interpretação científica do universo e a interpretação cristã do mesmo.
Foi amplamente destacada pela comunicação social a notícia de que o cientista
Stephen Hawking, ele próprio espantoso exemplo de sobrevivência humana, teria
concluído que Deus, afinal, «não é necessário» para explicar a origem do
Cosmos.
Que quererá isto dizer, na perspectiva da Ciência? Poderíamos antes perguntar:
e que «falta faz» a Ciência, de um ponto de vista cristão, para «explicar» o
Universo?
Em certo sentido, a desenvolver mais adiante, julgo legítimo afirmar que foi o
homem que «criou», ou «cria», Deus e não o contrário. Num (afinal) minúsculo
ponto do Cosmos, o planeta Terra, surgiu após biliões de anos de incerta
experimentação vital, um complexo ser a que chamamos Homem e que necessitou, de
algum modo, de se projectar em «Deus» para subsistir e, até, desenvolver-se.
Nesta perspectiva, a «morte de Deus», a verificar-se, significaria também a
morte de certo «Homem». Cuja principal «razão de ser» teria sido, precisamente,
a infindável busca de Deus.
Recordo que na linguagem de Theilhard de Chardin, o homem seria o «terceiro
infinito», o infinito da complexidade, a Criação a caminho do Criador.
Quero dizer com isto que, se imaginarmos a infinita dimensão do Universo, ou
dos múltiplos «universos» que podem coexistir no insondável espaço-tempo em que
fugazmente existimos, a imagem divina que criámos, e em que cremos, só faz
sentido se for entendida como representação antropocêntrica de algo de
irredutível à condição humana, embora dela inseparável.
Mesmo sem ser perito na matéria, uma reflexão sobre as mais recentes
perspectivas da Ciência sobre a «engenharia genética» do Universo, em
particular deste planeta em que, como espécie transitoriamente, «sobrevivemos»,
deixa-nos perplexos sobre a imensa crónica natural do desenvolvimento dos seres
humanos.
Crónica que passa, entre outras fases, pelo acidente cósmico que conduziu à
extinção dos dinossauros e permitiu muito depois, em tempo próprio, a longa e
gradual emergência da nossa espécie.
E, a este propósito, não posso evitar uma reflexão muito pessoal sobre a
referida «engenharia genética», após recentes estadias na aldeia da Chã das
Caldeiras, em Cabo Verde, a dois mil metros de altitude, e observando cerca de
mil metros mais acima, a imponente silhueta do vulcão da Ilha do Fogo, ainda em
actividade.
Lá do alto daquela montanha de cerca de três mil metros acima do nível das
águas, desdobram-se múltiplas passadeiras de lava cristalizada que vão descendo
até ao mar. Cada uma percorrida por estranhas configurações ou esculturas
naturais de lava cinzenta, mais ou menos escura, e que decorrem de erupções de
diferentes datas, a última das quais de meados dos anos 90 do século passado.
Convivendo com as pessoas que, em tal cenário, desenvolvem as peripécias
aparentemente tranquilas duma vida pobre, mas feliz, espantamo-nos da infinita
diversidade e complexidade do cosmos de que somos passageiros em breve trânsito
para desconhecido destino.
Como também da simplicidade essencial das pessoas libertas do egoísmo e da
ganância típicos de sociedades ditas «desenvolvidas» dos tempos actuais.
Quanto ao aspecto colectivo, o tempo presente abre novas perspectivas de
comunicação entre as pessoas, por exemplo, nas redesonlinee em múltiplas
tentativas de convivência ou «diálogo» intercultural.
O maior ou menor isolamento físico do indivíduo ou do grupo social a que
pertence já não constitui obstáculo à partilha de ideias ou experiências ou à
construção de novos caminhos colectivos para a inovação social.
Resulta de tudo isto, que é efectivamente possível «procurar Deus» hoje de
maneiras diferentes dos santos da Idade Média. Se o Homem mudou, a sua imagem
ou «construção» de Deus deverá ter também mudado.
Que significado atribuir a tal mudança, neste dealbar do incerto Séc. XXI em
que nos encontramos?
Um significado possível, e até necessário na perspectiva do «desenvolvimento
sustentável» de que hoje muito se fala, poderia ser rotulado de «Caridade na
Verdade», como foi designada uma recente encíclica papal.
No sentido seguinte, diferente, possivelmente, da mesma expressão no contexto
da referida encíclica.
Há um preceito evangélico que traduz o essencial da fé cristã:
Amarás a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo
Leio este preceito, no entendimento de que o ser humano persegue ao mesmo tempo
uma «curiosidade» inesgotável face aos mistérios que o rodeiam e uma
necessidade de convivência íntima e profunda com o «próximo».
Neste aspecto, a curiosidade «desinteressada» do cientista na sua investigação,
ainda não contaminado pela ambição mercantil, é afinal próxima da pesquisa do
monge que reza no seu contacto pessoal com Deus.
Como do generoso militante em alguma ONG que procura levar algo de precioso a
certa comunidade marginalizada, algures no planeta.
A primeira motivação é, em última análise, o «amor de Deus», ou da Verdade que
se esconde nas aparências que os nossos olhos míopes observam.
A segunda motivação é ainda o «amor de Deus», mas num sentido de solidariedade
profunda com os outros homens, em busca da Caridade, isto é, afinal, da Justiça
nas relações sociais.
OBJECTIVIDADE E IDEOLOGIA
Como é sabido, uma questão fundamental que se coloca no domínio do
«conhecimento» é o da objectividade desse conhecimento. Dito de outro modo,
trata-se de uma inquirição sobre a natureza da possível verdade que está ao
nosso alcance.
Está em causa, afinal, saber até que ponto se pode confiar na imagem ou
representação que o nosso espírito produz da realidade que nos cerca. Esta é
inseparável do olhar que a observa, com instrumentos mais ou menos sofisticados
de análise.
Colocando esta questão, é inevitável a referência a autores como Marx e
Schumpeter que construíram conceitos relevantes, e muitas vezes citados, de
ideologia.
Em Marx, a ideologia surge como expressão dos interesses da classe social. A
«Economia burguesa», não seria mais do que a expressão disfarçada dos
interesses da burguesia, enquanto a interpretação materialista da História,
defendida por Marx, serviria os interesses do proletariado.
Em Schumpeter, a ideologia seria afinal a particular «visão do mundo», o
coeficiente pessoal que consciente ou inconscientemente cada um transporta na
sua particular maneira de observar a realidade. Também se poderia dizer que,
neste sentido, a ideologia é para cada um de nós um «mapa» da realidade ou uma
bússola que nos orienta no comportamento.
Em linguagem mais recente, no âmbito da teoria do conhecimento, a ideologia
faria parte do conhecimento implícito ou subjectivo, enquanto a dimensão
objectiva do conhecimento, essencial na investigação científica, exige a
possibilidade de confronto com a experiência ou uma «base empírica», pelo menos
a fundamentação numa teoria susceptível de confronto argumentativo com outras
teorias.
Aqui coloca-se a questão do domínio do chamado «Mainstream» ou corrente
principal do pensamento científico em certa área de conhecimento, em
determinada época, corrente que, por seu turno, pode estar associada a
determinada comunidade de interesses.
Por exemplo, a ideologia dita «neo-clássica» no domínio da Economia ou da
Gestão está ao serviço dos interesses do poder económico privado.
Dado isto, que relevância atribuir à questão da objectividade em matéria tão
profundamente «subjectiva» como a análise da condição humana?
Conhece-se a afirmação de Descartescogito ergo sum («penso, logo existo») que
serviu de pretexto ao reputado investigador português António Damásio para o
título da sua obra O Erro de Descartes, traduzida em diversas línguas. Este
autor analisa, numa perspectiva científica «objectiva», o suporte neurológico
do ser humano, mostrando como é simplista e grosseira a tradicional separação
entre o «corpo» e a «alma». É evidente que a investigação ou pesquisa do
sujeito do conhecimento sobre a sua «condição humana» é necessariamente
subjectiva, e além do mais, condicionada pela própria configuração do seu
cérebro.
Mas, afinal, que sentido poderá fazer nesta matéria a distinção entre falso e
verdadeiro?
Creio que realmente não tem sentido, pois o que está em causa é a coerência ou
consistência dum projecto pessoal que, cada um de nós, mais ou menos
conscientemente, formula, constrói e pratica no seu quotidiano.
Sendo assim, a questão a debater não remete para a contaminação do conhecimento
pela ideologia, mas antes para a apreciação e comparação de possíveis
«ideologias» envolventes desse conhecimento.
Temática que, por sua vez, nos conduz à questão ' aparentemente banal, tal a
frequência e simplicidade com que é evocada ' do «desenvolvimento humano».
À primeira vista, tratar-se-ia de comparar alternativas «ideológicas» na sua
contribuição para o possível desenvolvimento da pessoa humana.
Mas, na realidade, como irei mostrar, defrontamos outro vasto campo de
problemas sem fácil solução.
O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
Há um conceito simples de «desenvolvimento humano» que tem sido utilizado para
o cálculo, por organismos da ONU, do IDH, ou índice de desenvolvimento humano.
Esse índice, definido pela primeira vez em 1990, com a colaboração do prémio
Nobel da Economia, Amartya Sen, tem sido depois reformulado por várias vezes,
no âmbito da preparação dos World Human Development Reports que o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) anualmente publica. A última
revisão, bastante profunda, consta do Relatório de 2010.
Mas trata-se apenas, como seria de esperar, de encontrar fáceis algoritmos que
permitam comparações expeditas entre países, em termos de indicadores como
duração média da vida humana, nível médio de instrução da população, nível
médio de rendimento por habitante, entre outros. Sem negar a justificação e
utilidade de um tal conceito, é evidente a superficialidade dessa noção de
«desenvolvimento humano». Que resulta, além do mais, da necessidade de evitar
ou contornar grandes controvérsias e discussões sobre valores, sentidos e
projectos pessoais de desenvolvimento.
Matéria ainda mais delicada quando se pretendem comparações entre países e
sociedades tão diferenciados em termos culturais, além dos contrastes
económicos e sociais mais evidentes.
Um exemplo simples tornará mais óbvia a grande complexidade desta temática.
Remete para a questão da «qualidade de vida».
Qual o sentido do prolongamento da duração média da vida humana, sem avaliar da
qualidade dos anos finais (ao menos, esses!), da existência? Qual o sentido de
prolongá-la alguns anos, para apenas prolongar anos de sofrimento, dependência,
precariedade em múltiplas direcções?
O debate actual sobre a possível justificação do suicídio assistido tem a ver
com essa interrogação. No fim de contas, não é possível, em rigor, encarar a
questão damais vida sem questionar também o possível sentido da melhor vida.
E acrescento que «melhor vida», no meu sentido, não equivale a vida «mais
feliz». Em poucas palavras, digamos que equivale antes a «vida mais realizada»
ou «mais conseguida».
Se assim é, uma discussão aprofundada do conceito de «desenvolvimento humano»
conduz necessariamente a outra questão: a do projecto pessoal de
desenvolvimento, dos fins e meios correspondentes à sua formulação e prática.
Por uma exigência de clareza, correndo embora o risco de excessivo simplismo,
em matéria tão controversa, julgo conveniente distinguir entre dois «modelos»
distintos de desenvolvimento pessoal.
O modelo porventura mais praticado, ou seguido consciente ou inconscientemente,
nas sociedades «desenvolvidas» actuais, é o modelo do «homem marketing», isto
é, do indivíduo sobretudo interessado em criar e difundir uma certa imagem de
si mesmo. Neste caso «ser» confunde-se afinal com «parecer».
Essa imagem procurada funciona como a escada da ambição pessoal, do lugar que
se pretende ocupar na sociedade.
O modelo alternativo, mais exigente em termos éticos e também existenciais, é o
modelo do «homem aprendente», isto é, do homem que sobretudo procura conhecer
mais e melhor do mundo que o cerca e, em particular, de si mesmo.
Mas também conhecer para, de algum modo, agir sobre o objecto do seu
conhecimento, seja ele próprio ou o meio circundante.
O primeiro «modelo» é típico dos profissionais da chamada classe política, pois
esta actividade «política», no quadro formalmente democrático, é essencialmente
uma luta pelo poder e pela caça ao voto, este baseado precisamente naquilo que
os políticos «parecem» ou nos valores e, sobretudo, nos interesses, que
aparentam defender ou representar.
Este facto acentua-se com a generalização da «democracia mediática», em que a
luta pelo poder depende das mensagens ou imagens transmitidas pelos diferentes
meios de comunicação social, particularmente pela televisão.
Um excelente exemplo bem representativo do modelo na presente conjuntura
política portuguesa é o de Santana Lopes. Figura constantemente promovida pela
comunicação social, sem serem claros os motivos desse tratamento privilegiado,
certamente não decorrentes do real desempenho dessa figura no cenário da
democracia no nosso País.
Mas na realidade da sociedade mercantil actual, o modelo do «homem marketing»
vai muito além desse grupo. Na acepção mais comum, a actividade do marketing
respeita, como é sabido, à promoção de determinado serviço ou produto para
expansão das suas vendas.
Mas o marketing não é, nem pretende ser, uma simples e objectiva informação
sobre as possíveis utilizações do produto ou serviço em causa, e os benefícios
daí resultantes para o respectivo consumidor ou utente. Trata-se, geralmente,
de persuadir este das vantagens do produto ou serviço em questão relativamente
aos produtos ou serviços oferecidos pela concorrência em alternativa.
Nos manuais elementares de Economia, a teoria da chamada «concorrência
monopolística» assenta precisamente nessa ideia: a da concorrência entre
produtos diferenciados mas substituíveis entre si. Substituição que, em regra,
é sugerida por alguma comparação entre qualidade e preço, ou pela afirmação
sustentada de que é justificada a diferenciação do preço, tendo em conta a
suposta diferenciação na qualidade. Esta diferenciação conduz, portanto, à
exclusão da concorrência dita «perfeita», entre produtos iguais. Mas na
concorrência entre seres humanos a «imperfeição» é, em vários sentidos,
insuperável
Que têm estas estratégias mais correntes de marketing de comum com o nosso
conceito de «homem marketing»?
Trata-se, afinal, de persuadir os outros (e o próprio, também) de que se é
titular de alguma diferença específica, de algum «valor próprio» que definiria
a identidade do sujeito. Esta, assim, não resulta da procura de valorização de
si mesmo, em conformidade com determinado projecto pessoal como objectivo
próprio dessa identidade. A «identidade» em questão é, afinal, a «identidade»
do actor que representa certo papel no palco da sua existência. Mas é claro que
a configuração do «papel» desempenhado também traz consigo certo desenho do
argumento em que o actor representa o seu papel.
Ou seja, é indissociável da figura do «homem marketing» não só certa imagem a
construir de si mesmo, mas também a representação global da vida humana como
uma «montra» onde desfilam outros seres, todos «desempenhando» certos papéis na
grande comédia humana, em constante desenvolvimento.
Na obra porventura mais consagrada do escritor britânico Somerset Maughan, The
Human Bondage (traduzida para português com o título Servidão Humana), em
grande parte autobiográfica, Philip Carey procura um sentido para a sua vida.
Um reputado pintor que encontra em Paris, diz-lhe que a vida é como um «tapete
persa», com múltiplos desenhos sem aparente nexo entre si. Philip fica
impressionado com a imagem e identifica-se com ela.
Mas, na realidade, Philip é humilhado e obsessivamente dominado por Mildred,
uma prostituta sem qualidade humana, nem mesmo física. O livro termina com um
happy end pouco convincente, em que Philip se liberta finalmente da prostituta
e casa com Sally, uma mulher normal, que o ama e é por ele amada.
Só depois da morte de Maugham se percebeu o essencial do drama pessoal que o
autor escondia na personagem Mildred: a sua homossexualidade.
Este homem, portanto, não poderia ser classificado no modelo «homem marketing»,
mas antes no modelo «homem aprendente», por muito penosa que fosse a imagem de
si mesmo que a experiência da vida lhe revelou. Mas esta, por outro lado,
permitiu todo um fluxo criativo no domínio literário.
Na verdade, a caracterização do modelo do «homem aprendente» é bem difícil e
complexa.
Em certo sentido, é o homem que tem como principal motivação a «curiosidade»,
isto é, a insaciável necessidade de «descobrir-se» a si mesmo, aos outros e,
afinal, ao mundo, em que por alguma razão obscura, um dia desembarcou. O homem
«aprendente» é, pois, um viajante incansável por essa «realidade» que o cerca e
que é, em última análise, insondável em si mesma, apesar de «realmente»
existente. Viajante que não fica exactamente deslumbrado com as paisagens que
contempla, mas somente amadurecido e esclarecido.
Talvez seja esclarecedor e sugestivo, imaginá-lo como ousado explorador do
espaço em certo dia lançado por poderosa nave na rota de algum distante corpo
celeste.
É importante assinalar que esta pesquisa, do ponto de vista do «aprendente» é
uma aprendizagem que se pretende «honesta», isto é, tão objectiva quanto
possível. Algo, portanto, distinto daquilo que tão sugestivamente, os ingleses
designaram dewishful thinking, isto é, da confusão entre a realidade e os
nossos desejos.
Nesta linha de análise, qual o lugar a atribuir ao «amor» na relação entre
seres humanos dos dois sexos?
Claro que a questão inclui a relação sexual, mas vai muito além disso. A
«aprendizagem» que tenho referido inclui, não apenas o conhecimento de si
mesmo, mas também o conhecimento dos seres amados. Sejam o parceiro ou parceira
sexual ou os familiares, por exemplo, os filhos.
Mas, sem dúvida que o amor profundo entre um homem e uma mulher ocupa um lugar
que deve ser destacado no universo das relações humanas. Sem esquecer que essa
relação não tem necessariamente um componente sexual, embora seja normal a sua
importância determinante da relação.
Porém, o nosso «homem aprendente» poderá ou não descobrir essa relação no
percurso da sua existência.
Digamos que se trata de uma relação que não é necessária para o sucesso da
aprendizagem pessoal, mas que pode ser, de algum modo, suficiente, isto é,
contribuir decisivamente para esse sucesso. A relação profunda entre um homem e
uma mulher pode, afinal, funcionar como um jogo complexo de espelhos.
Cada um conhecendo-se melhor a si mesmo, exactamente na medida em que vai
mergulhando no conhecimento mais profundo do outro.
O DESENVOLVIMENTO PESSOAL COMO AUTOGESTÃO DO SER HUMANO
A «democracia» em que vivemos é, como se sabe, largamente enganadora. A
liberdade individual só é atingida se for duramente conquistada, contra uma
série de ameaças, algumas que surgem de «dentro» do próprio indivíduo.
Pois é numa sociedade mediática que vivemos, mesmo neste Portugal periférico e
tradicionalmente possuído por uma «ideologia portuguesa» que é uma miopia
envergonhada, pois olha para fora com um peculiar complexo de inferioridade.
Em livro recente, defendi a necessidade de uma estratégia nacional de
«identidade própria e valorização da diferença» que, em última análise, também
pode fazer sentido para o desenvolvimento pessoal do nosso «homem aprendente».
Pois trata-se, em última análise, de construir na liberdade pessoal um desenho
específico do ser humano.
Isto, claro, em conformidade com certa visão do mundo e correspondente sistema
de valores.
Trata-se da «utopia do Séc. XXI»?
Talvez seja, tão distante se encontra o nosso «homem aprendente» das
caricaturas humanas que nos rodeiam por todo o lado, sobretudo nos chamados
países desenvolvidos.
Mas quem conhece um pouco da realidade humana do mundo «menos desenvolvido»,
mesmo em certas regiões de Portugal, encontra aí seres de qualidade preciosa,
guardados como jóias da Natureza, ainda não contaminadas pela ganância e
mediocridade predominantes noutros sítios.
Vale a pena ir por aí fora na sua descoberta, quando procuramos descobrir o que
de melhor existe em nós próprios
Complexo INDEG/ISCTE
Avª Prof. Aníbal Bettencourt
Campo Grande
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