Géneros e estilos profissionais
O DICIONÁRIO
Géneros e estilos profissionais[1]
Géneros y estilos profesionales
Genres et styles professionnels
Professional genders and styles
Yves Clot*
*Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), 41, rue Gay Lussac, 75005,
Paris, France
clot@cnam.fr
A tradução deste artigo para português foi realizada por João Viana Jorge
É o nome de um par conceptual – género e estilo – que extrai estas noções da
análise literária onde são amplamente utilizadas (Bakhtine, 1984 ; Schaeffer,
1989) para lhes reencontrar as raízes na vida corrente e antes do mais no
trabalho. Género e estilo são, no trabalho, inseparáveis (Clot, 1999b ; Clot
& Faïta, 2000) se não se pretender que os trabalhadores corram riscos.
Para ir direito ao essencial pode partir-se de um exemplo, precisamente, tomado
da literatura, mas cuja substância é a vida real. Madame Bovary de Flaubert
começa assim : " Nós tínhamos o hábito, ao entrar na sala de aula, de
atirar os nossos bonés ao chão para ter depois as mãos mais livres. Era
preciso, desde a ombreira da porta, lançá-los para o banco de forma a chocar
contra a parede levantando muita poeira. Era esse o género". E Flaubert
sublinha "o género". Avalia-se aqui o que a atividade pode dever a
uma história transpessoal. Estamos longe de situações de trabalho. Todavia, já
foi demonstrado que um meio profissional desprovido deste género de organização
da atividade, onde cada um é afinado pelo diapasão do trabalho, fica privado de
um importante instrumento de ação (Clot, 1999a, 2008; Roger, 2007). Pode dizer-
se que este instrumento coletivo transforma uma situação de trabalho num mundo
social enquanto tal, estabelecendo assim o espírito do lugar. Esta memória
prenunciativa pode interpor-se entre mim e eu, como uma gama de ações
encorajadas ou inibidas num coletivo profissional. Sem ser todo o trabalho ou
toda a profissão, ela organiza a resposta genérica da profissão evitando
"deambular a solo perante a vastidão das asneiras possíveis"
(Darré, 1994, p. 22). O género profissional da atividade é transpessoal (Clot,
2008), como que um traço de união na intersecção do passado e do presente numa
história de que ninguém é proprietário.
Todavia cada um é um pouco responsável na atividade em curso, na qual este
género deve a cada momento voltar a fazer as suas provas. Não existe, senão por
ocasião do trabalho coletivo que lhe dá corpo, mas ultrapassa-o visto que lhe
retém a história e lhe prepara a ação. É a sua estrutura, a sua morfologia.
Conserva, através de esquemas genéricos, o que faz jurisprudência no trabalho
coletivo. Fixa os precedentes que servem de referência para casos similares que
possam apresentar-se na atividade com seus imprevistos. Condensa os resumos
coletivos do trabalho como outros tantos esquemas sociais "pré
trabalhados" que podem – mesmo no desconhecimento dos operadores – ser
ativados ou desativados de acordo com as condições singulares da ação. É a
parte subentendida da atividade, o que os trabalhadores de um dado meio veem e
sabem, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; o que lhes é comum e o que os
une sob as reais condições de vida; o que eles sabem dever fazer graças a uma
comunidade de avaliações pressupostas, sem que seja necessário re-especificar a
tarefa cada vez que ela se apresenta. É como "uma palavra passe" ou
um atalho conhecido apenas por aqueles que pertencem ao mesmo horizonte social
e profissional. Estas avaliações comuns subentendidas ganham, nas situações
incidentais, um significado particularmente importante. Com efeito, para serem
eficazes, são económicas e muito frequentemente não são sequer enunciadas.
Entraram na carne dos profissionais, pré organizam-lhes as operações e a
conduta, estão de certo modo soldadas às coisas e aos fenómenos
correspondentes. É por isso que não requerem formulações verbais específicas. O
intercalar social do género é um corpo de avaliações comuns que regulam de
forma tácita a atividade pessoal.
Calcula-se o quanto este género transpessoal é ao mesmo tempo precioso e
diferente das prescrições impessoais da tarefa. O trabalho a executar não pode
depender somente dele mas é todavia indispensável visto que coloca justamente
em relação a tarefa e a realidade, que esta última não pode nunca antecipar
completamente. Sem esta correia de transmissão é assaz difícil ser-se capaz de
estar só no trabalho, o que é todavia frequentemente necessário. Fréderic
François considera que os géneros dos discursos colocam em relação a linguagem
e a extra-linguagem(1998, p. 9). Pode também dizer-se que os géneros de
atividade estabelecem uma relação indireta com a realidade da tarefa. Quando o
género da tarefa está em pousio, todo o trabalhador carece de meios para a sua
atividade própria e sua iniciativa pessoal. É por isso que o dispositivo
dialógico das auto-confrontações se prende ao levantamento desse pousio quando
ele existe. E, para fazer isso, recolocar subentendidos, atalhos e às vezes
mesmo quebra-cabeças genéricos, em discussão entre os profissionais. Poderia
dizer-se que este dispositivo repõe em andamento o género profissional
recarregando-o com a energia dos "retoques" estilísticos (Clot,
2008).
O estilo é antes de tudo a estilização individual ou a de alguns colegas na
renovação do género profissional. Não é a transgressão da tarefa oficial por
desvio da conduta deste ou daquele, dito de outro modo: um desvio da norma
impessoal. O estilo é a liberdade que se pode tomar com o género – nos dois
sentidos do termo – quando se o assimilou; a liberdade de suprimir nas
expectativas genéricas quotidianas aquilo que é inapropriado ao efeito
procurado na situação singular. Dir-se-á, precisamente: a liberdade de
dissolver os blocos de ação pré existentes, assumida para não utilizar senão as
combinações requeridas pela atividade em curso de realização. A estilização tem
parte ligada com a sobriedade do ato, esse poder de aligeirar as operações, os
gestos ou ainda as palavras parasitas. A novidade e a criação ficam por esse
preço, aos custos do retoque. Também é esse o preço da renovação do género.
Porque esse aligeiramento e essa sobriedade podem fazer escola, desenvolver uma
"variante" e eventualmente "ampliar" o género,
permitindo-lhe "reter" a novidade passada pelo crivo do trabalho
coletivo. A estilização está portanto no próprio princípio do desenvolvimento
transpessoal do ofício. É uma repetição sem repetição que descongestiona o
género profissional, impulsionando as variações que podem conservar-lhe a
vitalidade. Esta elasticidade genérica é o resultado do ato estilizado que
assinala um trabalho de afinamento genérico. O género é então menos uma
categoria finalizada passível de inventário do que uma função: cada ação
profissional possui maior ou menor potencial para produzir ou criar um género.
É (uma função) mais ou menos rica em possíveis desenvolvimentos do género.
Assim pode dizer-se que o estilo se liberta do género, não virando-lhe as
costas mas por via da sua regeneração, livre para o refazer ou dele se desfazer
– com vários – quando as circunstâncias o exigem ou o permitem.