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EuPTHUAp1646-52372015000100005

EuPTHUAp1646-52372015000100005

National varietyEu
Country of publicationPT
SchoolHumanities
Great areaApplied Social Sciences
ISSN1646-5237
Year2015
Issue0001
Article number00005

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Exercício analítico sobre o método: aspectos linguageiros na actividade dialógica com trabalhadores de exploração e produção no sector petrolífero

1. INTRODUÇÃO Nossa intenção com esse texto é contribuir com uma das preocupações do Grupo de Trabalho (GT) Modos de vida e trabalho, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia (ANPEPP), no que diz respeito a que tipo de análise realizar dos materiais de linguagem produzidos e registrados nas diferentes ações dos pesquisadores do referido GT. Nossa atenção volta-se, então, num primeiro momento, para o problema da criação de dispositivos de coanálise do trabalho e, num segundo momento, para o da análise dos materiais registrados (áudio, vídeo). A reflexão que temos feito a partir dos materiais produzidos em nossas pesquisas indica que a necessidade de enfrentar o problema com a linguagem é anterior ao colocar em andamento métodos que envolvam atividades de diálogo. A teorização com a linguagem começa na concepção e preparação dos métodos. A clareza sobre o que está em jogo na concepção desses dispositivos abre horizontes sobre como tratar os enunciados a posteriori. Além disso, voltar-se para a análise dos materiais de linguagem produzidos e registrados nas diferentes ações dos pesquisadores convoca humildade epistemológica (Schwartz, 2000) para reconhecer que o dispositivo analítico é uma construção de pesquisa [1].

A atividade dialógica focalizada nesse artigo é parte das atividades realizadas em nossa pesquisa no âmbito do projeto "Trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera offshore da Bacia de Campos", vinculado ao Núcleo de Estudos em Inovação, Conhecimento e Trabalho (NEICT), da Universidade Federal Fluminense. Em síntese, o objetivo geral do projeto consiste em analisar as condições em que se desenvolve o trabalho na etapa de exploração e produção do setor petrolífero na Bacia de Campos (região Norte do estado do Rio de Janeiro) - bem como discutir sua relação com a saúde e a segurança no trabalho. A partir de uma demanda sindical, ancorada no setor de saúde do Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense (SINDIPETRO-NF) que pretendia conhecer e analisar melhor os problemas de saúde e segurança relacionados ao trabalho offshore, o projeto tem se desenvolvido, desde 2002 (Figueiredo, 2012).

Ao longo desses anos operamos com uma "caixa de ferramentas" teórico- metodológica constituída de materiais oriundos da Ergonomia da Atividade (Wisner, 1994; Guérin, Laville, Daniellou & Duraffourg, 2001; Daniellou, 2004; Falzon, 2007); da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1993, 2008, 2009), mobilizados a partir de uma perspectiva ergológica (Schwartz, 2000; Schwartz & Durrive, 2010). É importante sublinhar que para o desenvolvimento deste artigo a Clínica da Atividade também mostrou-se uma ferramenta valiosa.

Ferramenta potente, porque a atividade dialógica promovida por essa abordagem visa oferecer recursos para viabilizar a discussão e análise dos componentes subentendidos da atividade. Ou seja, para além do que foi realizado, de modo a desnaturalizar aquilo que tende a parecer como o único caminho possível. Essa perspectiva de exploração coletiva de outras possibilidades de realização serviu de fio condutor para compreender o que os pesquisadores profissionais fazem na atividade de diálogo em discussão neste artigo, ou seja, que dispositivos fabricam com a finalidade de discutir o trabalho daqueles que atuam nesta etapa (exploração e produção) do setor petrolífero em foco. Como exigência para essa reflexão, convocamos também os aportes provenientes do campo dos estudos da linguagem, mais especificamente, os que têm sido produzidos no âmbito da Linguística Aplicada contemporânea.

Trazemos aqui então, determinadas sequências da atividade de diálogo de nossa pesquisa pelo quanto nos interpelaram, tanto pelo nosso modo de intervenção no diálogo, como também pelo modo de participação do engenheiro protagonista do trabalho em foco. De tal maneira que, ao escutarmos a gravação desse diálogo, ficamos, de início, com certa inquietação sobre o modo como o conduzimos. Isso se deu por percebermos um uso particular da linguagem, o qual colocava em evidência pressupostos que tínhamos a respeito da atividade de trabalho em jogo e os saberes acumulados sobre os aspectos sociotécnicos envolvidos no trabalho do engenheiro. Antes da primeira interlocução com ele, o acesso aos discursos sobre o trabalho na empresa em que o engenheiro atuava nos permitiu inferir que o trabalho em questão envolve atividades perigosas, de alto risco. Ela faz com que os indivíduos tenham que lidar com seus limites fisiológicos e psíquicos exigindo muito dos trabalhadores que estão expostos a uma miríade de fatores de riscos e a péssimas condições de trabalho (instalações sanitárias e alimentação precárias, ausência de locais para descanso, exposição às intempéries meteorológicas, isolamento). Esses pressupostos sobre os riscos a que estavam expostos e a extrapolação dos limites fisiológicos e psíquicos deixaram traços na atividade dialógica realizada. Por exemplo, na perplexidade demonstrada pelos pesquisadores por esse fato ocorrer na empresa em que atuava o engenheiro, por se tratar de uma multinacional renomada do setor petrolífero que atua no mundo inteiro e destaca-se como liderança de mercado em seu ramo de atuação. Ao saberem da ausência de um local de descanso para o engenheiro durante os períodos em que realizava algum tipo de serviço, os pesquisadores insistem em voltar ao tema do sono. Isso, apesar de saberem, de antemão, que o treinamento dispensado aos funcionários com um conteúdo relacionado a "técnicas de administração do sono" (Petroleum Technology Alliance Canada, 2010) sugere da parte da empresa uma política de gestão calcada na individualização do risco. Mesmo assim, ou por isso mesmo, a abordagem ao tema encontra resistência por parte do engenheiro que responde às provocações dos pesquisadores limitando-se a explorar o enunciado pelo sentido literal. Devido a essas inquietações, as sequências de atividade de diálogo em que o tema da privação de sono é transformado em espaço dialógico de disputas são o recorte escolhido.

A fim de investigar esses materiais e fornecer subsídios à reflexão sobre elaboração de métodos para tornar o trabalho objeto de análise, buscamos construir um dispositivo que nos permitisse investigar, nas sequências dessa atividade de diálogo, os seguintes fatores: (1) o papel dos enunciados dos pesquisadores para a motricidade do diálogo em realização, na disputa sobre os objetos do "real", revelando-se como atos de fala direcionados no sentido de promover a tensão e provocar ruptura na tendência monologizante (Bakhtin, 1998) do discurso do engenheiro do setor petrolífero; (2) a relação dos pressupostos com a historicidade da investigação conduzida pelos pesquisadores e (3) rupturas e continuidades entre os enunciados, de modo a destacar contornos de gêneros do discurso em transmutação (Bakhtin,1997), da tensão ao desenvolvimento de gêneros de novo tipo. A historicidade referida no segundo item foi evocada como elemento que, articulado com a metodologia desenvolvimental, alça esses enunciados à condição de produtores de gêneros do discurso [2] de um novo tipo. Gêneros esses, capazes de gerar um primeiro nível de controvérsia, um novo começo para pensar outros possíveis para o trabalho do setor petrolífero - aqui, com foco na perfuração de poços -, a partir de uma tensão que sinaliza para a possibilidade de rompimento com a perspectiva defensiva do discurso impessoal sobre o trabalho (expressos nos enunciados genéricos do "você", "o engenheiro") e se desenvolve para uma perspectiva pessoal potencialmente analítica (ponto de partida para o desenvolvimento de um outro "eu", de um outro olhar discursivo).

Ao lançarmos mão de um posicionamento reflexivo sobre o nosso modo de compreender e participar da atividade de diálogo em uma pesquisa em que os instrumentos são considerados, como diz Vigotski (1985), uma atividade em seu próprio desenvolvimento, visamos mostrar o lugar dos enunciados no processo de desenvolvimento de um novo gênero de discurso. Gênero surgido na historicidade de outros, como a conversa e a entrevista, sob a perspectiva daquilo que os pesquisadores fazem com a linguagem.

2. CAIXA DE FERRAMENTAS: REFERENCIAIS TEÓRICOS PARA ANALISAR O TRABALHO NA ETAPA DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO NO SETOR PETROLÍFERO Para a reflexão que envolve atividade dialógica e análise do trabalho a que nos propomos neste artigo, as lentes teóricas advêm principalmente dos aportes da Psicologia desenvolvimental (Vigotski, 1985) com ferramentas conceituais que vêm sendo desenvolvidas por pesquisadores da abordagem denominada Clínica da Atividade (Clot, Prot & Werthe, 2001; Fernandez & Malherbe, 2007; Litim, 2006; Henry & Bosson, 2008; Jouanneaux, 2011), entre outros. As pesquisas nessa clínica do trabalho têm como denominador comum o desenvolvimento de uma atividade de diálogo entre profissionais sobre as maneiras como trabalham. O pressuposto é de que essas maneiras podem se tornar objeto de discussão porque existe "o real da atividade", entendido como o desenvolvimento possível ou impossível de outras realizações (Clot, 1998).

Outra contribuição fundamental para compreender nossa abordagem é a da Linguística Aplicada contemporânea - campo que situa a ação de linguistas no interior de projetos coletivos interdisciplinares de pesquisa-intervenção nos mundos do trabalho (França, 2007). Ela fornece-nos o pano de fundo ético, político e epistemológico, justamente por reconhecer que "teorizações sobre a linguagem possam ser construídas nos entrecruzamentos disciplinares" (Moita Lopes, 2011, p.20). Distanciando-se de suas origens, ou seja, da vertente "aplicacionista" em que a formulação conceitual e os métodos de abordar a linguagem são usados principalmente para solucionar problemas ligados a ensino/ aprendizagem de línguas, a Linguística Aplicada com a qual nos alinhamos não é dependente de uma teoria linguística, não se restringe ao campo da Educação e é tributária das teorias socioculturais de Vigotski e Bakhtin (Moita Lopes, idem). Entretanto, ao afirmarmos que a Linguística Aplicada nesse campo do conhecimento não é dependente de uma teoria linguística, não preconizamos ausência de teorização. Significa sim que essa teorização pode tomar de empréstimo de outras áreas categorias e conceitos, ou de uma mesma área categorias advindas de domínios diferentes, articulando-as, porém, com rigor científico.

Para a reflexão sobre o estudo do trabalho com a linguagem enfrentamos o desafio de construir um dispositivo analítico (Rodrigues, 2014) que nos permitisse abordar aspectos da linguagem, compreendendo-a como instrumento simbólico, suporte de desenvolvimento de relações entre pessoas e objetos. A categoria semântico-pragmática da pressuposição nos permitiu uma entrada na materialidade linguística, ao mesmo tempo situando o diálogo na historicidade da pesquisa, na e pela comunidade dialógica estabelecida (França, 2007). Dado que o exercício de método é em si um ato de "falar e escutar", ele está, por isso mesmo, implicado em uma atividade dirigida (Bakhtin,1997; Faïta, 2005).

Atividade esta, preparada com a finalidade de instalar uma atividade particular em que o colocar o trabalho em discussão possa funcionar como fonte indireta de saúde para as pessoas participantes do método. Um dispositivo de linguagem de modo a levar as pessoas a circularem por gêneros do discurso de um novo tipo (Bakhtin, 1997; Faïta, 2005; Nourroudine, 2002), ligados muito mais à intenção de se fazer algo por meio das palavras (Austin, 1990) do que à ideia de proferir certo conteúdo passível de ser analisado a posteriori.

2.1 Aspectos teóricos que permitiram a construção do dispositivo de análise 1: os pressupostos A pressuposição é uma inferência, a partir de um enunciado, de uma informação não explicitada. A análise de inferências semânticas (Ducrot, 1972), com base no aparato técnico da significação, não está dissociada de inferências pragmáticas (Levinson, 2007), ligadas aos sentidos que vão sendo construídos na enunciação. Não reproduziremos a história desse campo ou perspectiva de estudo.

Diremos apenas que a pragmática é reivindicada por estudos de naturezas diversas, sendo ora tomados como indissociáveis da semântica, ora como pertencendo a uma área distinta da semântica. Entre as diversas formas de pensar e praticar a pragmática, tendemos a adotar aquela a que Rajagopalan (2010) intitula "Nova pragmática", discriminando-a da leitura que faz Searle (Searle, Kiefer & Bierwisch, 1989) dos atos de fala, por entendê-la como distante de uma teoria do direito, da ética e da política.

Na abordagem que fazemos aqui da atividade dialógica, adotamos essa perspectiva (não propriamente uma disciplina), pois percebemos o enunciado como uma atividade dirigida ao outro (outros) e também pelo lugar que reserva ao estudo dos implícitos, sempre presentes no discurso, particularmente sob a forma de pressupostos e de subentendidos.

2.2 Aspectos teóricos que permitiram a construção do dispositivo de análise 2: gêneros do discurso e o enquadre dialógico A linguagem não é meio neutro que se torna fácil e livremente propriedade de um locutor que queira expressar sua experiência em um contexto específico. Ela é impregnada de intenções estrangeiras que precisam ser dominadas e submetidas a intenções próprias, por meio de acentos também próprios, o que se configura um processo árduo e complexo (Bakhtin, 1988). Em seu projeto de dizer, o sujeito nunca está, portanto, sozinho diante da língua, abandonado à sua fala isolada.

No campo de quase todo enunciado ocorre a interação tensa e um conflito entre sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico mútuo. Dessa forma, o enunciado é um organismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, se não se considerar apenas sua orientação para o objeto e sua expressividade unívoca direta (Bakhtin, idem).

A atividade de diálogo é dirigida ao objeto, ao outro e a si mesmo. É individual, mas sua existência é sempre parte de uma interação verbal, o que torna adequado compreendê-la e abordá-la em sua natureza dialógica. Na construção de nosso dispositivo de análise, a teoria dos gêneros do discurso de Bakhtin (1997) revela-se bastante produtiva nos ajustes que precisamos fazer em nossas lentes. Parece-nos então, no recorte estudado nesse artigo, haver a migração funcional do gênero de discurso pergunta, que deixa de ser pergunta para ser um enunciado gerador de um nicho de um novo gênero, no qual o trabalhador encontra lugar para o dito. Pelo fato de possuir uma plasticidade constitutiva, esse enunciado pode ser o fio condutor de movimentos. Novos gêneros, desenvolvidos de gêneros anteriores. Vejamos a seguir como esses aspectos teóricos orientaram nossa atividade dialógica e nossa análise.

3. CAIXA DE FERRAMENTAS: DISPOSITIVOS METODOLÓGICOS COLOCADOS EM AÇÃO Durante a vigência do projeto de pesquisa não tivemos possibilidade de observar a contento a atividade de trabalho nas unidades de serviço das plataformas e dos campos de exploração e produção de petróleo devido aos múltiplos empecilhos que dificultavam o embarque nas unidades marítimas - desde a liberação para o trajeto via helicópteros, passando pela carência de vagas nos camarotes de pernoite dos trabalhadores. No entanto, pudemos apreender o funcionamento geral dos processos de exploração e produção petrolífera, assim como ter contato com situações problemáticas mobilizando uma "comunidade ampliada de pesquisa" (CAP) [3], tendo como inspiração, em especial, os valiosos contributos em intervenções anteriores (Brito & Athayde 2003; Brito, Athayde & Neves, 2003; Athayde, 2011; Athayde, Zambroni-de-Souza & Brito, 2014). Essa CAP envolveu, no período de maior implicação, os "pesquisadores diretos" (coordenadores do projeto), o "grupo sindical" (demandante) e um "grupo de trabalhadores diretamente interessados" (contatados via direção sindical), além de um "pesquisador indireto" (acompanhando a pesquisa sem participação direta e sistemática no campo e com outra formação acadêmica). [4] Vemo-nos alinhados a essa perspectiva, posto que nossa finalidade era operar com dispositivos de interação que dinamizassem a relação entre diferentes saberes (o conhecimento científico e a experiência da prática). Ou, dito de outro modo, que fizessem dialogar (sinergicamente) os saberes disciplinares ( polo) com os saberes investidos na atividade ( polo), considerando ainda a criação da possibilidade de articulação entre o encontro e o confronto desses dois polos e que pode ser denominada como uma preocupação ética e epistêmica (3o polo), conforme a démarche ergológica e o dispositivo dinâmico de três polos (Schwartz & Durrive, 2010).

Durante a pesquisa, para a mobilização de uma "comunidade ampliada de pesquisa", lançamos mão dos chamados "encontros sobre o trabalho" com os protagonistas do trabalho em análise e alguns técnicos, assessores do sindicato. Nesses "encontros", as atividades de diálogo foram bastante variadas, algumas seguindo, de maneira livre e singular, um roteiro pré- estabelecido com vistas a mapear os aspectos sociotécnicos, assim como a atividade de trabalho. Outras foram mais formalizadas, mas todas realizadas com a finalidade de provocar os possíveis que estão em jogo no trabalho do setor petrolífero, a fim de promover saúde e segurança no trabalho.

Como dito anteriormente, interessa-nos nesse texto o entendimento do uso que os pesquisadores fizeram da linguagem na atividade de diálogo em termos das tentativas de explorar o "real", isto é, o campo de intercruzamento de outras possibilidades discursivas para as situações de trabalho estudadas, além daquelas enunciadas. Para conceber esse movimento, nos alinhamos com Vigotski (1985) que compreende o método como algo a ser praticado e não aplicado, contrariando o caráter instrumental ou pragmático presente em metodologias recorrentes que mantêm conteúdo experimental e resultados apartados do método.

Para Vigotski (1985), o método não é um meio para se chegar a um fim previamente definido (teleologia). Diferentemente disso, instrumento e resultado são, dialeticamente, pré-requisito e produto. Estes são inseparáveis.

Mais do que um caráter funcional, os instrumentos são também considerados como a atividade do seu próprio desenvolvimento. Por esta razão instrumento é também resultado. Estabelece-se uma unidade instrumento-e-resultado. A qualidade dos processos de desenvolvimento desses instrumentos são ao mesmo tempo os resultados em formulação. O que estamos analisando são ao mesmo tempo os resultados obtidos e o instrumento adotado pelos pesquisadores na atividade de diálogo orientada para criar controvérsias sobre o trabalho na situação em relevo, em especial a atuação de um engenheiro de campo.

Em consonância com essa dupla perspectiva de análise, está a forma como encaminhamos a entrevista, ou dito de outra maneira, como chegamos a ela.

Rocha, Daher e Sant'Anna (2004) fazem um levantamento a respeito do modo como a técnica de entrevista é abordada em livros sobre metodologia de pesquisa no Brasil. Destacam certo número de obras em que a definição de entrevista pressupõe justamente uma concepção de linguagem como espelho da realidade.

Observam que, não raro, nesses trabalhos, o gênero de discurso entrevista é definido como ferramenta que permite a imediata captação da informação desejada. Os exemplos retirados das obras analisadas por esses autores estão entre os inúmeros nos quais o entrevistado é tomado como "informante" que sabe aquilo que o entrevistador precisa saber. Essa concepção é acompanhada da crença de que o que é dito por esse informante equivale a uma informação com valor de verdade.

As sequências de atividade de diálogo que realizamos foram nomeadas de "entrevista", sendo assim, iniciaram-se do modo como é esperado no referido gênero do discurso. Compreendemos, no entanto, com Rocha, Daher e Sant'Anna (2004), ser necessário explorar as consequências da natureza polifônica da linguagem, no que tange a esse gênero. Nas atividades de diálogo com trabalhadores realizadas na pesquisa, ainda que nem sempre de modo sistematizado, buscou-se agir a fim de mudar o estatuto do sujeito ("o entrevistado"): buscou-se construir pontes para que ele se investisse no diálogo como sujeito da análise. O objetivo de que o trabalhador tome para si a tarefa de interpretar o trabalho é que permite que uma entrevista possa se transformar em um gênero de atividade de um novo tipo.

Assim, entrevistas não são meras ferramentas de apropriação de saberes previamente existentes. Trata-se de concebê-las como um método, diferente de outros, no qual a atividade de diálogo se insere na perspectiva de uma metodologia desenvolvimental.

Em nossa pesquisa, também não se trata de uma concepção de diálogo como comunicação. De acordo com o que está em jogo na atividade de diálogo realizada, os conhecimentos pressupostos e subentendidos servem para que os pesquisadores sustentem a controvérsia, colocando o trabalho na clínica.

Não se tratava também de uma entrevista clínica, mas certamente, no esforço de instaurar um novo enquadre dialógico, a atividade de diálogo empreendida não se restringiu a retirar conteúdos a respeito da experiência do trabalhador. Nosso objetivo foi criar o estranhamento, provocar a controvérsia, de modo que o sujeito encontrasse meios de desenvolver o diálogo com os pesquisadores.

Provocar atividade no diálogo. Posteriormente, investigar como se pode gerar o movimento e apresentar considerações em textos de divulgação como este, garantindo a vida da palavra, e abrindo o horizonte para que confrontos e reformulações possam vir como pista sobre o trabalho daqueles que atuam na exploração e produção do setor petrolífero e também sobre o trabalho do pesquisador.

Para esse artigo optou-se por selecionar um trecho da atividade dialógica entre pesquisadores e o referido engenheiro vinculado ao tema sono-vigília. A escolha deveu-se à riqueza apresentada no diálogo e ao entendimento que ele representava bem os aspectos relacionados ao que chamamos de pressupostos e também à mudança de gênero que queríamos explicitar. E também porque o tema da relação sono-vigília aparece de maneira inusitada na gestão do trabalho da empresa em foco.

Inicialmente, vejamos como se deu a aproximação pesquisadores/engenheiro para depois apresentarmos o enquadramento e a perspectiva dos pesquisadores no que tange às questões de saúde e segurança e, a seguir, as características das tarefas realizadas pelo engenheiro.

3.1 De como se deu a aproximação: da conversa espontânea ao gênero entrevista acadêmica Os pesquisadores faziam viagens periódicas à Macaé [5] (para os encontros sobre o trabalho, para reuniões no sindicato, para eventos da categoria etc.) e, em uma dessas viagens, o coordenador do projeto (pesquisador1) encontra o engenheiro, seu ex-aluno do curso de engenharia, na rodoviária da cidade.

Entabulam uma conversa sobre o trabalho do engenheiro e a empresa onde atuou, sentam-se juntos no ônibus durante o trajeto de volta à cidade do Rio de Janeiro conversando por cerca de 3 horas e meia. Quando chegaram ao destino, o pesquisador explicou o teor da pesquisa em andamento e perguntou se o engenheiro estaria disposto a "gravar uma entrevista". Ele aceitou e forneceu seus contatos. A entrevista foi agendada e ocorreu na casa do ex-professor.

Note-se que em todo esse movimento , por um lado, um sentido de oportunidade, pois os pesquisadores haviam tomado conhecimento, anteriormente, das condições de trabalho e das características atípicas da organização do trabalho naquela empresa, para além de outros aspectos que se inseriam no escopo de nossos interesses de pesquisa. Por outro lado, a construção de um compromisso, na medida em que o engenheiro aceita fazer uma entrevista gravada (com registro em áudio). Do ponto de vista metodológico, isso significa também uma espécie de predisposição permanente para a pesquisa por parte do pesquisador que faz com que aproveite as oportunidades onde e quando quer que elas se apresentem.

3.2 Os protagonistas das atividades de diálogo em foco Dois pesquisadores responsáveis pela coordenação do projeto de pesquisa (Figueiredo, 2001; Alvarez, 2004, 2012) e um engenheiro do setor petrolífero realizaram a atividade de diálogo aqui analisada. Posteriormente, o projeto passou a contar com uma linguista (aplicada) que vem se dedicando aos estudos das atividades dialógicas nos e dos mundos do trabalho (França, 2007), com aportes da Clínica da Atividade.

Os pesquisadores dedicam-se ao estudo teórico-prático de situações de trabalho tendo a Ergonomia da Atividade como eixo aglutinador de clínicas do trabalho, especialmente a Psicodinâmica do Trabalho, em uma perspectiva ergológica. Mais recentemente, acrescentaram a essa caixa de ferramentas os materiais conceituais e metodológicos da Clínica da Atividade. Essa configuração possibilitou um olhar singular para tratar as questões relacionadas à organização do trabalho e suas possíveis consequências para a saúde do trabalhador. De tal forma que a visão hegemônica propiciada pela área da Saúde Ocupacional nas empresas, que privilegia a noção de riscos ocupacionais é confrontada por outra concepção de saúde que a como a capacidade de criar novas normas e de renormatizar e recentrar o próprio meio (Canguilhem, 1995).

Muda-se a concepção de trabalhador assujeitado para a de sujeito que pode, em alguma medida, criar estratégias (individuais, mas principalmente coletivas) e se reinventar frente às adversidades do meio. Isso é possível lançando-se mão de ferramentas teóricas que abarcam as noções de trabalho coletivo, sofrimento no trabalho, estratégias e ideologias de defesa coletivas, renormatizações, dentre outras. Busca-se um olhar duplamente focado - no contexto e na atividade -, para tentar entender o que se passa nos mundos do trabalho, para tentar dar conta de uma parte do enigma que o constitui.

O profissional engenheiro, Gilvan (nome fictício), à época com 28 anos, é ex- funcionário da empresa multinacional de exploração de petróleo (denominada aqui empresa A). O tipo de trabalho que realizou (atividade ligada à perfuração de poços) pode ser descrito como de alto risco e com o emprego de instrumental assaz específico, de elevado custo financeiro e desenvolve-se tanto em campos onshore quanto em campos offshore.

As operações de perfuração são comumente classificadas como "rotineiras" e "específicas". As de rotina são aquelas tidas como normais na atividade de perfuração e as específicas abrangem as operações diferenciadas, tais como perfilagem, revestimento, cimentação, testemunhagem e completação (Cardoso, 2005). Normalmente, num poço exploratório, a empresa contratante pede um número maior de registros (informações oriundas das descidas das ferramentas-sensores para dentro do poço) do que no poço de desenvolvimento. E esta é uma das principais atribuições do referido engenheiro.

Os serviços executados pela empresa são cruciais para o andamento dos trabalhos no poço, pois as demais equipes envolvidas, com todos os seus equipamentos mobilizados, dependem da conclusão das operações da empresa A para que possam dar continuidade ao processo. Dito de outra forma, os atrasos que venham a ocorrer significam que todo o aporte de pessoas e maquinário mobilizado pelas outras empresas em torno do poço ficará paralisado. Daí a enorme pressão temporal a que ficam submetidos os profissionais contratados pela empresa A, fazendo com que não interrompam seu trabalho durante a prestação do serviço.

Isso significa que podem chegar a um campo petrolífero (com atuação prolongada em alguns poços) e ficar de 2 a 5 dias trabalhando (ou até mais, em circunstâncias excepcionais), sem interrupção. Ou seja, as tarefas têm de ser realizadas de maneira ininterrupta, durante as 24 horas, e ao longo dos dias de permanência no local. Cabe frisar aqui que não somente os poços offshore situam-se em áreas longínquas (alto mar). Na grande maioria das vezes a localização dos poços onshore também encontra-se em áreas distantes dos grandes centros e isoladas, praticamente desérticas, sem comércio ou infraestrutura de serviços por perto. Nesses locais não dormitórios (ou qualquer local para dormir), nem banheiros, nem restaurantes, nem cantinas ou refeitórios. Muitas vezes os trabalhadores comem quentinhas que são trazidas de locais distantes por algum dos trabalhadores que se desloca em um veículo da empresa para comprá-las e chegam frias. Na verdade, estão expostos a condições bastante duras de trabalho, em que se aliam elevada periculosidade e insalubridade, em função da presença de diversos agentes de risco. Ao término do trabalho contratado, o engenheiro e o operador chefe devem conduzir os veículos que dão suporte às operações para a base da empresa, ou para outro campo (local de outro projeto), mesmo que tenham passado alguns dias sem dormir ou tirando breves cochilos. Para dar conta desse quadro insone, durante a fase de treinamento desse tipo de profissional, a empresa ministra um módulo que versa sobre "administração do sono" (Petroleum Technology Alliance Canada, 2010), para que os trabalhadores sejam munidos de elementos para lidar com a impossibilidade de dormir à noite, numa clara tentativa de torná-los mais adaptáveis à adversidade E isto, mesmo que tal iniciativa se mostre questionável, como atestam o desgaste acentuado e os acidentes sofridos por alguns trabalhadores.

Em geral, operações como as que participava Gilvan requerem a presença de um engenheiro, um operador-chefe e dois operadores. A empresa mantém uma base de operações em uma determinada cidade e eles deslocam-se para o local onde está o poço utilizando um caminhão e uma caminhonete. É comum o engenheiro ajudar o restante da equipe na montagem das ferramentas embora essa tarefa não seja sua atribuição formal. Dentro da cabine do caminhão, o controle de um carretel, a cargo do operador chefe, e a cargo do engenheiro ficam dois ou três computadores, por intermédio dos quais é possível monitorar a operação das ferramentas (dotadas de sensores). O engenheiro envia comandos e recebe informações dos sensores destas ferramentas, que se deslocam pelo interior do poço e são capazes de captar informações pela sua parede. Também é atribuição do engenheiro calibrar a ferramenta, que cada poço possui uma dada condição de trabalho, e portanto deve-se ajustá-la às condições correspondentes em que ocorrerá a intervenção. Com frequência, realizam-se "viagens" conectando-se várias ferramentas, mas, em função das necessidades, situações em que se faz 5, 6, 7 "viagens" no poço com ferramentas diferentes. Diversas dessas manobras são realizadas utilizando-se dispositivos de controle do tipo joystick.

4. REFLEXÃO SOBRE OS MATERIAIS DIALÓGICOS Ainda que percebamos que a subdivisão da interação em um conjunto particular de sequências seja uma escolha analítica que retira o diálogo de sua abrangência situacional, assumimos essa escolha como o gesto de colocar mais um elo na cadeia dialógica que se estabelece entre pesquisadores e os mundos do trabalho com os quais conversamos.

4.1 De um gênero entrevista convencional à visada de uma interação de um novo gênero Nossa análise inicia-se pela atividade de diálogo que começa com a interação entre os pesquisadores e o engenheiro. Este é o ponto em que se o início da gravação do encontro sobre o trabalho nomeado de entrevista pelos interlocutores. No fragmento transcrito, o pesquisador1 (P1), o ex-professor, pede ao engenheiro para "recapitular" sua trajetória na empresa A, ao que Gilvan responde em um gênero de retomada da narrativa anteriormente iniciada. Ou seja, aceita o que é requisitado e o diálogo se inicia num tom conversacionalmente coerente, criando a ilusão de que esse tipo de interação é capaz de poder expressar a realidade dos fatos e não versões discursivas destes.

P1.: () na indústria do petróleo e assim, pedir pra você recapitular, rapidamente, como é que foi esse teu percurso e o que é que te levou até a empresa A, ? Eng: Olha, eu tava falando com ela (P2) que eu tinha estagiado em algumas empresas, e pouco antes de me formar eu entrei na GE, na área de aviação, na GE Varig, no Galeão. fiquei nove meses , trabalhando na área de métricas, depois na análise de resultados, na área de metodológicos. dali, eu fui pra empresa A, fiquei 3 anos , e depois fui pra T.., onde eu agora. A empresa A eu conheci porque o meu irmão trabalhou uns 3 anos, antes de eu entrar. Ele tinha trabalhado 3 anos, saiu, e um ano depois eu fui pra e assumi. Pela informação que eu tinha com relação à empresa A, tinha muita coisa interessante e fez com que eu pensasse em ir pra , ? 4.2 Entendendo os pressupostos dos pesquisadores presentes nos enunciados Ao retomar a escuta da gravação da atividade de diálogo para analisá-la sob essa perspectiva instrumental, verificamos que as falas dos pesquisadores traziam situações que demonstravam um posicionamento prévio sobre o trabalho do engenheiro. A análise desses pressupostos como categoria linguística semântico- pragmática nos pareceu uma entrada possível no processo de construção do dispositivo analítico, conforme buscaremos demonstrar com a breve troca transcrita abaixo. O trecho selecionado traz a perplexidade dos pesquisadores sobre as condições de trabalho do engenheiro.

1.P2.: E você acha por que isso? Eles acham que a pessoa vai trabalhar 48 horas sem dormir nada? Por que não ter um lugar de descanso? 2.P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro? 3.Eng.: Dentro? Não tem lugar. Onde você vai colocar os colchonetes? Assim, o pressuposto no enunciado de P2 é de que "não é possível para um ser humano trabalhar 48 horas sem dormir mesmo que não haja um local destinado para isso". Um local que deveria ter sido previsto pela empresa A e sua respectiva empresa contratante, que são inúmeras, dependendo da região, do país. Trata-se de uma operação pela qual o interlocutor pode captar o sentido de uma enunciação de modo não literal. Como efeito da construção inicial do dispositivo, porém, do lado do engenheiro, suas inferências se mantêm primeiramente ao sentido literal do que é posto, construindo o simulacro de um discurso monológico e monologizante. Esse tipo de análise, além de permitir a entrada na materialidade linguística, coloca essa materialidade na historicidade da construção da pesquisa, na comunidade dialógica formada com o "grupo sindical" (demandante) e um "grupo de trabalhadores diretamente interessados" (contatados via direção sindical), além de um "pesquisador indireto" (acompanhando a pesquisa sem participação direta e sistemática no campo e de outra formação acadêmica), na medida em que os pressupostos foram sendo formados a partir dos diferentes pontos de vista trazidos por esses protagonistas da pesquisa.

Por isso mesmo, nas sequências em análise, as falas dos pesquisadores não expressam somente o interesse em conhecer a experiência e trajetória do engenheiro, elas indicam um uso de linguagem que revela um agir, ou uma tentativa de agir sobre o outro. Os enunciados dos pesquisadores dirigem-se ao trabalho do engenheiro do setor petrolífero, às políticas de saúde e segurança adotadas pelas empresas - com frequência, em nítido descompasso com os indicadores de produção e os lucros auferidos. Eles pressupõem o conhecimento acumulado nos entrelaçamentos dos fios dos enunciados constituídos na comunidade dialógica de pesquisa que se constituiu, a fim de dar suporte à promoção da saúde e segurança no trabalho (os pesquisadores, o sindicato e os outros).

Um outro aspecto referente à análise desse trecho é que ele nos remete ao conceito de gênero e de estilo. O primeiro existe articulado com o segundo. O estilo se coloca sobre o gênero atribuindo-lhe um acabamento. Assim, nosso dispositivo analítico se atém, por exemplo, na movimentação dialógica entre os enunciados do pesquisador1 e do pesquisador2, conforme transcrito a seguir. A reformulação referencial feita por P1 - de "um lugar de descanso" para "uns colchonetes ali dentro" evidencia a busca de outras possibilidades enunciativas e será uma marca de estilização do gênero de discurso presente na atividade de diálogo dos pesquisadores na direção de romper o discurso monologizante do engenheiro.

P2.: Por que não ter um lugar de descanso? P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro? Eng.: Dentro? Não tem lugar. Onde você vai colocar os colchonetes? 4.3 Analisando as atividades de diálogo: o desenvolvimento em 3 momentos Vamos acionar o dispositivo analítico que criamos para analisar três momentos nas sequências de atividade de diálogo em torno do tema do sono-vigília. Cada uma delas está transcrita de uma maneira diferente. Isso é proposital. A diferença no formato de transcrição desses materiais visa passar uma ideia da diferença de ritmo dos enunciados e o modo como articulamos as trocas.

4.3.1 Momento 1 Na sequência abaixo, os enunciados são mais curtos em relação às outras sequências, e a troca de turnos entre um enunciador e outro não passa praticamente por nenhuma pausa: P2.: E você acha por que isso? Eles acham que a pessoa vai trabalhar 48 horas sem dormir nada? Por que não ter um lugar de descanso? P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro? Eng.: Dentro? Não tem lugar. Onde você vai colocar os colchonetes? P1.: Dobra Eng.: Não, mas eu falando, depois pra dormir? P1.: Ah no chão da caminhonete não tem espaço? Eng.: Na caminhonete não. Aqui no caminhão tem lugar pra duas, três pessoas.

P2.: Mas, veja bem, se vai demorar de 3 a 4 dias, desculpe, vocês fazendo essa operação por que não arma uma barraca de acampamento do lado de fora? Tem lobo, tem cachorro do mato, tem cobra, tem? Eng.: Tinha gente que armava barraca, mas não é pro engenheiro, ? P2.: Por que não? Eng.: O engenheiro tem que no computador, olhando tudo, entendeu? P2.: Ah No diálogo que se estabelece, os pesquisadores procuram insistentemente "desnaturalizar" a ideia do trabalho contínuo sem previsão de descanso, pois têm como pressuposto os limites fisiológicos e psíquicos evocados pelos ritmos biológicos e pelo funcionamento psíquico, marcados pela indispensável necessidade de repouso. O que os pesquisadores buscam fazer com a linguagem é apreender o cenário de trabalho do engenheiro e entender como é esse local.

Para eles o pressuposto de não haver um local previsto para descanso, frente às características da atividade em pauta, é inadmissível e está presente na perplexidade que expressam. Insistem apresentando alternativas e possibilidades que são negadas pelo engenheiro. Porém, muito mais do que isso, os enunciados dos pesquisadores assumem um ritmo novo, alterando seu estatuto que deixa de ser de perguntas para serem enunciados geradores de um novo gênero.

P2.: Por que não ter um lugar de descanso? P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro? P1.: Ah no chão da caminhonete não tem espaço? P2.: por que não arma uma barraca de acampamento do lado de fora? Tem lobo, tem cachorro do mato, tem cobra, tem? A mudança no gênero de enunciado se opera e o que era uma troca em que a resposta dialogava com o sentido literal dos enunciados, passa a uma espécie de conclusão: "mas não é pro engenheiro, ?" "O engenheiro tem que no computador, olhando tudo, entendeu?" Suas inferências se mantêm primeiramente ao sentido literal do que é posto, construindo o simulacro de um discurso monológico, lugar onde uma subjetividade genérica vem, "o engenheiro" tornando- se um meio para sustentar a troca com os pesquisadores.

Eng.: Tinha gente que armava barraca, mas não é pro engenheiro, ? P2.: Por que não? Eng.: O engenheiro tem que no computador, olhando tudo, entendeu? P2.: Ah 4.3.2 Momento 2 No segundo momento, ocorre mais uma vez uma reformulação da parte do pesquisador1 do dito do pesquisador2, que tem efeito sobre o enunciado do engenheiro: P2.: Quer dizer, esse [trabalho] que era dois, três dias, vocês Eng.: dois, três dias é uma equipe .

P2.: Uma equipe, acampa? Eng.: Não, não tem. Não acampa, não tem lugar, você numa área de trabalho.

P1.: Você não dorme? Eng.: Você dorme, quando dorme, então, o engenheiro que, teoricamente, não dorme, dorme na cadeira da caminhonete ou no chão ou teoricamente você não dorme, você não pode dormir, você trabalhando. Mas o engenheiro, vamos supor, num trabalho de 3 dias, tira soneca. A ferramenta começa a subir em uma velocidade, você bota tudo de uma certa maneira que você fala que não tem perigo, você fala pro cara do guincho não dormir e você dorme um pouco, mas dorme 15 minutos, meia hora.

A reformulação será uma marca de estilização do gênero de discurso presente em alguns momentos da atividade de diálogo empreendida para desnaturalizar a situação com o engenheiro e provocar o contato com sua própria interpretação sobre o que ele faz. Será também uma marca do discurso do engenheiro manter-se na dimensão da tarefa, no plano do genérico e do impessoal, transitando entre os recursos simbólicos do "você" e "o engenheiro", porém deixando transparecer um confronto direto com a prescrição oficial. Explicitando que, não obstante as expectativas da chefia, a prescrição, ele se vale de subterfúgios para dormir, algo que transparece nas repetidas vezes em que ele faz alusão ao verbo dormir.

A atividade de diálogo em debate neste texto tem início como conversa espontânea (encontro casual dos interlocutores) e é posteriormente preparada e nomeada como entrevista pelos próprios participantes. O primeiro encontro teve como efeito também produzir um diálogo do engenheiro consigo mesmo. A desnaturalização da situação passa a ser uma prova para ele. O processo dialógico iniciado no primeiro encontro é passível de provocar um diálogo interior. Faz parte da metodologia a instalação de um dispositivo dialógico.

Ainda assim, não é mesmo evidente que o engenheiro pretenda perceber melhor a situação de trabalho em questão, tendo reunido subsídios para um diálogo orientado para a ação coletiva. Entretanto, o dispositivo simbólico colocado em andamento pelos pesquisadores levaram-nos a tomar algumas de suas categorias de análise, ou alguns dos seus conhecimentos que, por sua vez, levaram o engenheiro a sair do dito. No enquadre dialógico, Gilvan, com respeito ao tema do sono, gradativamente transita por uma mudança de gênero de discurso e a descrição que faz da sua experiência na empresa sofre uma pequena 'virada', deixando o plano do genérico para o plano da tensão entre o genérico e o pessoal (ponto de partida para o desenvolvimento do "eu").

P1.: Mas então, aconteceu, por exemplo, em alguma situação você, por exemplo, são duas questões, é... ter que lutar muito contra o sono, tava cansado... Por que você disse que uma vez você virou 4 noites, foram quase 5 dias, e nesse tempo todo você falou assim: "eu dormi quase 10 horas". Então eu imagino, no quarto dia você deve ter sentido coisas que você nunca sentiu na vida. Eu vou falar assim, numa virada dessas, depois que eu defendi a tese, eu encontrei um amigo e a gente, da sexta pro sábado, eu e L., a gente foi e ficou na Lapa, aquela coisa de virar a noite, cheguei aqui de manhã, dormir 3 horas assim, era aniversário do M., fui pra São João do Meriti. Rapaz, quando chegou, mais ou menos assim, essa hora, eu senti uma dor aqui nas costas, que eu nunca... rapaz, assim uma coisa que parecia que tavam me enfiando uma faca.

E eu "cara que dor é essa?", e eu vim dormindo, de carona, me deixaram aqui na praia, quando eu dormi, eu amanheci um dia depois, sumiu completamente a dor, aquela coisa que tava entrando aqui era cansaço. Então, você passou por isso? P2.: Eu tirei uma semana, uma vez, quando na época de faculdade, fazendo um trabalho em prancheta. Então, ainda tinha aquele negócio de ficar na prancheta, ? E foi uma semana. Mas eu dormia, 3 horas, 2 horas por noite. E terminei as pranchas, os trabalhos. Naquela época não tinha computador, era tudo em desenho no pincel. Ai eu lembro que no dia da apresentação do trabalho, a sensação que eu tinha é como se essa parte aqui das costas tivesse virado uma borracha, dura, como se fosse uma borracha de pneu, sabe? E que eu não sentia mais... também tinha a coisa da postura de muito tempo, assim. E eu lembro que, no final da semana, na hora que eu deitava na cama, era pior, porque me doía mais ainda, em vez de dar a sensação de relaxado, tava mais retesado. Quer dizer, isso fora outras coisas, mau humor e tal. Essas são as que eu lembro, ? Eng.: O que eu lembro que a gente tinha do trabalho, quer dizer, pra manter a gente acordado, é que, por exemplo, preparar todo esse trabalho, normalmente, demorava uma hora. Mas era uma hora de você terminar completamente suado e tenso, exercício físico. Então você descia a ferramenta pra umas 5 horas de trabalho, 5, 6 horas. ? Na primeira hora, você ainda suado, preparando a ferramenta e tudo. Depois vem duas horas pesadas, depois você tirando a ferramenta, finalizando os relatórios, finalizando tudo. E você volta pra fora, pra trabalhar... Então são períodos de 6 a 8 horas, que a cada 6 ou 8 horas você tem um trabalho bem pesado. Então esses, te acordam bastante.

Se você pega, justo... 3 horas da manhã e começa a fazer um trabalho pesado desses de 3 às 5, você vira a noite sem nem perceber. Depois de um tempo, daí você sente, começa a perder a fome, a gente sentia que depois do segundo dia, terceiro dia, a gente começava a comer menos, porque você não, começa a se sentir pior, sei , estranho... Depois de, vamos supor, nessa vez que eu fiquei 5 dias, depois do terceiro, quarto dia eu não sentia sono, não...

não sei, tava estranho. O corpo não sentia sono, eu não tava mais sentindo as coisas.

4.3.3 Momento 3: transmutação intergêneros Na sequência com o tema do sono, ainda com essa intenção de desnaturalizar as condições e a organização do trabalho vividas, ou narradas, como "naturais", intrínsecas à atividade do engenheiro, os pesquisadores evocam situações pessoais onde tiveram que lidar com o sono e tentar se manter acordados. Para isso, embalam seus enunciados em um gênero de novo tipo, parecendo dar um novo impulso à situação, fornecendo um terreno propício ao desenvolvimento do diálogo. Como se as estórias evocadas servissem de facilitadores, de "atalhos".

O pressuposto ainda é o de que as pessoas precisam dormir e que o sono é uma necessidade fisiológica e psíquica e que, enquanto tal, precisa ser respeitada em uma perspectiva de construção da saúde.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditamos que para a Psicologia do Trabalho, e para as abordagens clínicas do trabalho, os aportes das ciências da linguagem são de grande utilidade se tomados em conjunto com aqueles da Psicologia de Vigotski para provocar e observar o desenvolvimento de atividades dialógicas de um novo gênero. Esse novo gênero é o lugar de desenvolvimento do próprio instrumento engendrado entre profissionais de pesquisa e trabalhadores naquele momento particular, com vistas a confrontar o plano do realizado como condição para o desenvolvimento do "real".

O objetivo da discussão que propusemos neste artigo esteve particularmente ligado ao entendimento do nosso fazer enquanto pesquisadores. Buscamos entender como concebemos os instrumentos simbólicos na análise do trabalho. O conceito de gênero de discurso, nosso dispositivo analítico, permitiu-nos exercitar uma espécie de trabalho de fabricação de instrumentos simbólicos de transformação das situações em curso na atividade de diálogo. Esses instrumentos, justamente pela dinâmica de seu desenvolvimento, visam transmutar-se em enunciados de um novo gênero desenvolvidos na historicidade de outros gêneros como conversa espontânea e entrevista.

Partilhamos com o nosso GT da ANPEPP do entendimento do trabalho como experiência vital, constituinte da espécie humana ao longo de sua existência, inclusive no plano psíquico. Temos também a convicção de que um dos requisitos indispensáveis para compreender e transformar o trabalho é assumir como eixo central de análise o "ponto de vista do real da atividade". Isso sob a ótica daqueles que vivem o cotidiano do trabalho em diálogo preparado a partir de um dispositivo dialógico fabricado com essa finalidade. O papel do pesquisador, nesse caso, é dar suporte para que o trabalho seja analisado pelos seus protagonistas. Entretanto, nesse processo, nós pesquisadores também nos confrontamos com nosso ofício, com nossas formas de fazer, com nossos a prioris. Esse movimento traz singularidade para cada atividade dialógica que se no decorrer da pesquisa, sendo o método construído junto ao fazer.

No exercício de método realizado, nos alinhamos com a perspectiva desenvolvimental de Vigotski, para quem é indispensável a ação para se fazer a teoria. É preciso provocar o desenvolvimento da atividade dialógica, pois é em movimento que o circuito dialógico se realiza. O papel do pesquisador, nesse caso, em sua expertise, é dar suporte para que o trabalho seja coanalisado, ampliando o leque de possíveis. Sob o ponto de vista da ação, escolher um caminho e não um outro é fabricar dispositivos para se discutir critérios de qualidade.

No desenvolvimento dialógico, a proposta é promover, em síntese, a confrontação do trabalhador com seu trabalho em sua relação com o real. E o real entendido como mais do que a pura realização (Clot, 1998), mas como desenvolvimento possível ou impossível de outras realizações. A diferença de pontos de vista, orientada pelos pressupostos em jogo, a polifonia orquestrada na confrontação que produz novos enunciados a partir da necessidade de elaborar novas maneiras de dizer, colocam no horizonte dialógico uma nova forma de pensar o trabalho, constituindo seu tema para um outro destinatário (os pesquisadores).


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