Exercício analítico sobre o método: aspectos linguageiros na actividade
dialógica com trabalhadores de exploração e produção no sector petrolífero
1. INTRODUÇÃO
Nossa intenção com esse texto é contribuir com uma das preocupações do Grupo de
Trabalho (GT) Modos de vida e trabalho, da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Psicologia (ANPEPP), no que diz respeito a que tipo de análise
realizar dos materiais de linguagem produzidos e registrados nas diferentes
ações dos pesquisadores do referido GT. Nossa atenção volta-se, então, num
primeiro momento, para o problema da criação de dispositivos de coanálise do
trabalho e, num segundo momento, para o da análise dos materiais registrados
(áudio, vídeo). A reflexão que temos feito a partir dos materiais produzidos em
nossas pesquisas indica que a necessidade de enfrentar o problema com a
linguagem é anterior ao colocar em andamento métodos que envolvam atividades de
diálogo. A teorização com a linguagem começa na concepção e preparação dos
métodos. A clareza sobre o que está em jogo na concepção desses dispositivos
abre horizontes sobre como tratar os enunciados a posteriori. Além disso,
voltar-se para a análise dos materiais de linguagem produzidos e registrados
nas diferentes ações dos pesquisadores convoca humildade epistemológica
(Schwartz, 2000) para reconhecer que o dispositivo analítico é uma construção
de pesquisa [1].
A atividade dialógica focalizada nesse artigo é parte das atividades realizadas
em nossa pesquisa no âmbito do projeto "Trabalho, saúde e segurança na
indústria petrolífera offshore da Bacia de Campos", vinculado ao Núcleo de
Estudos em Inovação, Conhecimento e Trabalho (NEICT), da Universidade Federal
Fluminense. Em síntese, o objetivo geral do projeto consiste em analisar as
condições em que se desenvolve o trabalho na etapa de exploração e produção do
setor petrolífero na Bacia de Campos (região Norte do estado do Rio de Janeiro)
- bem como discutir sua relação com a saúde e a segurança no trabalho. A partir
de uma demanda sindical, ancorada no setor de saúde do Sindicato dos
Petroleiros do Norte Fluminense (SINDIPETRO-NF) que pretendia conhecer e
analisar melhor os problemas de saúde e segurança relacionados ao trabalho
offshore, o projeto tem se desenvolvido, desde 2002 (Figueiredo, 2012).
Ao longo desses anos operamos com uma "caixa de ferramentas" teórico-
metodológica constituída de materiais oriundos da Ergonomia da Atividade
(Wisner, 1994; Guérin, Laville, Daniellou & Duraffourg, 2001; Daniellou,
2004; Falzon, 2007); da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 1993, 2008, 2009),
mobilizados a partir de uma perspectiva ergológica (Schwartz, 2000; Schwartz
& Durrive, 2010). É importante sublinhar que para o desenvolvimento deste
artigo a Clínica da Atividade também mostrou-se uma ferramenta valiosa.
Ferramenta potente, porque a atividade dialógica promovida por essa abordagem
visa oferecer recursos para viabilizar a discussão e análise dos componentes
subentendidos da atividade. Ou seja, para além do que foi realizado, de modo a
desnaturalizar aquilo que tende a parecer como o único caminho possível. Essa
perspectiva de exploração coletiva de outras possibilidades de realização
serviu de fio condutor para compreender o que os pesquisadores profissionais
fazem na atividade de diálogo em discussão neste artigo, ou seja, que
dispositivos fabricam com a finalidade de discutir o trabalho daqueles que
atuam nesta etapa (exploração e produção) do setor petrolífero em foco. Como
exigência para essa reflexão, convocamos também os aportes provenientes do
campo dos estudos da linguagem, mais especificamente, os que têm sido
produzidos no âmbito da Linguística Aplicada contemporânea.
Trazemos aqui então, determinadas sequências da atividade de diálogo de nossa
pesquisa pelo quanto nos interpelaram, tanto pelo nosso modo de intervenção no
diálogo, como também pelo modo de participação do engenheiro protagonista do
trabalho em foco. De tal maneira que, ao escutarmos a gravação desse diálogo,
ficamos, de início, com certa inquietação sobre o modo como o conduzimos. Isso
se deu por percebermos um uso particular da linguagem, o qual colocava em
evidência pressupostos que tínhamos a respeito da atividade de trabalho em jogo
e os saberes acumulados sobre os aspectos sociotécnicos envolvidos no trabalho
do engenheiro. Antes da primeira interlocução com ele, o acesso aos discursos
sobre o trabalho na empresa em que o engenheiro atuava nos permitiu inferir que
o trabalho em questão envolve atividades perigosas, de alto risco. Ela faz com
que os indivíduos tenham que lidar com seus limites fisiológicos e psíquicos
exigindo muito dos trabalhadores que estão expostos a uma miríade de fatores de
riscos e a péssimas condições de trabalho (instalações sanitárias e alimentação
precárias, ausência de locais para descanso, exposição às intempéries
meteorológicas, isolamento). Esses pressupostos sobre os riscos a que estavam
expostos e a extrapolação dos limites fisiológicos e psíquicos deixaram traços
na atividade dialógica realizada. Por exemplo, na perplexidade demonstrada
pelos pesquisadores por esse fato ocorrer na empresa em que atuava o
engenheiro, por se tratar de uma multinacional renomada do setor petrolífero
que atua no mundo inteiro e destaca-se como liderança de mercado em seu ramo de
atuação. Ao saberem da ausência de um local de descanso para o engenheiro
durante os períodos em que realizava algum tipo de serviço, os pesquisadores
insistem em voltar ao tema do sono. Isso, apesar de saberem, de antemão, que o
treinamento dispensado aos funcionários com um conteúdo relacionado a "técnicas
de administração do sono" (Petroleum Technology Alliance Canada, 2010) sugere
da parte da empresa uma política de gestão calcada na individualização do
risco. Mesmo assim, ou por isso mesmo, a abordagem ao tema encontra resistência
por parte do engenheiro que responde às provocações dos pesquisadores
limitando-se a explorar o enunciado pelo sentido literal. Devido a essas
inquietações, as sequências de atividade de diálogo em que o tema da privação
de sono é transformado em espaço dialógico de disputas são o recorte escolhido.
A fim de investigar esses materiais e fornecer subsídios à reflexão sobre
elaboração de métodos para tornar o trabalho objeto de análise, buscamos
construir um dispositivo que nos permitisse investigar, nas sequências dessa
atividade de diálogo, os seguintes fatores: (1) o papel dos enunciados dos
pesquisadores para a motricidade do diálogo em realização, na disputa sobre os
objetos do "real", revelando-se como atos de fala direcionados no sentido de
promover a tensão e provocar ruptura na tendência monologizante (Bakhtin, 1998)
do discurso do engenheiro do setor petrolífero; (2) a relação dos pressupostos
com a historicidade da investigação conduzida pelos pesquisadores e (3)
rupturas e continuidades entre os enunciados, de modo a destacar contornos de
gêneros do discurso em transmutação (Bakhtin,1997), da tensão ao
desenvolvimento de gêneros de novo tipo. A historicidade referida no segundo
item foi evocada como elemento que, articulado com a metodologia
desenvolvimental, alça esses enunciados à condição de produtores de gêneros do
discurso [2] de um novo tipo. Gêneros esses, capazes de gerar um primeiro nível
de controvérsia, um novo começo para pensar outros possíveis para o trabalho do
setor petrolífero - aqui, com foco na perfuração de poços -, a partir de uma
tensão que sinaliza para a possibilidade de rompimento com a perspectiva
defensiva do discurso impessoal sobre o trabalho (expressos nos enunciados
genéricos do "você", "o engenheiro") e se desenvolve para uma perspectiva
pessoal potencialmente analítica (ponto de partida para o desenvolvimento de um
outro "eu", de um outro olhar discursivo).
Ao lançarmos mão de um posicionamento reflexivo sobre o nosso modo de
compreender e participar da atividade de diálogo em uma pesquisa em que os
instrumentos são considerados, como diz Vigotski (1985), uma atividade em seu
próprio desenvolvimento, visamos mostrar o lugar dos enunciados no processo de
desenvolvimento de um novo gênero de discurso. Gênero surgido na historicidade
de outros, como a conversa e a entrevista, sob a perspectiva daquilo que os
pesquisadores fazem com a linguagem.
2. CAIXA DE FERRAMENTAS: REFERENCIAIS TEÓRICOS PARA ANALISAR O TRABALHO NA
ETAPA DE EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO NO SETOR PETROLÍFERO
Para a reflexão que envolve atividade dialógica e análise do trabalho a que nos
propomos neste artigo, as lentes teóricas advêm principalmente dos aportes da
Psicologia desenvolvimental (Vigotski, 1985) com ferramentas conceituais que
vêm sendo desenvolvidas por pesquisadores da abordagem denominada Clínica da
Atividade (Clot, Prot & Werthe, 2001; Fernandez & Malherbe, 2007;
Litim, 2006; Henry & Bosson, 2008; Jouanneaux, 2011), entre outros. As
pesquisas nessa clínica do trabalho têm como denominador comum o
desenvolvimento de uma atividade de diálogo entre profissionais sobre as
maneiras como trabalham. O pressuposto é de que essas maneiras podem se tornar
objeto de discussão porque existe "o real da atividade", entendido como o
desenvolvimento possível ou impossível de outras realizações (Clot, 1998).
Outra contribuição fundamental para compreender nossa abordagem é a da
Linguística Aplicada contemporânea - campo que situa a ação de linguistas no
interior de projetos coletivos interdisciplinares de pesquisa-intervenção nos
mundos do trabalho (França, 2007). Ela fornece-nos o pano de fundo ético,
político e epistemológico, justamente por reconhecer que "teorizações sobre a
linguagem possam ser construídas nos entrecruzamentos disciplinares" (Moita
Lopes, 2011, p.20). Distanciando-se de suas origens, ou seja, da vertente
"aplicacionista" em que a formulação conceitual e os métodos de abordar a
linguagem são usados principalmente para solucionar problemas ligados a ensino/
aprendizagem de línguas, a Linguística Aplicada com a qual nos alinhamos não é
dependente de uma teoria linguística, não se restringe ao campo da Educação e é
tributária das teorias socioculturais de Vigotski e Bakhtin (Moita Lopes,
idem). Entretanto, ao afirmarmos que a Linguística Aplicada nesse campo do
conhecimento não é dependente de uma teoria linguística, não preconizamos
ausência de teorização. Significa sim que essa teorização pode tomar de
empréstimo de outras áreas categorias e conceitos, ou de uma mesma área
categorias advindas de domínios diferentes, articulando-as, porém, com rigor
científico.
Para a reflexão sobre o estudo do trabalho com a linguagem enfrentamos o
desafio de construir um dispositivo analítico (Rodrigues, 2014) que nos
permitisse abordar aspectos da linguagem, compreendendo-a como instrumento
simbólico, suporte de desenvolvimento de relações entre pessoas e objetos. A
categoria semântico-pragmática da pressuposição nos permitiu uma entrada na
materialidade linguística, ao mesmo tempo situando o diálogo na historicidade
da pesquisa, na e pela comunidade dialógica estabelecida (França, 2007). Dado
que o exercício de método é em si um ato de "falar e escutar", ele está, por
isso mesmo, implicado em uma atividade dirigida (Bakhtin,1997; Faïta, 2005).
Atividade esta, preparada com a finalidade de instalar uma atividade particular
em que o colocar o trabalho em discussão possa funcionar como fonte indireta de
saúde para as pessoas participantes do método. Um dispositivo de linguagem de
modo a levar as pessoas a circularem por gêneros do discurso de um novo tipo
(Bakhtin, 1997; Faïta, 2005; Nourroudine, 2002), ligados muito mais à intenção
de se fazer algo por meio das palavras (Austin, 1990) do que à ideia de
proferir certo conteúdo passível de ser analisado a posteriori.
2.1 Aspectos teóricos que permitiram a construção do dispositivo de análise 1:
os pressupostos
A pressuposição é uma inferência, a partir de um enunciado, de uma informação
não explicitada. A análise de inferências semânticas (Ducrot, 1972), com base
no aparato técnico da significação, não está dissociada de inferências
pragmáticas (Levinson, 2007), ligadas aos sentidos que vão sendo construídos na
enunciação. Não reproduziremos a história desse campo ou perspectiva de estudo.
Diremos apenas que a pragmática é reivindicada por estudos de naturezas
diversas, sendo ora tomados como indissociáveis da semântica, ora como
pertencendo a uma área distinta da semântica. Entre as diversas formas de
pensar e praticar a pragmática, tendemos a adotar aquela a que Rajagopalan
(2010) intitula "Nova pragmática", discriminando-a da leitura que faz Searle
(Searle, Kiefer & Bierwisch, 1989) dos atos de fala, por entendê-la como
distante de uma teoria do direito, da ética e da política.
Na abordagem que fazemos aqui da atividade dialógica, adotamos essa perspectiva
(não propriamente uma disciplina), pois percebemos o enunciado como uma
atividade dirigida ao outro (outros) e também pelo lugar que reserva ao estudo
dos implícitos, sempre presentes no discurso, particularmente sob a forma de
pressupostos e de subentendidos.
2.2 Aspectos teóricos que permitiram a construção do dispositivo de análise 2:
gêneros do discurso e o enquadre dialógico
A linguagem não é meio neutro que se torna fácil e livremente propriedade de um
locutor que queira expressar sua experiência em um contexto específico. Ela é
impregnada de intenções estrangeiras que precisam ser dominadas e submetidas a
intenções próprias, por meio de acentos também próprios, o que se configura um
processo árduo e complexo (Bakhtin, 1988). Em seu projeto de dizer, o sujeito
nunca está, portanto, sozinho diante da língua, abandonado à sua fala isolada.
No campo de quase todo enunciado ocorre a interação tensa e um conflito entre
sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento
dialógico mútuo. Dessa forma, o enunciado é um organismo muito mais complexo e
dinâmico do que parece, se não se considerar apenas sua orientação para o
objeto e sua expressividade unívoca direta (Bakhtin, idem).
A atividade de diálogo é dirigida ao objeto, ao outro e a si mesmo. É
individual, mas sua existência é sempre parte de uma interação verbal, o que
torna adequado compreendê-la e abordá-la em sua natureza dialógica. Na
construção de nosso dispositivo de análise, a teoria dos gêneros do discurso de
Bakhtin (1997) revela-se bastante produtiva nos ajustes que precisamos fazer em
nossas lentes. Parece-nos então, no recorte estudado nesse artigo, haver a
migração funcional do gênero de discurso pergunta, que deixa de ser pergunta
para ser um enunciado gerador de um nicho de um novo gênero, no qual o
trabalhador encontra lugar para o dito. Pelo fato de possuir uma plasticidade
constitutiva, esse enunciado pode ser o fio condutor de movimentos. Novos
gêneros, desenvolvidos de gêneros anteriores. Vejamos a seguir como esses
aspectos teóricos orientaram nossa atividade dialógica e nossa análise.
3. CAIXA DE FERRAMENTAS: DISPOSITIVOS METODOLÓGICOS COLOCADOS EM AÇÃO
Durante a vigência do projeto de pesquisa não tivemos possibilidade de observar
a contento a atividade de trabalho nas unidades de serviço das plataformas e
dos campos de exploração e produção de petróleo devido aos múltiplos empecilhos
que dificultavam o embarque nas unidades marítimas - desde a liberação para o
trajeto via helicópteros, passando pela carência de vagas nos camarotes de
pernoite dos trabalhadores. No entanto, pudemos apreender o funcionamento geral
dos processos de exploração e produção petrolífera, assim como ter contato com
situações problemáticas mobilizando uma "comunidade ampliada de pesquisa" (CAP)
[3], tendo como inspiração, em especial, os valiosos contributos em
intervenções anteriores (Brito & Athayde 2003; Brito, Athayde & Neves,
2003; Athayde, 2011; Athayde, Zambroni-de-Souza & Brito, 2014). Essa CAP
envolveu, no período de maior implicação, os "pesquisadores diretos"
(coordenadores do projeto), o "grupo sindical" (demandante) e um "grupo de
trabalhadores diretamente interessados" (contatados via direção sindical), além
de um "pesquisador indireto" (acompanhando a pesquisa sem participação direta e
sistemática no campo e com outra formação acadêmica). [4]
Vemo-nos alinhados a essa perspectiva, posto que nossa finalidade era operar
com dispositivos de interação que dinamizassem a relação entre diferentes
saberes (o conhecimento científico e a experiência da prática). Ou, dito de
outro modo, que fizessem dialogar (sinergicamente) os saberes disciplinares (1º
polo) com os saberes investidos na atividade (2º polo), considerando ainda a
criação da possibilidade de articulação entre o encontro e o confronto desses
dois polos e que pode ser denominada como uma preocupação ética e epistêmica
(3o polo), conforme a démarche ergológica e o dispositivo dinâmico de três
polos (Schwartz & Durrive, 2010).
Durante a pesquisa, para a mobilização de uma "comunidade ampliada de
pesquisa", lançamos mão dos chamados "encontros sobre o trabalho" com os
protagonistas do trabalho em análise e alguns técnicos, assessores do
sindicato. Nesses "encontros", as atividades de diálogo foram bastante
variadas, algumas seguindo, de maneira livre e singular, um roteiro pré-
estabelecido com vistas a mapear os aspectos sociotécnicos, assim como a
atividade de trabalho. Outras foram mais formalizadas, mas todas realizadas com
a finalidade de provocar os possíveis que estão em jogo no trabalho do setor
petrolífero, a fim de promover saúde e segurança no trabalho.
Como já dito anteriormente, interessa-nos nesse texto o entendimento do uso que
os pesquisadores fizeram da linguagem na atividade de diálogo em termos das
tentativas de explorar o "real", isto é, o campo de intercruzamento de outras
possibilidades discursivas para as situações de trabalho estudadas, além
daquelas já enunciadas. Para conceber esse movimento, nos alinhamos com
Vigotski (1985) que compreende o método como algo a ser praticado e não
aplicado, contrariando o caráter instrumental ou pragmático presente em
metodologias recorrentes que mantêm conteúdo experimental e resultados
apartados do método.
Para Vigotski (1985), o método não é um meio para se chegar a um fim
previamente definido (teleologia). Diferentemente disso, instrumento e
resultado são, dialeticamente, pré-requisito e produto. Estes são inseparáveis.
Mais do que um caráter funcional, os instrumentos são também considerados como
a atividade do seu próprio desenvolvimento. Por esta razão instrumento é também
resultado. Estabelece-se uma unidade instrumento-e-resultado. A qualidade dos
processos de desenvolvimento desses instrumentos são ao mesmo tempo os
resultados em formulação. O que estamos analisando são ao mesmo tempo os
resultados obtidos e o instrumento adotado pelos pesquisadores na atividade de
diálogo orientada para criar controvérsias sobre o trabalho na situação em
relevo, em especial a atuação de um engenheiro de campo.
Em consonância com essa dupla perspectiva de análise, está a forma como
encaminhamos a entrevista, ou dito de outra maneira, como chegamos a ela.
Rocha, Daher e Sant'Anna (2004) fazem um levantamento a respeito do modo como a
técnica de entrevista é abordada em livros sobre metodologia de pesquisa no
Brasil. Destacam certo número de obras em que a definição de entrevista
pressupõe justamente uma concepção de linguagem como espelho da realidade.
Observam que, não raro, nesses trabalhos, o gênero de discurso entrevista é
definido como ferramenta que permite a imediata captação da informação
desejada. Os exemplos retirados das obras analisadas por esses autores estão
entre os inúmeros nos quais o entrevistado é tomado como "informante" que sabe
aquilo que o entrevistador precisa saber. Essa concepção é acompanhada da
crença de que o que é dito por esse informante equivale a uma informação com
valor de verdade.
As sequências de atividade de diálogo que realizamos foram nomeadas de
"entrevista", sendo assim, iniciaram-se do modo como é esperado no referido
gênero do discurso. Compreendemos, no entanto, com Rocha, Daher e Sant'Anna
(2004), ser necessário explorar as consequências da natureza polifônica da
linguagem, no que tange a esse gênero. Nas atividades de diálogo com
trabalhadores realizadas na pesquisa, ainda que nem sempre de modo
sistematizado, buscou-se agir a fim de mudar o estatuto do sujeito ("o
entrevistado"): buscou-se construir pontes para que ele se investisse no
diálogo como sujeito da análise. O objetivo de que o trabalhador tome para si a
tarefa de interpretar o trabalho é que permite que uma entrevista possa se
transformar em um gênero de atividade de um novo tipo.
Assim, entrevistas não são meras ferramentas de apropriação de saberes
previamente existentes. Trata-se de concebê-las como um método, diferente de
outros, no qual a atividade de diálogo se insere na perspectiva de uma
metodologia desenvolvimental.
Em nossa pesquisa, também não se trata de uma concepção de diálogo como
comunicação. De acordo com o que está em jogo na atividade de diálogo
realizada, os conhecimentos pressupostos e subentendidos servem para que os
pesquisadores sustentem a controvérsia, colocando o trabalho na clínica.
Não se tratava também de uma entrevista clínica, mas certamente, no esforço de
instaurar um novo enquadre dialógico, a atividade de diálogo empreendida não se
restringiu a retirar conteúdos a respeito da experiência do trabalhador. Nosso
objetivo foi criar o estranhamento, provocar a controvérsia, de modo que o
sujeito encontrasse meios de desenvolver o diálogo com os pesquisadores.
Provocar atividade no diálogo. Posteriormente, investigar como se pode gerar o
movimento e apresentar considerações em textos de divulgação como este,
garantindo a vida da palavra, e abrindo o horizonte para que confrontos e
reformulações possam vir como pista sobre o trabalho daqueles que atuam na
exploração e produção do setor petrolífero e também sobre o trabalho do
pesquisador.
Para esse artigo optou-se por selecionar um trecho da atividade dialógica entre
pesquisadores e o referido engenheiro vinculado ao tema sono-vigília. A escolha
deveu-se à riqueza apresentada no diálogo e ao entendimento que ele
representava bem os aspectos relacionados ao que chamamos de pressupostos e
também à mudança de gênero que queríamos explicitar. E também porque o tema da
relação sono-vigília aparece de maneira inusitada na gestão do trabalho da
empresa em foco.
Inicialmente, vejamos como se deu a aproximação pesquisadores/engenheiro para
depois apresentarmos o enquadramento e a perspectiva dos pesquisadores no que
tange às questões de saúde e segurança e, a seguir, as características das
tarefas realizadas pelo engenheiro.
3.1 De como se deu a aproximação: da conversa espontânea ao gênero entrevista
acadêmica
Os pesquisadores faziam viagens periódicas à Macaé [5] (para os encontros sobre
o trabalho, para reuniões no sindicato, para eventos da categoria etc.) e, em
uma dessas viagens, o coordenador do projeto (pesquisador1) encontra o
engenheiro, seu ex-aluno do curso de engenharia, na rodoviária da cidade.
Entabulam uma conversa sobre o trabalho do engenheiro e a empresa onde atuou,
sentam-se juntos no ônibus durante o trajeto de volta à cidade do Rio de
Janeiro conversando por cerca de 3 horas e meia. Quando chegaram ao destino, o
pesquisador explicou o teor da pesquisa em andamento e perguntou se o
engenheiro estaria disposto a "gravar uma entrevista". Ele aceitou e forneceu
seus contatos. A entrevista foi agendada e ocorreu na casa do ex-professor.
Note-se que em todo esse movimento há, por um lado, um sentido de oportunidade,
pois os pesquisadores já haviam tomado conhecimento, anteriormente, das
condições de trabalho e das características atípicas da organização do trabalho
naquela empresa, para além de outros aspectos que se inseriam no escopo de
nossos interesses de pesquisa. Por outro lado, há a construção de um
compromisso, na medida em que o engenheiro aceita fazer uma entrevista gravada
(com registro em áudio). Do ponto de vista metodológico, isso significa também
uma espécie de predisposição permanente para a pesquisa por parte do
pesquisador que faz com que aproveite as oportunidades onde e quando quer que
elas se apresentem.
3.2 Os protagonistas das atividades de diálogo em foco
Dois pesquisadores responsáveis pela coordenação do projeto de pesquisa
(Figueiredo, 2001; Alvarez, 2004, 2012) e um engenheiro do setor petrolífero
realizaram a atividade de diálogo aqui analisada. Posteriormente, o projeto
passou a contar com uma linguista (aplicada) que vem se dedicando aos estudos
das atividades dialógicas nos e dos mundos do trabalho (França, 2007), com
aportes da Clínica da Atividade.
Os pesquisadores dedicam-se ao estudo teórico-prático de situações de trabalho
tendo a Ergonomia da Atividade como eixo aglutinador de clínicas do trabalho,
especialmente a Psicodinâmica do Trabalho, em uma perspectiva ergológica. Mais
recentemente, acrescentaram a essa caixa de ferramentas os materiais
conceituais e metodológicos da Clínica da Atividade. Essa configuração
possibilitou um olhar singular para tratar as questões relacionadas à
organização do trabalho e suas possíveis consequências para a saúde do
trabalhador. De tal forma que a visão hegemônica propiciada pela área da Saúde
Ocupacional nas empresas, que privilegia a noção de riscos ocupacionais é
confrontada por outra concepção de saúde que a vê como a capacidade de criar
novas normas e de renormatizar e recentrar o próprio meio (Canguilhem, 1995).
Muda-se a concepção de trabalhador assujeitado para a de sujeito que pode, em
alguma medida, criar estratégias (individuais, mas principalmente coletivas) e
se reinventar frente às adversidades do meio. Isso é possível lançando-se mão
de ferramentas teóricas que abarcam as noções de trabalho coletivo, sofrimento
no trabalho, estratégias e ideologias de defesa coletivas, renormatizações,
dentre outras. Busca-se um olhar duplamente focado - no contexto e na atividade
-, para tentar entender o que se passa nos mundos do trabalho, para tentar dar
conta de uma parte do enigma que o constitui.
O profissional engenheiro, Gilvan (nome fictício), à época com 28 anos, é ex-
funcionário da empresa multinacional de exploração de petróleo (denominada aqui
empresa A). O tipo de trabalho que realizou (atividade ligada à perfuração de
poços) pode ser descrito como de alto risco e com o emprego de instrumental
assaz específico, de elevado custo financeiro e desenvolve-se tanto em campos
onshore quanto em campos offshore.
As operações de perfuração são comumente classificadas como "rotineiras" e
"específicas". As de rotina são aquelas tidas como normais na atividade de
perfuração e as específicas abrangem as operações diferenciadas, tais como
perfilagem, revestimento, cimentação, testemunhagem e completação (Cardoso,
2005). Normalmente, num poço exploratório, a empresa contratante pede um número
maior de registros (informações oriundas das descidas das ferramentas-sensores
para dentro do poço) do que no poço de desenvolvimento. E esta é uma das
principais atribuições do referido engenheiro.
Os serviços executados pela empresa são cruciais para o andamento dos trabalhos
no poço, pois as demais equipes envolvidas, com todos os seus equipamentos
mobilizados, dependem da conclusão das operações da empresa A para que possam
dar continuidade ao processo. Dito de outra forma, os atrasos que venham a
ocorrer significam que todo o aporte de pessoas e maquinário mobilizado pelas
outras empresas em torno do poço ficará paralisado. Daí a enorme pressão
temporal a que ficam submetidos os profissionais contratados pela empresa A,
fazendo com que não interrompam seu trabalho durante a prestação do serviço.
Isso significa que podem chegar a um campo petrolífero (com atuação prolongada
em alguns poços) e ficar de 2 a 5 dias trabalhando (ou até mais, em
circunstâncias excepcionais), sem interrupção. Ou seja, as tarefas têm de ser
realizadas de maneira ininterrupta, durante as 24 horas, e ao longo dos dias de
permanência no local. Cabe frisar aqui que não somente os poços offshore
situam-se em áreas longínquas (alto mar). Na grande maioria das vezes a
localização dos poços onshore também encontra-se em áreas distantes dos grandes
centros e isoladas, praticamente desérticas, sem comércio ou infraestrutura de
serviços por perto. Nesses locais não há dormitórios (ou qualquer local para
dormir), nem banheiros, nem restaurantes, nem cantinas ou refeitórios. Muitas
vezes os trabalhadores comem quentinhas que são trazidas de locais distantes
por algum dos trabalhadores que se desloca em um veículo da empresa para
comprá-las e já chegam frias. Na verdade, estão expostos a condições bastante
duras de trabalho, em que se aliam elevada periculosidade e insalubridade, em
função da presença de diversos agentes de risco. Ao término do trabalho
contratado, o engenheiro e o operador chefe devem conduzir os veículos que dão
suporte às operações para a base da empresa, ou para outro campo (local de
outro projeto), mesmo que tenham passado alguns dias sem dormir ou tirando
breves cochilos. Para dar conta desse quadro insone, durante a fase de
treinamento desse tipo de profissional, a empresa ministra um módulo que versa
sobre "administração do sono" (Petroleum Technology Alliance Canada, 2010),
para que os trabalhadores sejam munidos de elementos para lidar com a
impossibilidade de dormir à noite, numa clara tentativa de torná-los mais
adaptáveis à adversidade E isto, mesmo que tal iniciativa se mostre
questionável, como atestam o desgaste acentuado e os acidentes sofridos por
alguns trabalhadores.
Em geral, operações como as que participava Gilvan requerem a presença de um
engenheiro, um operador-chefe e dois operadores. A empresa mantém uma base de
operações em uma determinada cidade e eles deslocam-se para o local onde está o
poço utilizando um caminhão e uma caminhonete. É comum o engenheiro ajudar o
restante da equipe na montagem das ferramentas embora essa tarefa não seja sua
atribuição formal. Dentro da cabine do caminhão, há o controle de um carretel,
a cargo do operador chefe, e a cargo do engenheiro ficam dois ou três
computadores, por intermédio dos quais é possível monitorar a operação das
ferramentas (dotadas de sensores). O engenheiro envia comandos e recebe
informações dos sensores destas ferramentas, que se deslocam pelo interior do
poço e são capazes de captar informações pela sua parede. Também é atribuição
do engenheiro calibrar a ferramenta, já que cada poço possui uma dada condição
de trabalho, e portanto deve-se ajustá-la às condições correspondentes em que
ocorrerá a intervenção. Com frequência, realizam-se "viagens" conectando-se
várias ferramentas, mas, em função das necessidades, há situações em que se faz
5, 6, 7 "viagens" no poço com ferramentas diferentes. Diversas dessas manobras
são realizadas utilizando-se dispositivos de controle do tipo joystick.
4. REFLEXÃO SOBRE OS MATERIAIS DIALÓGICOS
Ainda que percebamos que a subdivisão da interação em um conjunto particular de
sequências seja uma escolha analítica que retira o diálogo de sua abrangência
situacional, assumimos essa escolha como o gesto de colocar mais um elo na
cadeia dialógica que se estabelece entre pesquisadores e os mundos do trabalho
com os quais conversamos.
4.1 De um gênero entrevista convencional à visada de uma interação de um novo
gênero
Nossa análise inicia-se pela atividade de diálogo que começa com a interação
entre os pesquisadores e o engenheiro. Este é o ponto em que se dá o início da
gravação do encontro sobre o trabalho nomeado de entrevista pelos
interlocutores. No fragmento transcrito, o pesquisador1 (P1), o ex-professor,
pede ao engenheiro para "recapitular" sua trajetória na empresa A, ao que
Gilvan responde em um gênero de retomada da narrativa já anteriormente
iniciada. Ou seja, aceita o que é requisitado e o diálogo se inicia num tom
conversacionalmente coerente, criando a ilusão de que esse tipo de interação é
capaz de poder expressar a realidade dos fatos e não versões discursivas
destes.
P1.: (…) na indústria do petróleo e assim, pedir pra você recapitular,
rapidamente, como é que foi esse teu percurso e o que é que te levou até a
empresa A, né?
Eng: Olha, eu tava falando com ela (P2) que eu tinha estagiado em algumas
empresas, e aí pouco antes de me formar eu entrei na GE, na área de aviação, na
GE Varig, lá no Galeão. Aí fiquei nove meses lá, trabalhando na área de
métricas, depois na análise de resultados, na área de metodológicos. Aí dali,
eu fui pra empresa A, fiquei 3 anos lá, e depois fui pra T….., onde eu tô
agora. A empresa A eu conheci porque o meu irmão trabalhou lá uns 3 anos, antes
de eu entrar. Ele tinha trabalhado 3 anos, saiu, e um ano depois eu fui pra lá
e assumi. Pela informação que eu tinha com relação à empresa A, tinha muita
coisa interessante e fez com que eu pensasse em ir pra lá, né?
4.2 Entendendo os pressupostos dos pesquisadores presentes nos enunciados
Ao retomar a escuta da gravação da atividade de diálogo para analisá-la sob
essa perspectiva instrumental, verificamos que as falas dos pesquisadores
traziam situações que demonstravam um posicionamento prévio sobre o trabalho do
engenheiro. A análise desses pressupostos como categoria linguística semântico-
pragmática nos pareceu uma entrada possível no processo de construção do
dispositivo analítico, conforme buscaremos demonstrar com a breve troca
transcrita abaixo. O trecho selecionado traz a perplexidade dos pesquisadores
sobre as condições de trabalho do engenheiro.
1.P2.: E você acha por que isso? Eles acham que a pessoa vai trabalhar 48 horas
sem dormir nada? Por que não ter um lugar de descanso?
2.P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro?
3.Eng.: Dentro? Não tem lugar. Onde você vai colocar os colchonetes?
Assim, o pressuposto no enunciado de P2 é de que "não é possível para um ser
humano trabalhar 48 horas sem dormir mesmo que não haja um local destinado para
isso". Um local que deveria ter sido previsto pela empresa A e sua respectiva
empresa contratante, que são inúmeras, dependendo da região, do país. Trata-se
de uma operação pela qual o interlocutor pode captar o sentido de uma
enunciação de modo não literal. Como efeito da construção inicial do
dispositivo, porém, do lado do engenheiro, suas inferências se mantêm
primeiramente ao sentido literal do que é posto, construindo o simulacro de um
discurso monológico e monologizante. Esse tipo de análise, além de permitir a
entrada na materialidade linguística, coloca essa materialidade na
historicidade da construção da pesquisa, na comunidade dialógica formada com o
"grupo sindical" (demandante) e um "grupo de trabalhadores diretamente
interessados" (contatados via direção sindical), além de um "pesquisador
indireto" (acompanhando a pesquisa sem participação direta e sistemática no
campo e de outra formação acadêmica), na medida em que os pressupostos foram
sendo formados a partir dos diferentes pontos de vista trazidos por esses
protagonistas da pesquisa.
Por isso mesmo, nas sequências em análise, as falas dos pesquisadores não
expressam somente o interesse em conhecer a experiência e trajetória do
engenheiro, elas indicam um uso de linguagem que revela um agir, ou uma
tentativa de agir sobre o outro. Os enunciados dos pesquisadores dirigem-se ao
trabalho do engenheiro do setor petrolífero, às políticas de saúde e segurança
adotadas pelas empresas - com frequência, em nítido descompasso com os
indicadores de produção e os lucros auferidos. Eles pressupõem o conhecimento
acumulado nos entrelaçamentos dos fios dos enunciados constituídos na
comunidade dialógica de pesquisa que se constituiu, a fim de dar suporte à
promoção da saúde e segurança no trabalho (os pesquisadores, o sindicato e os
outros).
Um outro aspecto referente à análise desse trecho é que ele nos remete ao
conceito de gênero e de estilo. O primeiro existe articulado com o segundo. O
estilo se coloca sobre o gênero atribuindo-lhe um acabamento. Assim, nosso
dispositivo analítico se atém, por exemplo, na movimentação dialógica entre os
enunciados do pesquisador1 e do pesquisador2, conforme transcrito a seguir. A
reformulação referencial feita por P1 - de "um lugar de descanso" para "uns
colchonetes ali dentro" evidencia a busca de outras possibilidades enunciativas
e será uma marca de estilização do gênero de discurso presente na atividade de
diálogo dos pesquisadores na direção de romper o discurso monologizante do
engenheiro.
P2.: Por que não ter um lugar de descanso?
P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro?
Eng.: Dentro? Não tem lugar. Onde você vai colocar os colchonetes?
4.3 Analisando as atividades de diálogo: o desenvolvimento em 3 momentos
Vamos acionar o dispositivo analítico que criamos para analisar três momentos
nas sequências de atividade de diálogo em torno do tema do sono-vigília. Cada
uma delas está transcrita de uma maneira diferente. Isso é proposital. A
diferença no formato de transcrição desses materiais visa passar uma ideia da
diferença de ritmo dos enunciados e o modo como articulamos as trocas.
4.3.1 Momento 1
Na sequência abaixo, os enunciados são mais curtos em relação às outras
sequências, e a troca de turnos entre um enunciador e outro não passa
praticamente por nenhuma pausa:
P2.: E você acha por que isso? Eles acham que a pessoa vai trabalhar 48 horas
sem dormir nada? Por que não ter um lugar de descanso?
P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro?
Eng.: Dentro? Não tem lugar. Onde você vai colocar os colchonetes?
P1.: Dobra…
Eng.: Não, mas eu tô falando, depois pra dormir?…
P1.: Ah… no chão da caminhonete não tem espaço?
Eng.: Na caminhonete não. Aqui no caminhão tem lugar pra duas, três pessoas.
P2.: Mas, veja bem, se vai demorar de 3 a 4 dias, desculpe, vocês fazendo essa
operação… por que não arma uma barraca de acampamento do lado de fora? Tem
lobo, tem cachorro do mato, tem cobra, tem?…
Eng.: Tinha gente que armava barraca, mas não é pro engenheiro, né ?
P2.: Por que não?
Eng.: O engenheiro tem que tá no computador, olhando tudo, entendeu?
P2.: Ah…
No diálogo que se estabelece, os pesquisadores procuram insistentemente
"desnaturalizar" a ideia do trabalho contínuo sem previsão de descanso, pois
têm como pressuposto os limites fisiológicos e psíquicos evocados pelos ritmos
biológicos e pelo funcionamento psíquico, marcados pela indispensável
necessidade de repouso. O que os pesquisadores buscam fazer com a linguagem é
apreender o cenário de trabalho do engenheiro e entender como é esse local.
Para eles o pressuposto de não haver um local previsto para descanso, frente às
características da atividade em pauta, é inadmissível e está presente na
perplexidade que expressam. Insistem apresentando alternativas e possibilidades
que são negadas pelo engenheiro. Porém, muito mais do que isso, os enunciados
dos pesquisadores assumem um ritmo novo, alterando seu estatuto que deixa de
ser de perguntas para serem enunciados geradores de um novo gênero.
P2.: Por que não ter um lugar de descanso?
P1.: Por que não ter uns colchonetes ali dentro?
P1.: Ah… no chão da caminhonete não tem espaço?
P2.: …por que não arma uma barraca de acampamento do lado de fora?
Tem lobo, tem cachorro do mato, tem cobra, tem?…
A mudança no gênero de enunciado se opera e o que era uma troca em que a
resposta dialogava com o sentido literal dos enunciados, passa a uma espécie de
conclusão: "mas não é pro engenheiro, né?" "O engenheiro tem que tá no
computador, olhando tudo, entendeu?" Suas inferências se mantêm primeiramente
ao sentido literal do que é posto, construindo o simulacro de um discurso
monológico, lugar onde uma subjetividade genérica vem, "o engenheiro" tornando-
se um meio para sustentar a troca com os pesquisadores.
Eng.: Tinha gente que armava barraca, mas não é pro engenheiro, né?
P2.: Por que não?
Eng.: O engenheiro tem que tá no computador, olhando tudo, entendeu?
P2.: Ah…
4.3.2 Momento 2
No segundo momento, ocorre mais uma vez uma reformulação da parte do
pesquisador1 do dito do pesquisador2, que tem efeito sobre o enunciado do
engenheiro:
P2.: Quer dizer, esse [trabalho] que era dois, três dias, vocês…
Eng.: dois, três dias é uma equipe só.
P2.: Uma equipe, aí acampa?
Eng.: Não, não tem. Não acampa, não tem lugar, você tá numa área de trabalho.
P1.: Você não dorme?
Eng.: Você dorme…, quando dorme, então, o engenheiro que, teoricamente, não
dorme, dorme na cadeira da caminhonete ou no chão ou… teoricamente você não
dorme, você não pode dormir, você tá trabalhando. Mas o engenheiro, vamos
supor, num trabalho de 3 dias, tira soneca. A ferramenta começa a subir em uma
velocidade, você bota tudo de uma certa maneira que você fala que não tem
perigo, você fala pro cara do guincho não dormir e você dorme um pouco, mas
dorme 15 minutos, meia hora.
A reformulação será uma marca de estilização do gênero de discurso presente em
alguns momentos da atividade de diálogo empreendida para desnaturalizar a
situação com o engenheiro e provocar o contato com sua própria interpretação
sobre o que ele faz. Será também uma marca do discurso do engenheiro manter-se
na dimensão da tarefa, no plano do genérico e do impessoal, transitando entre
os recursos simbólicos do "você" e "o engenheiro", porém já deixando
transparecer um confronto direto com a prescrição oficial. Explicitando que,
não obstante as expectativas da chefia, a prescrição, ele se vale de
subterfúgios para dormir, algo que transparece nas repetidas vezes em que ele
faz alusão ao verbo dormir.
A atividade de diálogo em debate neste texto tem início como conversa
espontânea (encontro casual dos interlocutores) e é posteriormente preparada e
nomeada como entrevista pelos próprios participantes. O primeiro encontro teve
como efeito também produzir um diálogo do engenheiro consigo mesmo. A
desnaturalização da situação passa a ser uma prova para ele. O processo
dialógico iniciado no primeiro encontro é passível de provocar um diálogo
interior. Faz parte da metodologia a instalação de um dispositivo dialógico.
Ainda assim, não é mesmo evidente que o engenheiro pretenda perceber melhor a
situação de trabalho em questão, tendo reunido subsídios para um diálogo
orientado para a ação coletiva. Entretanto, o dispositivo simbólico colocado em
andamento pelos pesquisadores levaram-nos a tomar algumas de suas categorias de
análise, ou alguns dos seus conhecimentos que, por sua vez, levaram o
engenheiro a sair do já dito. No enquadre dialógico, Gilvan, com respeito ao
tema do sono, gradativamente transita por uma mudança de gênero de discurso e a
descrição que faz da sua experiência na empresa sofre uma pequena 'virada',
deixando o plano do genérico para o plano da tensão entre o genérico e o
pessoal (ponto de partida para o desenvolvimento do "eu").
P1.: Mas então, aconteceu, por exemplo, em alguma situação você, por exemplo,
são duas questões, é... ter que lutar muito contra o sono, tava cansado... Por
que você disse que uma vez você virou 4 noites, foram quase 5 dias, e nesse
tempo todo você falou assim: "eu dormi quase 10 horas". Então eu imagino, no
quarto dia você deve ter sentido coisas que você nunca sentiu na vida. Eu vou
falar assim, numa virada dessas, depois que eu defendi a tese, eu encontrei um
amigo e aí a gente, da sexta pro sábado, eu e L., aí a gente foi e ficou na
Lapa, aquela coisa de virar a noite, cheguei aqui já de manhã, dormir 3 horas
assim, era aniversário do M., fui pra São João do Meriti…. Rapaz, quando
chegou, mais ou menos assim, essa hora, eu senti uma dor aqui nas costas, que
eu nunca... rapaz, assim uma coisa que parecia que tavam me enfiando uma faca.
E eu "cara que dor é essa?", e eu vim dormindo, de carona, me deixaram aqui na
praia, quando eu dormi, eu amanheci um dia depois, sumiu completamente a dor,
aquela coisa que tava entrando aqui era cansaço. Então, você já passou por
isso?
P2.: Eu tirei uma semana, uma vez, quando na época de faculdade, fazendo um
trabalho em prancheta. Então, ainda tinha aquele negócio de ficar na prancheta,
né? E foi uma semana. Mas eu dormia, 3 horas, 2 horas por noite. E aí terminei
as pranchas, os trabalhos. Naquela época não tinha computador, era tudo em
desenho no pincel. Ai eu lembro que no dia da apresentação do trabalho, a
sensação que eu tinha é como se essa parte aqui das costas tivesse virado uma
borracha, dura, como se fosse uma borracha de pneu, sabe? E que eu não sentia
mais... também tinha a coisa da postura de muito tempo, assim. E eu lembro que,
já no final da semana, na hora que eu deitava na cama, era pior, porque me doía
mais ainda, em vez de dar a sensação de relaxado, tava mais retesado. Quer
dizer, isso fora outras coisas, mau humor e tal. Essas são as que eu lembro,
né?
Eng.: O que eu lembro que a gente tinha do trabalho, quer dizer, pra manter a
gente acordado, é que, por exemplo, preparar todo esse trabalho, normalmente,
demorava uma hora. Mas era uma hora de você terminar completamente suado e
tenso, exercício físico. Então você descia a ferramenta pra umas 5 horas de
trabalho, 5, 6 horas. Tá? Na primeira hora, você ainda tá suado, tá preparando
a ferramenta e tudo. Depois vem duas horas pesadas, depois você já tá tirando a
ferramenta, já tá finalizando os relatórios, já tá finalizando tudo. E aí você
volta pra fora, pra trabalhar... Então são períodos de 6 a 8 horas, que a cada
6 ou 8 horas você tem um trabalho bem pesado. Então esses, te acordam bastante.
Se você pega, justo... 3 horas da manhã e começa a fazer um trabalho pesado
desses já de 3 às 5, você vira a noite sem nem perceber. Depois de um tempo,
daí você sente, começa a perder a fome, a gente sentia que depois do segundo
dia, terceiro dia, a gente começava a comer menos, porque você já não, começa a
se sentir pior, sei lá, estranho... Depois de, vamos supor, nessa vez que eu
fiquei 5 dias, depois do terceiro, quarto dia eu já não sentia sono, já não...
não sei, tava estranho. O corpo já não sentia sono, já… eu já não tava mais
sentindo as coisas.
4.3.3 Momento 3: transmutação intergêneros
Na sequência com o tema do sono, ainda com essa intenção de desnaturalizar as
condições e a organização do trabalho vividas, ou narradas, como "naturais",
intrínsecas à atividade do engenheiro, os pesquisadores evocam situações
pessoais onde tiveram que lidar com o sono e tentar se manter acordados. Para
isso, embalam seus enunciados em um gênero de novo tipo, parecendo dar um novo
impulso à situação, fornecendo um terreno propício ao desenvolvimento do
diálogo. Como se as estórias evocadas servissem de facilitadores, de "atalhos".
O pressuposto aí ainda é o de que as pessoas precisam dormir e que o sono é uma
necessidade fisiológica e psíquica e que, enquanto tal, precisa ser respeitada
em uma perspectiva de construção da saúde.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que para a Psicologia do Trabalho, e para as abordagens clínicas do
trabalho, os aportes das ciências da linguagem são de grande utilidade se
tomados em conjunto com aqueles da Psicologia de Vigotski para provocar e
observar o desenvolvimento de atividades dialógicas de um novo gênero. Esse
novo gênero é o lugar de desenvolvimento do próprio instrumento engendrado
entre profissionais de pesquisa e trabalhadores naquele momento particular, com
vistas a confrontar o plano do já realizado como condição para o
desenvolvimento do "real".
O objetivo da discussão que propusemos neste artigo esteve particularmente
ligado ao entendimento do nosso fazer enquanto pesquisadores. Buscamos entender
como concebemos os instrumentos simbólicos na análise do trabalho. O conceito
de gênero de discurso, nosso dispositivo analítico, permitiu-nos exercitar uma
espécie de trabalho de fabricação de instrumentos simbólicos de transformação
das situações em curso na atividade de diálogo. Esses instrumentos, justamente
pela dinâmica de seu desenvolvimento, visam transmutar-se em enunciados de um
novo gênero desenvolvidos na historicidade de outros gêneros como conversa
espontânea e entrevista.
Partilhamos com o nosso GT da ANPEPP do entendimento do trabalho como
experiência vital, constituinte da espécie humana ao longo de sua existência,
inclusive no plano psíquico. Temos também a convicção de que um dos requisitos
indispensáveis para compreender e transformar o trabalho é assumir como eixo
central de análise o "ponto de vista do real da atividade". Isso sob a ótica
daqueles que vivem o cotidiano do trabalho em diálogo preparado a partir de um
dispositivo dialógico fabricado com essa finalidade. O papel do pesquisador,
nesse caso, é dar suporte para que o trabalho seja analisado pelos seus
protagonistas. Entretanto, nesse processo, nós pesquisadores também nos
confrontamos com nosso ofício, com nossas formas de fazer, com nossos a
prioris. Esse movimento traz singularidade para cada atividade dialógica que se
dá no decorrer da pesquisa, sendo o método construído junto ao fazer.
No exercício de método realizado, nos alinhamos com a perspectiva
desenvolvimental de Vigotski, para quem é indispensável a ação para se fazer a
teoria. É preciso provocar o desenvolvimento da atividade dialógica, pois é em
movimento que o circuito dialógico se realiza. O papel do pesquisador, nesse
caso, em sua expertise, é dar suporte para que o trabalho seja coanalisado,
ampliando o leque de possíveis. Sob o ponto de vista da ação, escolher um
caminho e não um outro é fabricar dispositivos para se discutir critérios de
qualidade.
No desenvolvimento dialógico, a proposta é promover, em síntese, a confrontação
do trabalhador com seu trabalho em sua relação com o real. E o real entendido
como mais do que a pura realização (Clot, 1998), mas como desenvolvimento
possível ou impossível de outras realizações. A diferença de pontos de vista,
orientada pelos pressupostos em jogo, a polifonia orquestrada na confrontação
que produz novos enunciados a partir da necessidade de elaborar novas maneiras
de dizer, colocam no horizonte dialógico uma nova forma de pensar o trabalho,
constituindo seu tema para um outro destinatário (os pesquisadores).