Laboratório: "Onde fazer ciência"?
O DICIONÁRIO
Laboratório. "Onde fazer ciência"?
El laboratorio. ¿Dónde "hacer ciencia"?
Laboratoire. Où "faire-science"?
Laboratory. Where to "make science"?
Catherine Teiger[1]
[1] Groupe de recherche et d'étude sur l'histoire du travail et de
l'orientation (GRESHTO) & Laboratoire d'Ergonomie Centre de recherche sur
le travail et le développement Conservatoire National des Arts et Métiers 41,
Rue Gay Lussac 75005 Paris France
moufcat@gmail.com
Onde "fazer ciência" [1]? Uma tal questão pode parecer absurda! A primeira
resposta que vem à mente de qualquer pessoa é bem esta: "num laboratório!",
lugar evidente de construção dos conhecimentos num domínio particular. O
dicionário histórico da língua francesa (Rey, 1998, p.1955) - referência
obrigatória para este exercício de redefinição do vocabulário de Laboreal -
descreve o percurso da significação do termo a partir da sua criação
relativamente tardia no século XVII em França (1620). Enquanto termo científico
- já - ele é formado a partir do verbo latino laborare: dar-se ao trabalho,
lavrar (forma de trabalho físico mais prevalente na época). Ela designa
primeiramente o "local equipado para fazer experiências, investigações,
preparações científicas" que requerem um equipamento particular, tal como é o
caso dos farmacêuticos (1620) e dos químicos (1671). Um século mais tarde, o
termo é aplicado também ao destilador e ao "local onde ele prepara os seus
produtos" (1727), o que se assemelha à química. No final deste século,
designar-se-á também por "laboratório" uma parte de um objeto técnico concreto,
o forno de revérbero, "lugar onde se efetuam as trocas de calor, as reações
químicas (1757)". Depois, o sentido passa a ser figurado e estende-se ao "lugar
onde se faz investigações intelectuais, onde as estudamos" (1765). Atualmente,
encontramos os dois sentidos para qualificar os lugares onde fazemos ciência,
seja no domínio das ciências da matéria e da vida onde se pratica a
experimentação, ou no domínio das ciências humanas e sociais, mesmo se não se
pratica a experimentação. Em contrapartida, é de notar que o lugar onde se
efetua trabalho manual não teve direito durante muito tempo a esta designação
de "laboratório ".
Na linguagem científica corrente, em oposição ao conceito de "laboratório",
lugar de investigações experimentais e de cientistas, situa-se "o terreno",
lugar de pesquisas empíricas e dos práticos da intervenção.
Porquê, então, a questão de "onde fazer ciência?" se coloca quando nos
interessamos pelas ciências do trabalho? Onde é legítimo construir
conhecimentos válidos sobre o ser humano no trabalho e, além disso,
conhecimentos permitindo agir sobre o trabalho a fim de desenvolver a saúde e
as competências dos trabalhadores e assegurar simultaneamente a qualidade do
trabalho? No laboratório OU no terreno? No laboratório E no terreno? E como
fazer ciência num e noutro caso? Para quem e com quem?
Tradicionalmente até ao final dos anos sessenta do século passado era claro
para todos que os que faziam experiências em laboratório faziam ciência,
atribuindo aos práticos papéis secundários, uma vez que se limitariam a fazer
uma aplicação no terreno - isto é, aos problemas colocados na empresa - dos
conhecimentos fundamentais produzidos em laboratório. Fora do laboratório, não
há saudação nem reconhecimento por parte do meio universitário!
Mas os jovens ergónomos e psicólogos do trabalho do século XXI serão, sem
dúvida, fortemente surpreendidos ao descobrir a existência deste debate
teórico-prático sobre uma questão que já há muito tempo deixou de ser levantada
da no seu meio. As investigações são praticamente todas conduzidas atualmente
"no terreno", segundo uma démarche que associa, de forma geral, estreitamente
investigação e intervenção (conhecimentos e ação) e já ninguém põe isto em
causa.
No entanto, esta nova postura foi objeto de acesas polémicas e de tomadas de
posição por vezes rígidas durante uma vintena de anos (dos anos sessenta aos
anos oitenta), no período de emergência da ergonomia em França. Um certo número
de manifestações científicas e de publicações tiveram lugar sobre este tema de
"onde fazer ciência" [2], alguns defendendo a ideia de que se poderia articular
as duas abordagens, tendo cada uma vantagens e desvantagens (Teiger, Laville
& Dessors [3] , 1979-1980). Olhando para trás, constata-se que a década
1965-1975 constituiu um período de transição, o momento difícil da passagem de
um paradigma de investigação para outro, ou seja, do laboratório para o
terreno. A questão essencial permanece, a de saber qual é o objetivo
prosseguido e que significado têm esses lugares em relação à questão do
trabalho, aos parceiros envolvidos e aos critérios aceites de qualidade dos
conhecimentos.
Esta nova era (a coexistência de dois paradigmas que nos interessa aqui),
instaurada nos anos 70' terá uma curta duração. Progressivamente, o paradigma
experimental puro desaparecerá provavelmente devido a vários fatores: a
crescente complexidade das atividades de trabalho ligadas à informatização e à
automatização que tornaria a simulação das tarefas,, muito em voga nos anos
sessenta, cada vez mais difícil mesmo se este método continua ainda hoje em
vigor (Béguin & Weill-Fassina, 1997); o carácter incontestavelmente
cronófago desta dupla démarche; a existência de meios mais sofisticados de
registo e tratamento de observações, como é o caso do software Actogram Kronos
(Kerguelen, 2008). Por outro lado, é de referir a menor importância atribuída à
medida enquanto tripé metodológico da ergonomia que na época se traduzia em
observações, medições e entrevistas; devido, talvez também, a uma maior
aceitação do método indutivo nos meios de investigação sobre o trabalho que
passaram assim a admitir que os resultados obtidos desta forma não são somente
simples "anedotas" (Duraffourg, 2013, p. 147) sem valor heurístico.
Desta forma tomamos consciência que uma disciplina científica é qualquer coisa
de vivo que se constrói com paradigmas, cuja evolução é incessante, como
sublinhava Thomas Khun (1962), e que é bom, por vezes, olhar para trás para ver
de onde vimos. A história da ergonomia francófona (dita da atividade) é disto
um bom exemplo.
O que é que se passou, então, neste período que corresponde também a uma
valorização crescente das investigações decididamente orientadas para a ação de
transformação, a realizar nas «realidades de trabalho» com os outros atores
envolvidos? Duas causas convergentes impulsionaram esta revolução: sinais do
tempo, sem dúvida (ver nomeadamente em sociologia a teorização da investigação
qualitativa e indutiva com a «grounded theory» ou «teoria ancorada nos factos»
de Glaser e Strauss, 1967), mas sobretudo, neste final da década de sessenta, a
erupção da «demanda social» sobre as questões da saúde no trabalho. Esta
«demanda» foi encaminhada pelas organizações sindicais para os locais de
investigação, tais como o Conservatoire National des Arts et Métiers, devido ao
engajamento reconhecido de Alain Wisner (diretor do Laboratoire de Physiologie
du travail - Ergonomie) relativamente à saúde no trabalho. Mas os conhecimentos
científicos disponíveis - conhecimentos parcelares, principalmente sobre os
efeitos do ambiente material sobre funções psicofisiológicas isoladas - eram
inadequados para responder a estas solicitações «globais» que vão das
perturbações do sono à fadiga nervosa passando por dores nas costas e o
desgaste precoce… Ora, em 1965, Wisner definia deste modo a ergonomia
dirigindo-se aos meios industriais:
«A ergonomia reúne os conhecimentos da fisiologia, psicologia e das ciências
vizinhas aplicadas ao trabalho humano na perspetiva de uma melhor adaptação ao
homem dos métodos, meios e locais de trabalho […] Ela baseia-se apenas em
resultados experimentais obtidos junto do homem normal e propõe ao utilizador
dados limitados, mas possuindo um elevado grau de certeza.» (p. 203, tradução
livre).
Mas, vinte anos mais tarde, já escreve (Wisner, 1985, p. 33):
«O futuro mostrará que a observação do homem no trabalho é uma fonte importante
de saber científico fundamental. O erro persistente, que eu sublinho, parece-me
ligado ao valor indevidamente associado às ciências do Homem, e em particular
nas ciências cognitivas, ao paradigma experimental sob uma forma demasiadamente
inspirada nas Ciências Físicas. Há outras maneiras de estabelecer factos e
conceitos com o objectivo de obtenção de provas» (tradução livre).
Foi precisamente "a erupção da intervenção na investigação em ergonomia"
(Teiger, 2007) que foi o desencadeador desta mutação epistemológica.
Constatamos, aliás, reações equivalentes na época, por parte de outros
universitários que se encontraram igualmente desarmados face à demanda operária
de conhecimentos úteis para «não mais perder a sua vida a ganhá-la» e cuja
orientação de investigação se alterou e modificou-se para sempre. Este foi o
caso, por exemplo de Ivar Oddone e a sua equipa (1977) em Itália e de Luc
Desnoyers e Dona Mergler (1981) no Québec. Mas nem todos estão de acordo com
este posicionamento que obrigou a uma mutação teórico-metodológica acolhida de
forma glaciar por alguns (Wisner, 1985). Com efeito, resultou, do encontro
entre a demanda operária e a investigação universitária, uma mudança radical do
objeto de investigação e de démarche, a decisão de «ir para ver», saindo do
laboratório para aí regressar para verificar experimentalmente certas hipóteses
a partir dos factor observados e reconstruídos de forma pertinente, tal como o
recomendava já Claude Bernard (1865). Por exemplo, no seguimento de uma das
«demandas sociais» - sindicais - dirigidas ao Laboratoire de Physiologie du
travail - Ergonomie, uma investigação sobre as perturbações do sono, devido aos
horários atípicos dos maquinistas de comboio, foi conduzida primeiramente no
terreno com o registo do sono dos "roulants" [4] durante os seus dias de
trabalho nos locais de repouso das estações, posteriormente em laboratório com
diferentes populações. Esta investigação forneceu alguns conhecimentos novos
sobre o sono e os ritmos nictemerais, particularmente sobre as modalidades de
regulação do sono em função dos horários de trabalho: a estrutura do sono
depende da hora de deitar (o que conduz a conflitos e a compromissos entre
exigências pessoais e sociais); «o sono de dia dos trabalhadores de noite»
mostra frequentemente uma organização bifásica (importância da sesta); o avanço
na idade (base orgânica dos ritmos biológicos) assume um papel importante
nestas regulações (Forêt, & Lantin, 1971). Estes conhecimentos fundamentais
não tinham sido nunca pressentidos até então.
Em resumo, mencionaremos algumas particularidades da investigação em situação
profissional (o terreno) quando ela se quer também intervenção, isto é, ligada
a uma ação socialmente útil:
- A situação de trabalho é o objeto e o objetivo central da investigação e não
um local de construção de conhecimentos para os investigadores/interventores. A
resolução do problema colocado pela demanda social (retrabalhado) é, então,
prioritária. A escolha das situações resulta tanto da importância social do
problema colocado, como das competências dos investigadores ou interventores.
Neste sentido a investigação em ergonomia é sempre também intervenção
«melhoradora» (Albou, 1966).
- Diferentemente da realização de tarefas de laboratório, a das tarefas da
empresa representa para os assalariados um desafio capital, já que se relaciona
com a sua saúde e a manutenção do seu emprego. Daí a preocupação dos
interventores em compreender, para transformá-la, a «atividade real» e as
estratégias variadas que ela implica em relação ao trabalho teórico, previsto,
prescrito ou esperado.
- As questões colocadas pela situação problemática são em geral «globais», daí
a necessidade de uma fase exploratória consagrada ao «trabalho do pedido»
(entrevistas com todas as partes, prática momentânea da atividade de trabalho
in situ pelos investigadores, observações não sistemáticas, na medida do
possível). As manifestações do problema são também, frequentemente, inesperadas
e incompletas. O problema terá, desde logo, de ser construído.
- Entre os elementos a discutir desde o início da investigação figura a
obtenção de uma garantia coletiva, envolvendo a utilização dos resultados da
investigação e o acompanhamento "duradouro" das transformações eventuais
(graças, por exemplo, a um grupo interno a criar, ou a um reforço dos CHS-CT -
Comités de Higiene, Segurança, Condições de Trabalho).
- Dispositivos de acompanhamento e de mobilização dos atores em torno da
investigação devem ser constituídos: um comité de pilotagem com representantes
de todas as partes (direção, organizações sindicais, CHS-CT, medicina do
trabalho) e "grupos de trabalho ad hoc" associados à investigação no seu
quotidiano.
- A complexidade da situação (interações de vários fatores de risco, exposição
múltipla) impede a prática do método dos grupos experimentais versus grupos de
controlo. Devem ser construídos "grupos de comparação" de acordo com a
combinação de fatores nocivos da situação de cada um dos grupos, que podem ser
de seguida comparados.
- Uma combinação de métodos (que atualmente designamos de triangulação) deve
ser elaborada em cada nova situação com a finalidade de poder multiplicar os
pontos de vista através de "um jogo de luzes cruzadas cujos raios se combinam e
se interpenetram" sem esquecer que "o perigo começa quando cada projetor
pretende, por si só, ver tudo, quando cada província do saber é tomada como uma
parte" (Bloch, 1993).
- A dimensão temporal é a que mais especifica as situações profissionais: o
fator duração (fadiga), concretamente, implica análises continuadas durante
períodos longos e em diferentes momentos do dia (e mesmo da noite, se for o
caso). A posição dos horários no ciclo diário e os ritmos do trabalho
(cadências) constituem outros dois aspetos muito importantes.
- No plano individual, um outro fator temporal joga um papel importante: é o
avanço na idade dos/as operadores/as, a sua antiguidade e a sua experiência.
- Os/as operadores/as têm um papel particular na investigação. Exige o
reconhecimento do valor dos seus conhecimentos sobre a situação e seus efeitos
sobre a saúde e a qualidade do trabalho. Estes conhecimentos de experiência são
indispensáveis e específicos. A sua articulação com os conhecimentos
científicos, e os debates que daí decorrem, implica encontros regulares onde
são discutidas e decididas as etapas da investigação; os resultados obtidos são
restituídos e debatidos sempre que necessário para permitir reajustamentos que
possam ser necessários - o que Guy Berger (1976) denomina "avaliação formativa"
- e a apropriação da investigação pelos que dela são simultaneamente o seu
objeto e os sujeitos.
- Em certas situações de acesso difícil para os investigadores, a experiência
mostrou que os/as trabalhadores/as podiam, depois de terem formação, participar
ativamente na recolha de dados pertinentes sobre a sua atividade (auto-medidas,
cartas de sono, ocupação do tempo, etc.) que de seguida são tratados
conjuntamente com os investigadores (Dessors et al., 1979).
- O investigador-interventor está assim em posição de co-aprendiz e não de
especialista sabedor de tudo; está em posição de escuta e de deteção do
desconhecido, permitindo a elaboração de hipóteses novas e não a verificação de
hipóteses pré-construídas, o que V. de Keyser (1982) denomina a "política do
olhar" e do diálogo nos quais J. M. Faverge era inexcedível.
- A validação dos resultados da investigação/intervenção depende de vários
critérios sendo um dos quais o reconhecimento da justeza dos resultados pelos/
as trabalhadores/as que participaram na investigação assim como pelos seus
pares. Se não se verificar esta situação, a investigação deve procurar alcançar
uma explicação para esse fenómeno e de o ter em conta. A generalização é
forçosamente um processo lento a partir de várias experiências.
Constatamos que a questão principal é o estatuto dos conhecimentos em função da
sua origem. É interessante constatar que o debate sobre o "valor" diferencial
dos conhecimentos em função do seu método de produção (em conformidade ou não
com a tradição em curso), e não a sua exatidão em relação ao "objeto" estudado,
existe em outras disciplinas. Vinciane Despret (2011) descreve, com humor, o
facto de certos etólogos experimentais considerarem com condescendência os
conhecimentos comprovados pela experiência dos tratadores, criadores,
treinadores de animais, designando-os então como simples "anedotas" face ao que
pretendem estudar em laboratório. Mas ela também refere como as fronteiras se
misturam quando certos desses animais recalcitrantes manifestam intenções
individuais na altura das experimentações de laboratório - condições
artificiais para eles - intenções essas que vão contra as instruções dos
experimentadores. Daí que cheguem a abandonar o plano experimental projetado,
acusando esses animais - sobretudo os gatos - de "deturpar as experiências".
Enquanto um animal colocado em condições naturais, que o satisfazem, realiza
muito facilmente a tarefa em questão: um mynah que tinha sido reformado por
incompetência em aprender a falar no laboratório a partir de frases registadas,
quando adotado pela família de um técnico desse laboratório, passou a falar
muito rapidamente a partir das vozes humanas que o envolviam.
Produzem-se, aparentemente, no momento atual dois fenómenos novos interessantes
e em parte ligados, tanto para a etologia como para a ergonomia: um esbatimento
de fronteiras entre laboratório e terreno (abordagens indutiva e dedutiva da
descoberta) e sobretudo um reconhecimento do valor e da complementaridade dos
conhecimentos "híbridos" (Latour & Wolgar, 1979; a cognição distribuída)
provenientes de fontes diferentes, assim como da experiência nestes dois
sentidos: adquirida pela prática ou construída artificialmente. A noção de
"comunidade científica ou de investigação alargada" preconizada pela equipa de
Ivar Oddone e seus adeptos (Muniz, Brito, Souza, Athayde & Lacomblez, 2013)
torna-se menos utópica.
Em conclusão, para sair do dilema laboratório/terreno, podemos desejar ser mais
semelhantes com abelhas do que com formigas ou aranhas, segundo a evocação que
disso faz Francis Bacon (1620) que nos faz voltar ao século XVII de onde
partimos com a invenção do termo "laboratório":
"Os empíricos, semelhantes às formigas, só sabem amassar e usar; os
racionalistas, semelhantes às aranhas, fazem quadros que retiram de si
próprios. O procedimento da abelha fica a meio de entre os dois: ela recolhe os
seus materiais das flores dos jardins e dos campos, mas ela transforma-os e
destila-os graças a uma propriedade que lhe é própria" (tradução livre).