Da compreensão coletiva da atividade real à conceção participativa da
organização: por uma intervenção ergonómica capacitante
RESUMO DE TESE
Da compreensão coletiva da atividade real à conceção participativa da
organização: por uma intervenção ergonómica capacitante.
De la comprensión colectiva de la actividad real al diseño participativo de la
organización: promover la intervención ergonómica “capacitante”.
De la compréhension collective de l'activité réelle à la conception
participative de l'organisation: plaidoyer pour une intervention ergonomique
capacitante.
From the collective understanding of the actual activity to the participatory
Organization design: encourage an “empowering” ergonomic intervention.
Anne Raspaud
Pôle Stratégie médico-scientifique Hôtel Dieu - CHU de Toulouse 2 rue Viguerie
TSA 80035 31059 Toulouse France
raspaud.a@chu-toulouse.fr
Raspaud, A. (2014). De la compréhension collective de l'activité réelle à la
conception participative de l'organisation: plaidoyer pour une intervention
ergonomique capacitante. Thèse de doctorat en ergonomie, Conservatoire National
des Arts et Métiers, Paris.
Esta tese aplica e desenvolve o paradigma da ergonomia construtiva à conceção
da organização. Apoiando-se numa intervenção de (re)conceção de um processo de
prestação de cuidados inovador (a cirurgia ambulatória), define e
operacionaliza uma metodologia de intervenção capacitante que coloca o
desenvolvimento como meio e finalidade da ação.
1. A CIRURGIA AMBULATÓRIA: UM CONCEITO DE PRESTAÇÃO DE CUIDADOS INOVADOR QUE
RESPONDE ÀS NECESSIDADES DE RACIONALIZAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS
Esta investigação-intervenção, conduzida num Centro Hospitalar Universitário
francês, insere-se num contexto nacional de reforma hospitalar que tem impacto
nas condições de trabalho de todos os profissionais de saúde e no atendimento
geral dos pacientes. Novos modelos de organização dos cuidados de saúde são
implementados com o desenvolvimento do atendimento substitutivo da
hospitalização a tempo inteiro. Estas evoluções respondem a dois desafios
principais: responder melhor às diversas necessidades dos pacientes e otimizar
o recurso aos cuidados hospitalares, pensando o hospital como um local de
prestação de cuidados sem necessidade de internamento.
A cirurgia ambulatória constitui uma alavanca para uma transformação profunda
dos modelos de organização da prestação dos cuidados de saúde. O processo de
prestação de cuidados é transversal às diferentes especialidades médicas e aos
diferentes serviços, e revela uma forma particular de atividade coletiva: a
atividade coletiva conjunta (Lorino, 2009). A fim de se poder realizar a
prestação de cuidados, várias atividades são levadas a cabo (simultaneamente ou
não) nas relações de interdependência complexas e de coordenações reforçadas,
no seio de entidades distintas (serviços, equipas, polos) que mobilizam
operadores de diversos perfis profissionais (cirurgiões, anestesistas,
enfermeiros,…). O trabalho é assim condicionado pela articulação entre os
diferentes atores, com múltiplas lógicas, e que têm que colaborar para atender
os pacientes.
2. PROBLEMÁTICA E OBJETIVOS DA TESE
A investigação-intervenção centra-se na conceção desta organização. Foi pensada
não só como geradora de soluções visando o melhor compromisso entre os
objetivos de bem-estar e desempenho (Falzon, & Mas, 2007), mas também como
uma ação que suporta o desenvolvimento constante e conjunto das pessoas, dos
coletivos de trabalho e das organizações. Baseia-se na abordagem das
capabilidades iniciada por Sen (2000) e, mais especificamente, sobre a
abordagem das capabilidades coletivas (Evans, 2002). Definem-se não pela
simples justaposição ou agregação das capabilidades individuais, mas advêm sim
da emergência de uma possibilidade nova e coletiva de agir e de criar. Permitem
aos operadores envolvidos numa atividade coletiva serem capazes de agir em
torno de um objetivo comum. Três elementos, fundadores e em interação, foram
identificados como necessários para o desenvolvimento das capabilidades
coletivas: a atividade coletiva dos operadores (o motor), definido pela
interação enriquecedora do trabalho coletivo e do coletivo de trabalho (Caroly,
2010), as estruturas organizacionais adequadas (o suporte) e o capital social
entre estes atores (o lubrificante).
Nesta abordagem, a atividade coletiva constrói e alimenta o desenvolvimento dos
sujeitos e dos coletivos e constitui o motor da aprendizagem, da transformação
e da performance, recurso para a emergência de novas liberdades para os
indivíduos. O indivíduo e o coletivo vão então ter a oportunidade concreta de
alcançar o que legitimamente valorizam, realizar um trabalho bem feito (Arnoud,
2013). Isto requer um ambiente favorável para que as capabilidades coletivas
possam ser exercidas e transformadas em realizações de valor, que Sen descreve
como as condições necessárias para que um direito formal se torne uma
capacidade real (Falzon & Mollo, 2009): um ambiente capacitante (Falzon,
2005).
Colocar o desenvolvimento no centro do processo da intervenção ergonómica é
simultaneamente construir a ação para encorajar o desenvolvimento e organizar
uma situação de desenvolvimento (Falzon, 2013). Para a ergonomia, a questão é a
de saber como instruir, construir e equipar a intervenção para que ela permita:
— Implementar uma dinâmica que permita e incentive a confrontação das
representações e o seu debate: trata-se de pensar a intervenção como um
processo pedagógico de transformação, a oportunidade de uma dinâmica de
desenvolvimento e de aprendizagem.
— Construir uma situação futura que permita aos indivíduos, aos coletivos e às
próprias organizações de se transformar e de aprender; por outras palavras,
intervir é procurar conceber uma organização capacitante (Arnoud, 2013).
3. METODOLOGIA DE INVESTIGAÇÃO
Duas etapas estruturaram a investigação-intervenção.
Uma primeira fase de diagnóstico consistiu em analisar o funcionamento do
processo de cirurgia ambulatória nas três unidades de cirurgia ambulatória do
centro hospitalar universitário (CHU), a fim de compreender se a organização
constitui um travão ou um motor para o desenvolvimento da atividade coletiva
conjunta. Dois tipos de métodos foram utilizados:
— Observações papel e lápis. Após 120 horas de observações abertas, foram
realizadas 60 horas de observações sistemáticas, focadas no percurso dos
pacientes (desde o seu acolhimento na unidade de cirurgia ambulatória até à sua
saída) com vista a analisar as atividades individuais (gestão simultânea de
pacientes…) e as interações entre os diferentes atores.
— 80 entrevistas semiestruturadas com 30 pacientes e 50 profissionais de saúde
foram realizadas, com vista a recolher as suas representações sobre a cirurgia
ambulatória (nível de conhecimento, expectativas, nível de aceitabilidade,
potenciais impedimentos). As 80 horas de entrevistas foram objeto de uma
análise de conteúdo por temas.
O diagnóstico evidenciou a transformação profunda dos padrões profissionais dos
prestadores de cuidados gerada pela cirurgia ambulatória e a sua dificuldade em
construir uma organização que promove a atividade coletiva conjunta. A
atividade de cirurgia ambulatória surge segmentada e o paciente circula de um
segmento para o outro sem verdadeiras cooperações construídas ou coordenações
organizadas entre as equipas. Existem coletivos de trabalho por especialidade,
mas não um “coletivo de trabalho ambulatório”, vetor de coesão e coerência.
Uma segunda fase consistiu na construção de uma metodologia de conceção
participativa de uma organização da cirurgia ambulatória que suporta o
desenvolvimento de uma atividade coletiva conjunta e das capabilidades
coletivas. Centrou-se na especialidade cirúrgica de orto-traumatologia. Foi
criado um grupo de trabalho, constituído por 25 operadores do processo de
cirurgia ambulatória pertencentes a equipas multiprofissionais; foi animada
pelo ergónomo investigador e por uma profissional de saúde especializada na
análise das práticas profissionais.
Cada reunião do grupo de trabalho foi gravada, transcrita e foi objeto de uma
análise de conteúdo. Cinco etapas estruturaram esta fase da conceção:
Etapa 1: Constituir uma reserva de situações que permitam ao ergónomo apoiar e
estimular o debate. Para tal, foi realizado um segundo momento de 98 horas de
observações no serviço em questão.
Etapas 2 e 3: Construir uma representação comum da atividade real a partir da
simulação coletiva de um caso concreto proposto pelas animadoras; para tal, uma
metodologia inspirada na abordagem de processo (Lorino, 2003) foi utilizada
para se encontrar a linearidade e o encadeamento das lógicas de ação que
concorrem para satisfazer as exigências da prestação de cuidados, que são mais
do que uma sucessão de etapas independentes e compartimentadas entre as equipas
multiprofissionais. O grupo de trabalho materializou o processo ambulatório de
forma cronológica num friso de papel que responde às seguintes questões: “Quem,
O Quê, Onde, Quando, Como”. Cada participante que intervém na construção do
processo verbalizou conjuntamente a sua atividade simulada.
Etapa 4: Decidir os objetivos a atingir coletivamente. As animadoras
apresentaram ao grupo de trabalho uma síntese das trocas previamente analisadas
por temática e dos esboços das soluções propostas na simulação.
Etapa 5: Formalizar a atividade futura e confrontar as soluções. Foram
constituídos três subgrupos de 5 pessoas, cada um com um representante de cada
função, para suportar a atividade coletiva conjunta. Cada subgrupo propôs as
soluções escritas num paperbord e submeteu-as oralmente ao grupo de trabalho
argumentando as escolhas feitas, seguindo uma lista de questões precisas
fornecidas pelas animadoras.
4. PRINCIPAIS RESULTADOS DA INVESTIGAÇÃO: OS DETERMINANTES DE UMA INTERVENÇÃO
CAPACITANTE
A análise dos dados recolhidos (conteúdos das trocas, papel do ergónomo)
permitiu evidenciar uma série de princípios chave para que uma intervenção seja
capacitante, isto é, neste caso, que permita o desenvolvimento conjunto das
pessoas e do coletivo e a performance da organização:
4.1 Tornar mobilizável a disponibilidade dos recursos efetivos e potenciais dos
indivíduos
As discussões sobre o trabalho, através da criação de espaços de debate e de
apoios às memórias da atividade evocadas pelo ergónomo (questões de
clarificação e situações de ações dinamicamente evocadas pelo ergónomo)
implicaram uma tomada de consciência, caraterizada por dois fatores (Mollo,
2004):
— A análise do processo é feita à distância da tarefa efetiva. Os participantes
estão, então, concentrados nos seus conhecimentos e competências, postos em
ação no decurso da atividade.
— Ao tornarem-se analistas da sua própria atividade e da dos outros, os
participantes explicitaram o que faziam, como e porque o faziam. Não se trata
só de dizerem o que sabiam, mas de descobrirem um saber implícito individual e
coletivo e de outras formas de “fazer”.
Através das trocas e das discussões dos constrangimentos, das dificuldades, dos
critérios de qualidade, etc., o trabalho é reificado, tornado exterior ao
trabalhador (Falzon, 2005). Os operadores têm assim a oportunidade real de
reinterrogar coletivamente as regras.
4.2 Implantar a atividade coletiva conjunta para construir um coletivo de
trabalho
A intervenção através da construção, das trocas e dos debates coletivos sobre o
processo de cirurgia ambulatória “real” permitiu desenvolver uma forma de
atividade coletiva conjunta que não existia no início. O ergónomo levou os
protagonistas da prestação de cuidados ambulatórios a lançar as bases
essenciais de um trabalho coletivo e de construir os contornos de um coletivo
de trabalho de cirurgia ambulatória. Isto permitiu: um conhecimento partilhado
do processo sem a globalidade e a emergência de referências comuns, um
conhecimento de trabalho do outro e uma cultura coletiva, um reconhecimento das
competências de cada um e da sua necessária complementaridade, uma confiança
mútua nas informações trocadas e nas ações efetuadas.
4.3 Permitir que os recursos do coletivo de trabalho se transformem e se tornem
“capabilidades coletivas”.
O investigador-ergónomo, pela metodologia implementada, deu ao grupo de
trabalho tornado “coletivo de trabalho”, a possibilidade de ter uma ação sobre
a sua própria situação de trabalho e de assim aumentar o seu poder de agir, ou
seja, construir “um espaço de liberdade, autorizado pela organização, em que
ele pode construir e investir” (Coutarel, 2004, p. 168, tradução livre). Isto
permitiu-lhe encontrar novas vias, novas formas de fazer o trabalho. Os
operadores, pela mobilização dos seus recursos individuais em capabilidades
coletivas, fazem a escolha partilhada de “fazer melhor juntos”, de se coordenar
e de definir um objetivo coletivo comum.
4.4 Permitir a conversão das capabilidades coletivas em funcionamentos efetivos
O trabalho de reorganização é tornado possível porque a organização propôs um
ambiente favorável à contribuição positiva dos prestadores de cuidados no
processo de conceção coletiva do cuidar. Os operadores beneficiam de uma
liberdade que lhes permite realmente aplicar os recursos de que dispõem e
elaborar as regras formais que favorecem o desenvolvimento das regras efetivas
aceitáveis para a atividade coletiva e individual, nomeadamente a coordenação
da prestação de cuidados e a colaboração profissional.
5. CONCLUSÃO
A metodologia desenvolvida, fundada nos princípios da ergonomia construtiva,
permitiu propor um modelo que participa no desenvolvimento dos indivíduos
(graças à implementação do saber-fazer, de conhecimentos, de competências), dos
coletivos (graças à criação de condições organizacionais que permitam a
construção e o desenvolvimento das diferentes formas de coletivo de trabalho) e
das organizações (graças à integração na organização de processos reflexivos,
abertos às capacidades de inovação dos próprios operadores) (Falzon, 2013).
A generalização a outras situações de conceção parece possível devido à
transversalidade das questões levantadas e do método utilizado. A intervenção
centrou-se na organização de um sistema complexo (pelas caraterísticas técnicas
do processo, o número e a diversidade de atores). Esta especificidade não
parece ser um obstáculo à reutilização do modelo em situações menos complexas.
Somente o estudo do pedido e a análise da organização a (re)conceber permitirão
justificar se faz sentido desenvolver esta metodologia à luz do balanço
resultados esperado / projeto a implementar (nível de análise da atividade
necessária, número de atores solicitados em simultâneo, formas de difusão dos
resultados para outros profissionais, a construção social da intervenção…).