O Panóptico de Sauron: Poder e Vigilância no Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien
Introdução
Este artigo esta´ organizado em três grandes partes. Na primeira, temos a
introdução ao tema dos estudos de vigilância, preparando um enquadramento que
suporta a aplicação desta área de estudos à obra literária de Tolkien: Senhor
dos Anéis. É, aqui, estabelecida uma descrição cronológica que denuncia um
ponto fulcral de mudança no modo e substância que estes estudos sofreram,
demonstrada a sua transversalidade na aplicação das teorias a diversas áreas e
temáticas da sociedade e também da cultura e apontada uma das origens dos
estudos de vigilância nas obras literárias do início do século XX. Finalizando
esta parte, temos uma contextualização histórica e social da vida de Tolkien
que aborda, não só as influências na origem da obra, mas também do homem.
Numa segunda parte, é apresentado o enquadramento teórico dos estudos de
vigilância no Senhor dos Anéis. Aqui, é introduzido o tema da vigilância e do
poder como presenças fortes na obra em discussão. Estabelece-se a relação entre
vigilância, poder e conhecimento, seguindo a linha teórica de Foucault aplicada
ao mundo secundário da Terra Média. A distinção analítica, argumentada por
Fausto Colombo, desempenha, aqui, um papel fundamental na análise ao
proporcionar uma linha lógica no desenvolvimento do tema pré-moderno e moderno
do poder.
Dentro da análise ao poder moderno, é analisado o simbolismo d'O Anel que,
assumindo duas perspectivas opostas, torna mais complexa a relação entre agente
e sujeitos e os efeitos do poder sobre o seu possuidor. No final, são
discutidas as cinco precauções a aplicar, definidas por Foucault, sempre que é
feita uma análise ao tema do poder.
Relativamente à terceira e última parte, são apresentadas e analisadas duas
vertentes do poder que estão, também, presentes na obra de Tolkien. São elas a
retórica e a resistência, ou contra-poder. A retórica é analisada do ponto de
vista da inscrição social da ideologia e é feita uma analogia aos estudos das
práticas discursivas, enquanto que no tópico sobre a resistência são analisadas
as habilidades que Foucault diz emergirem mesmo no centro das relações de poder
e as consequências que tiveram no desenrolar da narrativa do Senhor dos Anéis.
Este artigo termina com a conclusão, onde são resumidos e relacionados todos os
temas abordados ao longo da presente análise.
A compreensão do tema dos estudos de vigilância e poder é relevante nos estudos
sociais, porque permite entender o comportamento dos diferentes actores e as
suas dinâmicas orgânicas de sujeição e exercício do poder, tanto na vertente
pré-moderna como também na sua vertente moderna. Porque a literatura do início
do século XX está, também, na origem dos estudos de vigilância, a aplicação
destas teorias à obra Senhor dos Anéis foi motivada pela óbvia presença de
focos de poder soberano e também de tecnologias de vigilância na narrativa em
análise, juntamente com um gosto particular pela obra de Tolkien.
O Panóptico de Sauron: Poder e Vigilânciano Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien
Os estudos de vigilância são relativamente recentes. Existe, no entanto, um
facto histórico que, devido a ter despertado uma maior atenção do público e da
comunidade académica, marca uma mudança significativa na forma como são
conduzidos e na maior frequência com que são produzidos: o ataque do 11 de
Setembro de 2001 ao World Trade Center (Lyon, 2003, p.15; Ball, Haggerty e
Lyon, 2012, p.xxvii). No entanto, esta temática começou bastante antes.
De acordo com Lyon, desde os anos 50 que existem estudos nesta área, sobretudo
devido a uma crescente consciência relativamente aos abusos dos direitos
humanos motivados pelo colonialismo, fascismo e comunismo e comportamentos
anti-democráticos em sociedades democráticas. Foi também devido a obras
literárias como as de Orwell (1949) e ao aparecimento dos computadores e
tecnologias associadas, provocando profundas implicações ao nível do
comportamento social e organizacional, que estes estudos continuaram. (Ball,
Haggerty e Lyon, 2012, p.1)
A área da vigilância observou um exponencial e mais sistemático crescimento nos
últimos anos e viu florescer uma série de debates, tanto nos círculos
académicos como na esfera pública. O potencial para entender as alterações no
comportamento humano foi um factor decisivo no seu crescimento e o número
considerável de livros e artigos que podemos encontrar sobre o tema demonstra
maturidade e coordenação de esforços de muitos académicos nas abordagens
efectuadas a esta problemática.
Como refere G. Marx, os estudos de vigilância, como área de estudo das ciências
sociais, apresentam-se distintos de outras áreas de estudo, pois não estão
directamente relacionados com diferentes geografias, etnias, géneros ou estilos
de vida. Também não são condicionados por uma única perspectiva disciplinar,
teórica ou metodológica. Os estudos de vigilância baseiam-se, essencialmente,
num conjunto de comportamentos individuais ou grupais que se relacionam com a
informação (Ball, Haggerty e Lyon, 2012, p.xxviii) ou, como coloca Foucault1 :
conhecimento, sendo, portanto, transversais a todas as sociedades
independentemente das diferenças que as separam.
Já sabemos como a teoria do poder de Foucault se relaciona com o conhecimento e
também como o poder e a vigilância estão intimamente ligados. A vigilância
alimenta o conhecimento que, por sua vez, alimenta o poder, articulando-se
entre si numa relação não linear, dinâmica e laboratorial em que são observados
indivíduos, adquirida e processada informação que, transformando-se em
conhecimento, empodera o agente, ou agentes, na posição central da
vigilância. Os que lançam o olhar fixo (ou como diria Foucault, o regard
partout) sobre os observados, os sujeitos. (Ramos, (in press)b, pp.6-8)
Temos, assim, os estudos de vigilância como um campo multidisciplinar e
transversal das ciências sociais, onde se cruzam várias áreas de conhecimento,
com o objectivo de compreender os impactos sociais da função informativa da
tecnologia. Neste caso, o domínio da técnica da observação e recolha de
informação, como a decomposição2 da própria palavra indica. No entanto, dada a
sua natureza multidisciplinar e distinta, os estudos de vigilância podem ainda
ser aplicados em diversos planos do nosso mundo como, por exemplo, o mundo do
real (físico) ou o mundo do imaginário (metafísico). Uma das formas presentes
no mundo do metafísico é a ficção literária e, de acordo com as palavras de
Lyon já mencionadas neste artigo, a literatura esteve também na origem dos
estudos de vigilância, sendo assim um exercício interessante promover o
percurso inverso e aplicar os estudos de vigilância à literatura.
Já tivemos oportunidade de verificar referências a Huxley3, Orwell4 e Kafka5,
entre outros, no entanto, um dos autores mais consagrados do século XX é
esporadicamente associado a este campo: Tolkien6.
As obras ficcionais de Tolkien no seu todo e O Senhor dos Anéis em particular
ocupam um lugar de destaque na literatura do século XX mas também um lugar
controverso no criticismo literário. No entanto, o génio de Tolkien é bem
visível no seu three-decker novel7, como o próprio o designa, através da
invenção de catorze línguas8 diferentes (todas elas com as suas próprias regras
de construção), onde se inclui o mais completo Quenya, também designado como
linguagem Élfica (Drout, 2007, pp.11-12; Chance, 2010, pp.2-3). A ficção de
Tolkien tornou-se assim num fenómeno cultural, cativando gerações de leitores
em todo o mundo, sendo alvo de adaptações cinematográficas e inspirando
gerações de adeptos de jogos de aventura para computador, que se identificam no
papel do aventureiro, tal como no mundo secundário criado por Tolkien (Wardrip-
Fruin e Montfort, 2003, pp.508-509).
Todo este novo mundo secundário, do plano do metafísico, foi imaginado na sua
mais completa forma geográfica, social, política e substantiva, abrindo, assim,
todo um espaço de análise passível de incorporar os estudos sociais e a
aplicação de diversas teorias da vigilância e do poder/conhecimento.
É nesta linha analítica do poder/conhecimento e da vigilância, no mundo
secundário da Terra Média, que este artigo se insere. De que forma são visíveis
teorias da vigilância e do poder na sociedade da Terra Média? Que relações de
poder existem entre os seus habitantes e que formas e representações simbólicas
assumem na obra de Tolkien?
Contextualização Histórica e Social
O modo como analisamos o autor, deve estar intimamente ligado ao homem e o
homem está intimamente ligado ao contexto social, cultural, político e
económico da sua época. Como refere Drout na introdução da sua enciclopédia:
Tolkien needs to be seen in the matrix of his historical period as
well as within the specific contours of his own life. The
Encyclopedia therefore contains a great deal of information about
Tolkien's life and work in Oxford and other historical and cultural
events of his country and century. From the great wars to artistic
movements (such as Art Nouveau or Arts and Crafts), to trends in
politics and literature, a picture of a century [...] (Drout, 2007,
p.xxx)
De acordo com a biografia escrita por Carpenter, John Ronald Reuel Tolkien
nasceu no dia 3 de Janeiro de 1892 em Bloemfontein, África do Sul (Carpenter,
1977, p.20). Aos três anos de idade a família mudou-se para Inglaterra, no que
era suposto ser uma viagem mais demorada para visitar a família, mas a morte
prematura do seu pai transformou a visita demorada numa mudança permanente,
ficando a família a residir com os avós maternos de Tolkien em Birmingham e,
alguns anos depois, em Sarehole (hoje com o nome de Hall Green, também
pertencente à região de Birmingham). Sendo uma família de poucas posses, a mãe,
Mabel, tratava da educação dos filhos e Ronald (nome pelo qual Tolkien era
conhecido no seio da família) era um estudante aplicado, especialmente
interessado no estudo das línguas, motivo pelo qual a mãe lhe ensinou Latim
desde cedo. Aos quatro anos, já sabia ler e, pouco tempo depois, já escrevia
fluentemente. Incentivado pela mãe, lia muitos livros, apresentando um
particular gosto pelas histórias de fadas e um apurado sentido crítico sobre
literatura.
Durante a juventude teve o seu primeiro contacto com uma língua construída, o
Animalic, invenção dos seus primos enquanto, ao mesmo tempo, estudava Latim e
Anglo-Saxão na escola. Mais tarde, surgiram outras línguas inventadas
juntamente com os seus primos, como o Nevbosh e, pouco tempo depois, Raffarin,
sendo esta última de sua completa autoria. Foi também na juventude que Ronald
adquiriu um gosto especial pela poesia, começando a escrever poemas mais
frequentemente e com maior dedicação no final de 1914, depois de um encontro,
em Londres, com os seus antigos colegas da sociedade secreta T.C.B.S.9.
Depois dos anos conturbados da 1ª Guerra Mundial, Tolkien inicia a sua carreira
académica em Oxford, no Pembroke College e, mais tarde, no Merton College, onde
escreve The Hobbit e os primeiros dois volumes do Senhor dos Anéis. Decorriam,
então, os anos do período pré 2ª Guerra Mundial, uma época que influenciou e
marcou a narrativa da Terra Média. Este foi um período da idade moderna
politicamente agitado e popularmente associado ao nascimento e mecanização do
Big Brother. As liberdades individuais não eram especialmente importantes ou
tidas em conta e o indivíduo estava desprovido de poder contra um destino cada
vez mais controlado pelas forças do Mal (Shippey, 2000, p.ix), fosse, mais
tarde, em Auschwitz10, Europa de leste, África do Sul (Chance, 2010, p.1), ou
em qualquer outra parte do mundo:
Although Tolkien's worldwide popularity began in America in the
1960s, his themes power, choice, nature, technology, loyalty, loss,
and redemption are not the concerns of one time and place. They
resonate in all times and all places (Drout, 2007, p.15)
Foi nesta influência contextual que Tolkien escreveu a sua aventura épica,
oferecendo um olhar crítico e um entendimento sobre a natureza do Bem e do Mal,
valores societais como o de comunidade, a ordem natural do Universo e a
singularidade e empoderamento do indivíduo. Como Chance argumenta (Chance,
2010, pp.1-25), Tolkien respondeu dando voz aos despojados e isso traduziu-se
numa calorosa adesão popular no final da década de 50 e década de 60, anos em
que se vivia em pleno a Guerra Fria e um crescente receio, definido por Kackman
como Medo Vermelho (Kackman, 2005, pp.xxiii, 1-25), existindo uma também
crescente necessidade social de abstração das tensões políticas e militares.
Uma clara alusão aos tempos vividos neste período e aos valores oferecidos pelo
Senhor dos Anéis pode ser apreciada numa das mais populares manifestações
culturais da época: o graffito11. God is dead e Frodo lives eram graffiti
(figuras nesta página) muito vistos pelas ruas norte-americanas e também
europeias. De facto, pelos finais da Guerra da Coreia e inícios da Guerra do
Vietname, o governo norte-americano era simbolicamente visto como um Dark
Lord, pretendendo completo domínio sobre países mais pequenos e de pouco
interesse para os americanos e a submissão das crenças e dos direitos
individuais dos seus próprios cidadãos, na procura de mais soldados para
combater em outros países.
Na realidade, com a construção do Shire12, Tolkien idealizou no mundo
secundário, não só uma visão da Inglaterra pastoral do início do século XX,
como também uma realidade utópica onde os seus instintos de infância residiam
e resistiam à realidade conturbada dos tempos em que vivia, realidade utópica
essa à qual, independentemente da geração ou país, todos nós gostaríamos de
pertencer. Além de dar voz aos despojados e empoderar o indivíduo, Tolkien
deu também voz a si mesmo, evitando, em certa medida, a recordação de emigrante
forçado, retirado à sua existência infantil na África do Sul, refugiando-se no
mundo secundário onde podia desempenhar o papel de herói (Chance, 2010, p.3).
Como o próprio afirma, numa carta a Deborah Webster:
I am in fact a Hobbit (in all but size). I like gardens, trees and
unmechanized farmlands; I smoke a pipe, and like good plain food
(unrefrigerated), [...] I like, and even dare to wear in these dull
days, ornamental waistcoats. I am fond of mushrooms (out of a field);
have a very simple sense of humour (which even my appreciative
critics find tiresome); I go to bed late and get up late (when
possible). I do not travel much [...] (Carpenter, 1971, p.289)
Porém, no mundo secundário da Terra Média, Tolkien não criou apenas o utópico
Shire, a zona pastoral, bucólica e calma, na qual a livre expressão e a livre
vontade coexistem e onde todos gostaríamos de procurar refúgio. Criou todo um
continente onde a luta constante entre o Bem e o Mal se articula com as
dinâmicas de poder e conceitos como corrupção, controlo, confiança, subjugação,
guerra, dominância, conhecimento e vigilância, reflexo do mundo primário em que
vivia.
Apesar de muitas críticas sobre a simplicidade, ou mesmo ingenuidade, na
representação literária do Bem versus Mal, igual número de críticos encontrou,
no Senhor dos Anéis, matéria para pensamento e reflexão crítica, merecedora de
comparação com as ideias e teorias de Nietzsche, Heidegger, Levinas, Girard e
Foucault (McIntosh, 2012). Numa carta a Naomi Mitchison, Tolkien, profundo
conhecedor da sua obra e do seu significado, responde aos mais críticos:
Some reviewers have called the whole thing simple-minded, just a
plain fight between Good and Evil, with all the good just good, and
the bad just bad. Pardonable, perhaps (Carpenter, 1971, p.197)
Enquadramento Teórico dos Estudos de Vigilância no Senhor dos Anéis
A vigilância não é algo novo. Desde os tempos mais longínquos da Humanidade que
as pessoas se observam umas às outras pelos mais variados motivos. Estes vão
desde os mais facilmente aceites pela sociedade, como tratar e cuidar dos mais
próximos ou acompanhar o desenvolvimento dos filhos, até aos menos facilmente
aceites, chegando mesmo a ser repressivos, como controlar populações, manter a
subserviência de prisioneiros, perseguir e castigar os hereges ou atacar outros
povos. Segundo Lyon (1994, p.22), já os egípcios mantinham registos da
população com o objectivo de aplicar impostos, obrigar ao serviço militar e
controlar a imigração.
O que podemos observar destes exemplos? O poder está directamente ligado e é
consequente das posições de observação descritas acima, sempre através de uma
acção verbal que se justifica, em si mesma, pelos motivos adjacentes (tratar,
cuidar, acompanhar, controlar, manter, perseguir, castigar, atacar, entre
outras). É também mantido mediante a continuidade dessa mesma acção. O médico
ou o familiar e os pais, detêm o poder através da vigilância. Do mesmo modo,
governantes, guardas prisionais, inspectores da Santa Inquisição13 e espiões
militares, também se situam na posição de quem detém o poder, tornando-se
agentes.
Quando se fala de poder ou estudos de vigilância, o nome Foucault está
intrinsecamente ligado à temática. G. Marx define-o mesmo como o avô dos
estudos de vigilância contemporâneos (Ball, Haggerty e Lyon, 2012, p.xxvii). Os
seus estudos estimularam novas perspectivas no entendimento da vigilância e o
seu livro Discipline and Punish (Foucault, 1979) foi fundamental para fomentar
novos debates. O tema foi tão estudado por Foucault que aparece em diversas
publicações deste e de outros autores. Um dos pontos centrais nos estudos de
Foucault é a prisão panóptica dos irmãos Bentham que, per se, levou à
elaboração de diferentes teorias. (Ramos, (in press)b)
No entanto, ao enquadrarmos as teorias do poder nesta obra, é importante
esclarecer, desde cedo, uma distinção importante. No Senhor dos Anéis, Tolkien
faz um tratamento do poder sobretudo ao nível dos efeitos produzidos sobre o
seu possuidor e como este o usa nas dinâmicas sociais da Terra Média.
Relativamente ao poder que Foucault define como administrative apparatus ou
controlo governamental e/ou institucional, mencionado em várias publicações
(Foucault, 1979, pp.172-173,185,215; Gordon, 1980, p.72; Rabinow, 1984, p.16;
McHoul e Grace, 1993, pp.66), é practicamente inexistente. Não porque não
exista um claro panóptico na Terra Média, mas porque não existe ligação desse
panóptico a um sistema governamental ou institucional que transforme essa
observação em memória informativa para uso de um sistema disciplinar
continuado. No entanto, existe um claro enquadramento da teoria do poder de
Foucault na Terra Média (Drout, 2007, p.541), em todas as suas vertentes.
Como argumenta Colombo (2011), Foucault distingue duas formas diferentes de
poder. O primeiro, o poder da soberania, pré-moderno, baseado na visibilidade
do soberano e/ou no castigo intermitente e exemplar como forma de manter o
controlo. O segundo, o poder disciplinar, moderno, baseado na vigilância
contínua, moldando os observados e o seu comportamento social, de modo a
preservar o status quo ou atingir objectivos previamente delineados. Esta
última forma é definida nas palavras de Perrot, em conversa com Foucault, do
seguinte modo: Here we are [...] preventing people from wrong-doing, taking
away their wish to commit wrong. In a word, to make people unable and
unwilling (Gordon, 1980, p.154). No entanto, existe uma constante entre as
duas: o poder actua sobre uma relação previamente existente entre duas partes,
o agente e o sujeito, tornando-se um resultado e não uma causa para esta
relação (McHoul e Grace, 1993, pp.87-88).
Analisemos então cada uma destas formas e a sua representatividade na Terra
Média:
a) O Poder Soberano (pré-moderno)
Esta forma de poder está claramente presente na Terra Média. Exemplos disso são
Theoden, filho de Thengel, 17º Rei de Rohan; Saruman, o Branco, da ordem dos
Maiar (que, simbolicamente, deixa de ser o Branco à medida que cede à
corrupção de Sauron); e Sauron, capitão e servo de Morgoth na Primeira Era e
criador d'O Anel14 do Poder que reunia o poder dos outros dezanove anéis da
Terra Média (três dos Elfos, sete dos Anões e nove dos Homens mortais).
Dos três, apenas um representa o poder soberano clássico. Theoden é o rei
modelo que exerce o reinado por herança da linha de sangue. Mesmo caindo na
influência de um feitiço de Saruman, estendido por Gríma (também conhecido por
Língua-de-Verme) através do seu discurso ideológico constante, continua no
poder, legitimado pela hereditariedade e aceite pelo seu povo, tornando-se num
caso de corrupção (mesmo que forçada) que se estende numa rede originada em
Sauron. Temos, então, o uso da presença do soberano como extensão do poder de
Saruman. Segundo Foucault, Theoden é a representação do poder da soberania
(Foucault, 1979, pp.35-36).
Saruman, apesar de representar o poder soberano através do seu comando sobre os
restantes Maiar e dos exércitos de Isengard, é o modelo da corrupção como
efeito produzido pelo poder sobre o seu possuidor. Este feiticeiro, outrora
legitimado pela detenção de um enorme conhecimento, sucumbe à vontade cega de
poder. No entanto, adquire novamente estatuto de soberano aliando-se a Sauron
e, como seu servo, constrói e torna-se líder de um exército de Uruk-hai para
derrotar Theoden em Helm's Deep. Saruman detém o poder pela imposição da força
(própria, do conhecimento e recebida, de Sauron), visibilidade como servo de
Sauron e pela reconhecida capacidade discursiva (simbolicamente personificada
por Gríma), sendo o único que nunca se arrepende até ao momento da sua morte,
revelando-se um personagem completamente plano e despido de vida interior.
Saruman é o exemplo do que Hobbes escreveu: I put for a general inclination of
all mankind a perpetual and restless desire of power after power, that ceaseth
only in death (Hobbes, 1651, p.61) ou o que Lord Acton afirmou em 1887: power
tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely (Shippey, 2000,
p.115).
Sauron é a representação simbólica do Mal. Todos os males do mundo primário,
contemporâneos de Tolkien e já discutidos na contextualização histórica e
social deste artigo, são concentrados neste personagem. Sauron foge ao
julgamento dos deuses, depois do seu comandante, e ele próprio, perderem a
Grande Batalha15. O poder foi-lhe atribuído por Morgoth quando o tornou seu
servo e comandante, atribuindo-lhe poderes mágicos de feiticeiro do mal.
No entanto, Sauron, por volta do ano 500 da Segunda Era, começa a reavivar-se
e, por volta do ano 1000 da mesma Era, escolhe Mordor para sua fortaleza, dando
início à construção da Torre de Barad-dûr, onde viria a colocar o mais
ilustrativo símbolo do panóptico de Bentham e Foucault (Foucault, 1979, pp.195-
228 e Ramos, (in press)b) e, para Tolkien, a peça central do poder na Terra
Média: the great Eye ou o Olho de Sauron (figura nesta página).
b) O Poder Disciplinar (moderno)
Em todos os sistemas sociais, não sendo a Terra Média uma excepção, o poder é
mediado por um sistema onde agentes procuram impor e manter a obediência de
outros àqueles, numa posição de supra-ordenação ou supra-decisão. No mundo
primário dos nossos dias, poderíamos considerar o exemplo de um sistema de
fiscais que inspeccionam, de forma aleatória e inesperada, estabelecimentos
comerciais na procura de incumprimento da lei elaborada pelos deputados na
Assembleia da República, os que estão na posição de supra-decisão. Na Terra
Média do mundo secundário, estes agentes são, por exemplo, os cavaleiros Nazgûl
que, ordenados por Sauron, vagueiam pelas estradas do Shire em busca dos
possuidores d'O Anel. Em ambos os casos, existe um sistema de poder mediado em
que os fiscais procuram a não conformidade com a regra e aplicam o consequente
castigo, no entanto, existe uma diferença que marca o afastamento das teorias
de Foucault. O sistema mediado existente na Terra Média não é legitimado pelos
seus sujeitos, caindo fora do conceito de institucional, o administrative
apparatus, proposto por Foucault. Em certa medida, poderíamos afirmar que,
neste ponto, o poder soberano e o poder disciplinar se confundem. Por este
motivo, Giddens afirma que este tipo de dinâmica, que ele designa como
dialética de controlo, imposta por qualquer tipo de organização ou
associação, deve ser analiticamente separada do poder institucional (1985,
pp.9-11).
Porém, quando falamos do poder disciplinar na Terra Média, temos a presença da
mais clara ilustração do Panopticismo dos irmãos Bentham e de Foucault, o Olho
de Sauron. Este olho do poder de Foucault, com o seu regard partout, é a
representação mitológica do mais cruel e tecnologicamente avançado instrumento
da vigilância. Como já tivemos oportunidade de ver em (Ramos, (in press)b),
Bentham atesta que, numa situação de vigilância perceptivelmente continuada, os
sujeitos impõem a si mesmos uma disciplina de comportamento de acordo com os
padrões e a vontade do agente, alterando o seu comportamento social. Torna-se
então numa auto-disciplina que resulta, ao nível do sujeito, da aplicação do
dispositivo tecnológico da vigilância sobre a relação existente entre as duas
partes, tendo como consequência o empoderamento do agente.
Na Terra Média, o panóptico de Sauron está presente em todos os momentos da
acção, vigiando os sujeitos de forma perceptivelmente continuada com o seu
gaze, o mesmo de Foucault, e impondo-lhes alterações de comportamento
bastante visíveis.
Then at last his gaze was held: wall upon wall, battlement upon
battlement, black, immeasurably strong, mountain of iron, gate of
steel, tower of adamant, he saw it: Barad-du^r, Fortress of Sauron.
All hope left him.
And suddenly he felt the Eye. There was an eye in the Dark Tower that
did not sleep. He knew that it had become aware of his gaze. A fierce
eager will was there. It leaped towards him; almost like a finger he
felt it, searching for him. Very soon it would nail him down, know
just exactly where he was. Amon Lhaw it touched. It glanced upon Tol
Brandir ' he threw himself from the seat, crouching, covering his
head with his grey hood. (Tolkien, 2009a, pp.338-339)
Mas o panóptico de Sauron não actua sozinho. Juntamente com ele actuam mini-
panópticos que, formando uma rede informativa com o instrumento tecnológico
principal, espalham geograficamente o alcance da vigilância pela Terra Média. O
conceito de mini-panópticos pode ser observado em Andrejevic (2006, p.337).
Estes Little Brothers são as pedras palantíri que tudo vêem, reúnem
informação e estendem a visibilidade do Big Brother, o Olho de Sauron.
'About the palantíri of the Kings of Old,' said Gandalf.'And what
are they?''The name meant that which looks far away. The Orthanc-
stone was one.''Then it was not made, not made' ' Pippin hesitated '
'by the Enemy?''No,' said Gandalf. 'Nor by Saruman. It is beyond his
art, and beyond Sauron's too. The palanti´ri came from beyond
Westernesse, from Eldamar. The Noldor made them. Fe¨anor himself,
maybe, wrought them, in days so long ago that the time cannot be
measured in years. But there is nothing that Sauron cannot turn to
evil uses.' (Tolkien, 2009b, p.154)
Uma descrição mais detalhada das palantíri e dos efeitos que o poder de Sauron
exerce sobre os sujeitos, pode ser observado na seguinte passagem:
Though the Stewards deemed that it was a secret kept only by
themselves, long ago I guessed that here in the White Tower, one at
least of the Seven Seeing Stones was preserved. In the days of his
wisdom Denethor would not presume to use it to challenge Sauron,
knowing the limits of his own strength. But his wisdom failed; and I
fear that as the peril of his realm grew he looked in the Stone and
was deceived: far too often, I guess, since Boromir departed. He was
too great to be subdued to the will of the Dark Power, he saw
nonetheless only those things which that Power permitted him to see.
The knowledge which he obtained was, doubtless, often of service to
him; yet the vision of the great might of Mordor that was shown to
him fed the despair of his heart until it overthrew his mind
(Tolkien, 2009c, p.100)
Porém, os mini-panópticos não ficam por aqui. A par das pedras palantíri,
existem inúmeros espiões ao serviço de Sauron. Quando a irmandade viaja para
Mordor, são espiados pelos crebain da Dunlândia, pássaros negros que voam a
avisar Sauron da localização do grupo (Tolkien, 2009a, p.244). Estes fazem
parte de um vasto grupo de espiões que actua ao serviço de Sauron e estendem o
seu raio de acção pela Terra Média.
Analisemos, por fim, um objecto diversas vezes mencionado neste artigo, mas
ainda não totalmente explicado do ponto de vista do enquadramento teórico dos
estudos de vigilância no Senhor dos Anéis. O Anel (the One Ring). Este anel tem
uma dualidade associada que torna mais complexa a sua análise. Sendo um
instrumento de poder é também, ao mesmo tempo, um dispositivo da rede de
vigilância de Sauron, tornando-se em mais um mini-panóptico.
a) O Anel como Instrumento de Poder
O Anel é transportado por Frodo durante a viagem da irmandade, desde o Shire
até Mordor, onde o objectivo é a sua destruição. Durante esta viagem é possível
observar como Frodo assume várias identidades, com personalidades diferentes
daquela que era a sua, antes de ser o portador d'O Anel. O tratamento dado a um
Hobbit, criatura pequena e frágil (como já vimos, representativa da infância de
Tolkien) torna-se num tratamento que passa de sujeito a agente. Uma das
identidades assumidas por Frodo é a de líder. A irmandade aceita e acata muitas
das suas decisões como dados adquiridos e conforma-se com o facto do portador
d'O Anel ser o decisor em muitas das opções que têm de ser tomadas durante a
viagem.
Ao mesmo tempo, Frodo assume a identidade de Mestre. O exemplo da sua relação
com Sam ou Gollum no percurso até Mordor, é exemplo disso, onde ambos os
acompanhantes o tratam por Master Frodo, adquirindo, eles próprios, a
identidade de seus servos (Chance, 2010, p.35). A relação entre Frodo e Gollum
é, talvez, o mais representativo exemplo deste microcosmo de poder associado ao
Anel. Frodo ameaça-o, por diversas vezes, usando O Anel como arma de coerção
(Foucault, 1979, pp.128-131) e a submissão de Gollum é evidente, não só no
tratamento dado a Frodo mas, também ao acatar toda e qualquer ordem dada por
este.
'Master said so. Master says: Bring us to the Gate. So good Sme´agol
does so. Master said so, wise master.' [...] Gollum, however, did not
intend to be got rid of, yet. He knelt at Frodo's feet, wringing his
hands and squeaking. 'Not this way, master!' he pleaded. 'There is
another way. O yes indeed there is. Another way, darker, more
difficult to find, more secret. But Sme´agol knows it. Let Sme´agol
show you!' (Tolkien, 2009b, pp.187-188)
Consequência do empoderamento de Frodo é também a corrupção da sua alma de
Hobbit (a mudança da personalidade bondosa que sempre teve para uma atitude
austera e fria) no relacionamento com Sam, quando os dois viajam, sozinhos e
perdidos, pelas montanhas.
b) O Anel como Mini-Panóptico
A par deste microcosmos de poder, O Anel desempenha ainda uma função de mini-
panóptico. Durante a viagem para Mordor, Frodo cede, por diversas vezes, à
tentação de colocar O Anel no dedo, entrando, assim, no mundo do crepúsculo. A
entrada neste outro mundo, onde Frodo consegue ver os cavaleiros Nazgûl, torna-
o invisível no mundo secundário da Terra Média, mas visível para o Olho de
Sauron.
Sempre que Frodo coloca O Anel, oferece a sua localização a Sauron, tornando-se
sujeito da vigilância e, ao mesmo tempo, agente de Sauron sobre si mesmo,
assumindo uma nova identidade. Tal como Foucault argumenta, o poder é, enquanto
parte de uma estrutura mecanizada, uma dinâmica que circula por diversas
posições, numa rede orgânica, em oposição a algo que apenas funciona numa
estrutura em cadeia hierárquica:
Power is no longer substantially identified with an individual who
possesses or exercises it by right of birth; it becomes a machinery
that no one owns. Certainly everyone doesn't occupy the same
position; certain positions preponderate and permit an effect of
supremacy to be produced (Gordon, 1980, p.156)
No entanto, ao colocar O Anel e entrando no mundo do crepúsculo, Frodo consegue
ver sem ser visto. Este facto é, sem dúvida, uma das principais características
do panóptico de Bentham e Foucault, comprovando a ideia d'O Anel como mini-
panóptico.
Temos assim uma relação Sauron-Frodo-Anel, bastante complexa, que demonstra que
o empoderamento do agente existe como consequência da sua própria actuação
relativamente aos dispositivos tecnológicos da vigilância e o poder daí
resultante é orgânico/móvel.
Foucault apresenta-nos ainda cinco precauções metodológicas que devem ser
tidas em conta na análise da teoria do poder (McHoul e Grace, 1993, pp.88-90).
São elas:
a) A Geografia do Poder
Como acabámos de verificar, o poder não se situa apenas concentrado num único
ponto. Durante uma análise, devemos resistir à tentação de localizar um único
foco de poder, hierarquizando-o, como o Estado ou o rei. Foucault recomenda que
se analise os pontos de poder com relativa autonomia, sejam eles agentes
pessoas ou agentes institucionais. Analisando a Terra Média, chegamos à
conclusão de que existem tais pontos de relativa autonomia. Por um lado,
considerando o mapa, desenhado por Tolkien, podemos comprovar a existência de
um triângulo de poder localizado numa posição central da Terra Média, sendo os
seus vértices constituídos por Barad-dûr, Isengard e Dol Guldur (ver Apêndice
I). Por outro lado, temos a relação de Frodo com O Anel. Esta talvez seja a
mais orgânica das relações de poder existente na Terra Média. Enquanto
possuidor d'O Anel, Frodo é agente. Enquanto aquele que usa O Anel, Frodo é
sujeito. Esta dinâmica de transferência e recepção de poder é uma constante em
Frodo.
b) Práticas Efectivas do Poder
Foucault preocupou-se acima de tudo em estudar as tecnologias associadas ao
exercício do poder e aos efeitos associados com esse exercício. Deste modo não
dedicou especial interesse à matéria dos motivos ou intenções que poderiam
levar a mente obsessiva de alguém a querer tornar-se um agente. Da presente
análise, temos algumas práticas efectivas de poder que são bastante evidentes
na Terra Média. O mais destacado é, sem dúvida, o panóptico de Sauron,
ilustrado no Great Eye como poder disciplinar. Instrumento supremo da
vigilância, este é o ponto central da rede orgânica que alimenta a sua
informação através das palantíri, d'O Anel e dos vários espiões espalhados pelo
território.
Existe ainda o poder soberano desempenhado por Theoden, Saruman ou o próprio
Sauron, como já vimos.
Por fim, temos ainda o poder do conhecimento. Tal como argumenta Foucault:
We should admit rather that power produces knowledge (and not simply
by encouraging it because it serves power or by applying it because
it is useful); that power and knowledge directly imply one another;
that there is no power relation without the correlative constitution
of a field of knowledge, nor any knowledge that does not presuppose
and constitute at the same time power relations (Foucault, 1979,
p.27)
Este é, sem dúvida, personificado por Gandalf que, devido ao seu extremo
conhecimento e experiência de muitos anos de vida, é reconhecido numa posição
de poder e legitimado pelos sujeitos com ele relacionados.
c) A Dinâmica Circular do Poder
Como já vimos, Foucault adverte para a tentação de concentração do poder num
único ponto, hierarquizado, nas análises teóricas efectuadas. O poder existe no
que poderia ser definido como uma dinâmica circular de uma rede orgânica em
que o poder passa de posição em posição, não pertencendo apenas a alguém por
direito adquirido ou a uma única localização. Na Terra Média podemos observar
esta dinâmica na posição do personagem central. Frodo adquire a posição de
poderoso, quando se torna portador d'O Anel e volta à sua posição de
normalidade depois da destruição do mesmo. Por outro lado, podemos ainda
observar esta dinâmica no rei Theoden o qual, durante a submissão a Saruman
(por feitiço), não tem poder real (apenas simbólico) e, depois da sua
libertação por Gandalf, reassume a posição de soberano poderoso. Estas
dinâmicas confirmam a ideia de Foucault de que o poder, enquanto estrutura
mecanizada, é dinâmico e não tem um possuidor único.
d) A Inversão da Análise Descendente do Poder
Foucault adverte ainda para uma existente tendência de analisar o exercício do
poder de uma perspectiva descendente, da posição do aparentemente poderoso, no
topo, para o menos poderoso, no fundo da hierarquia. Esta tendência provêm de
uma tentação de atribuir o poder às classes dominantes e, como Foucault
argumenta, a dominância de classes não representa, per se, a heurística final
da teoria do poder.
Na Terra Média também não encontramos tal heurística como solução final da
problemática do poder. Existe um empoderamento distribuído, através das
diversas classes presentes no território, sendo cada uma delas detentora de um
particular poder ou tecnologia associada.
Referindo apenas algumas, os Elfos detêm o poder da vida eterna e da beleza,
como influência sobre os seus sujeitos. Frodo, em representação da classe dos
Hobbits, detém o poder de Mestre soberano no microcosmos que engloba Sam e
Gollum durante a viagem. Por fim, os Maiar, classe à qual pertencem Gandalf e
Saruman, detêm o poder do conhecimento e da feitiçaria.
e) Os Dispositivos de Conhecimento/Poder
Muitos dos dispositivos de conhecimento e poder foram já descritos neste
artigo. Foucault preocupou-se mais com os instrumentos tecnológicos que
produzem o conhecimento do que com a ideologia produzida por estes. Podendo o
conhecimento, gerado pelos dispositivos, ser verdadeiro ou não, o que é
realmente importante é a eficácia da tecnologia na produção desse conhecimento.
Na Terra Média, temos diversos dispositivos tecnológicos de vigilância
geradores de conhecimento, sendo os principais, o Olho de Sauron na Torre de
Barad-dûr, as pedras palantíri espalhadas pela Terra Média e O Anel.
A Retórica do Poder
Tal como acabámos de ver, para Foucault é mais importante a tecnologia do
conhecimento e a sua eficácia na alteração do comportamento social do que o
conhecimento em si. Como dizem McHoul e Grace sobre Foucault:
While ideological productions certainly exist, they are much less
important than the instruments and procedures which produce them, and
what may be called the historical 'conditions' of this knowledge
(McHoul e Grace, 1993, p.90)
No entanto, é possível observar algumas das características do poder da
retórica ou da eloquência discursiva como inscrição social da ideologia de
Sauron na Terra Média, merecendo, por esse motivo, uma breve reflexão teórica.
Um dos mais ilustrativos exemplos do poder da retórica está presente na relação
entre Gríma e Theoden, durante o período do feitiço que Saruman lançou sobre
este último.
Gríma exerce o poder de Saruman sobre aqueles que legitimaram Theoden através
do discurso envenenado de Gríma, conseguindo a obediência e respeito dos
súbditos do rei. Todas as decisões de Theoden são, então, tomadas por Gríma
que, aproveitando-se da legitimação do poder soberano de Theoden, inscreve a
ideologia de Saruman e Sauron na população do reino de Rohan.
No entanto, este não é o único exemplo do poder discursivo na Terra Média. Como
tivemos oportunidade de ver em (Ramos, (in press)a, p.8-9; Rebelo, 1998),
existem quatro fases para a inscrição social da ideologia através do poder
discursivo.
a) Afirmação
Nesta fase primária da inscrição social da ideologia, o destinador e o
enunciador da mensagem fundem-se. No período que antecede a acção do Senhor dos
Anéis, Sauron assume ambos os papéis, do sujeito que diz, sendo o ponto
central e iniciador da difusão da sua própria ideologia. É possível associar
esta fase ao período seguinte à Grande Batalha, a Segunda Era, quando Sauron
erra pela Terra Média e dá início à construção da Torre de Barad-dûr.
b) Propagação
Na fase da propagação existe uma separação entre o destinador e o enunciador.
Os papéis separam-se e Sauron continua como o destinador, enquanto outros
personificam o papel do enunciador. É o caso de Saruman e de Gríma que,
tentando reunir mais aderentes à causa de Sauron, convencem Theoden (com a
ajuda do feitiço de Saruman) a ser mais um enunciador junto do seu povo. Outro
caso da propagação é bem visível quando Saruman tenta, através da persuasão
discursiva, convencer Gandalf a juntar-se à ideologia de Sauron, facto que
acontece durante a primeira conversa que ambos têm na Torre de Isengard.
Os dispositivos retóricos de Saruman são variados e incluem o desejo de
aprovação e medo de represálias por parte do seu destinador, adulação
interesseira, apelos à pena ou piedade, entre outros (Drout, 2007, pp.589-590;
Shippey, 2000, p.75).
c) Publicização
Durante esta fase existe um crescimento ideológico exponencial com a entrada na
acção de múltiplos actores que espalham a palavra ideológica. Esta fase tem
início quando Saruman constrói os exércitos de Isengard, constituído por
milhares de orcs16, que começam a massificação ideológica, espalhando o seu
domínio pela Terra Média. Nesta fase, o destinador desaparece
imperceptivelmente e lentamente de cena, sendo que a última vez que Sauron é
avistado acontece no prólogo. Durante o decorrer da acção na Terceira Era da
Terra Média, nunca Sauron é visto. A sua presença é meramente simbólica,
através do Great Eye, depois desse momento e em toda a restante acção,
tornando-se então omnipresente. A sua omnipresença, confundindo-se com o poder
soberano, é uma das estratégias da inscrição social da ideologia com mais
eficácia ao nível da sua aceitação e legitimação.
d) Massificação
A última fase da inscrição social da ideologia é aquela que não chega a
completar-se na acção do Senhor dos Anéis. Antes que a massificação seja
atingida e possa emergir o senso comum relativamente à ideologia de Sauron,
Frodo e a restante irmandade conseguem, através da resistência ao poder (o
contra-poder, como veremos no próximo tópico), destruir O Anel em Orodruin,
pondo fim à inscrição social da ideologia de Sauron na Terra Média.
A Resistência ao Poder
Existe um forte tratamento do poder e da vigilância no Senhor dos Anéis, como
já tivemos oportunidade de demonstrar mas, não sendo tão evidente, existe
também um tratamento da resistência a esse poder e a essa vigilância. A
resistência na Terra Média está, sem dúvida, ligada a um conceito de moralidade
que envolve defender o Bem e lutar contra o Mal. No mundo primário de Foucault,
esta resistência está associada ao desenvolvimento de habilidades naturais dos
sujeitos sob vigilância em contornar essa mesma vigilância (Foucault, 1979,
p.210) e, consequentemente os efeitos do poder. Foucault refere que nas
relações de poder existe sempre um proporcional e coexistente contra-poder que
serve o propósito de equilibrar as forças em dinâmica activa:
[the power] must also master all the forces that are formed from the
very constitution of an organised multiplicity; it must neutralise
the effects of counter-power that spring from them and which form a
resistance to the power that wishes to dominate it: agitations,
revolts, spontaneous organisations, coalitions - anything that may
establish horizontal conjunctions. (Foucault, 1979, p.219)
Mas Foucault vai ainda mais longe, quando afirma:
I would suggest [...] that there are no relations of power without
resistances; the latter are all the more real and effective because
they are formed right at the point where relations of power are
exercised; resistance to power does not have to come from elsewhere
to be real, nor is it inexorably frustrated through being the
compatriot of power. It exists all the more by being in the same
place as power; hence, like power, resistance is multiple and can be
integrated in global strategies (Gordon, 1980, p.142)
No âmbito das teorias de Foucault, o contra-poder é tão mais eficaz e eficiente
quanto mais dirigido for às técnicas do poder e não ao poder em si mesmo
(McHoul e Grace, 1993, p.86). Este direccionamento às tecnologias de vigilância
é precisamente o que acontece na Terra Média, quando a irmandade tenta, a todo
o custo, evitar a vigilância do panóptico de Sauron, seja ela na forma do
Great Eye, das pedras palantíri ou dos diversos espiões que servem o Dark
Lord. Na realidade, não observamos uma resistência ao poder de Sauron, até
porque a tentação da corrupção, que deriva de um confronto directo com as
forças de poder do Mal, é superior à capacidade de resistência que os sujeitos
detêm. Tomemos como exemplo as diversas situações em que Frodo coloca O Anel no
seu dedo e entra no mundo do crepúsculo. Em todas elas, a capacidade de
resistir ao poder de Sauron diminui. Frodo apercebe-se disso e evita, por todos
os meios, colocar O Anel. Os restantes membros da irmandade também têm
conhecimento desse facto, agindo sempre no sentido de evitar o uso d'O Anel ou
avisando Frodo dos seus efeitos (Gandalf é um dos mais activos nesta última
tarefa). Neste contexto, o poder de Sauron é tão forte que, apenas a
proximidade d'O Anel, ameaça corromper Frodo até ao ponto da exaustão. Porém, a
resistência deste Hobbit é bem sucedida até ao final da acção.
Existem outros exemplos da resistência aos dispositivos tecnológicos do
panóptico de Sauron. Depois da vitória dos Ents sobre Isengard, a pedra
palantíri de Saruman é recuperada por Pippin, mas Gandalf apressa-se a escondê-
la por entre as suas vestes para que o panóptico seja travado. Do mesmo modo,
por cada vez que Frodo resiste à colocação d'O Anel, está a evitar ser visto e
localizado pelo Olho de Sauron, também travando o panóptico. Por último, o
exemplo da reacção do grupo ao esconder-se dos crebain da Dunlândia é mais um
exemplo da resistência e anulação da vigilância:
[...] Sam could see for himself what was approaching. Flocks of
birds, flying at great speed, were wheeling and circling, and
traversing all the land as if they were searching for something; and
they were steadily drawing nearer.'Lie flat and still!' hissed
Aragorn, pulling Sam down into the shade of a holly-bush (Tolkien,
2009a, p.244)
Na Terra Média, é maior a evidência da resistência aos dispositivos
tecnológicos de vigilância do que ao poder de Sauron, estando esta história de
resistência e de contra-poder na génese da história do Senhor dos Anéis.
Conclusão
Uma das principais características dos estudos de vigilância é a sua
transversalidade e independência da geografia, etnia, género ou cultura do(s)
objecto(s) em análise, podendo desse modo ser aplicados em diversos planos.
Este artigo partiu do interesse particular pela obra de Tolkien e também pela
curiosidade lógica da aplicação dos estudos de poder e vigilância ao Senhor dos
Anéis, invertendo o percurso da origem desta temática que também se encontra na
literatura. Passámos, assim, da análise no plano físico para a análise no plano
metafísico.
Tolkien viveu numa época rica em conflito social e demonstrações constantes das
dinâmicas orgânicas do poder. Foi também uma época em que se ansiava pelo
empoderamento das classes mais desfavorecidas e do indivíduo como herói de
uma geração. O período entre as duas Grandes Guerras e a sua continuação,
durante a 2ª Guerra Mundial, foi de grande influência na escrita de Lord of the
Rings, obra que é um reflexo da sociedade conturbada que se vivia naqueles
anos.
A ascensão do Big Brother, da constante desconfiança e da vigilância, deram o
mote a Tolkien para a criação dos seus personagens e dos objectos simbólicos
que podemos apreciar na Terra Média. Já antes teria sido possível observar o
panóptico de Bentham em Nineteen Eighty-Four (Orwell, 1949), um reflexo
diferente da mesma sociedade, mas nunca tão bem ilustrado como foi por Tolkien,
na Torre de Barad-dûr, através do Olho de Sauron.
Nesta narrativa, podemos encontrar um excelente retrato da sociedade da
primeira metade do século XX, não apenas no seu lado mais sombrio, mas também
no seu melhor e mais bucólico paraíso: o Shire.
Tal como Foucault, Tolkien questionou a racionalidade da sua época através das
ciências humanas. Foucault incidiu sobre as matrizes da prisão, dos hospitais e
dos asilos numa época em que a sociedade estava revoltada com as instituições e
Tolkien ficcionalizou estas matrizes criando Sauron, os seus seguidores, a
região negra de Mordor e as tecnologias de vigilância.
Também de uma forma comum, Tolkien e Foucault, cada um com as suas armas,
mostraram a sua objecção à introdução de tecnologias de imposição de poder
sobre a sociedade.
É, assim, possível observar no Senhor dos Anéis vários aspectos da teoria do
poder de Foucault. O poder soberano, onde se incluem personagens como Theoden,
Saruman e Sauron e o poder disciplinar, onde se incluem diversas tecnologias de
vigilância, entre elas, o Olho de Sauron, as palantíri e os espiões que
vagueiam pelas regiões da Terra Média.
Podemos ainda observar diferentes dinâmicas orgânicas nas relações de poder
entre os agentes e os sujeitos e, inclusivamente, sujeitos que são agentes e
novamente sujeitos, personificando complexas influências que o poder exerce
sobre a relação pré-existente entre as duas partes. Existe ainda a dualidade
simbólica d'O Anel, sendo objecto de poder soberano e também disciplinar, no
papel de mini-panóptico, confirmando a existência de algumas vertentes das
teorias de Foucault na acção do Senhor dos Anéis relativamente à dinâmica
circular do poder, incluindo as formas de contra-poder/resistência, como
habilidades naturais que emergem dos sujeitos sob influência dessa dinâmica.
Contrariando um pouco Foucault, efectuámos, ainda, o exercício teórico da
tentativa de enquadrar o poder da retórica nesta obra e, depois da análise
efectuada, é possível concluir que Tolkien também se apoiou nesta forma de
poder para enriquecer a narrativa e dinamizar as relações de poder já
existentes.
De acordo com Foucault, relativamente ao sistema do poder disciplinar
(moderno), não se trata de aplicar o castigo directamente sobre o corpo mas sim
de capturar a sua alma (1979, pp.16-17). E foi assim, falhando a quarta fase da
inscrição social da ideologia de Sauron e perante a resistência do contra-poder
em oposição às tecnologias de vigilância, que a Terra Média foi salva pela
derrota do panóptico e poupadas as almas dos seus povos.