Onde está o Wally? (In)visibilidades sobre mulheres e política nas práticas de
receção jornalística
1. Introdução
No âmbito dos Estudos Feministas dos Média, as práticas de receção têm
constituído um importante objeto de reflexão crítica (Watkins & Emerson,
2000:156; Byerly & Ross, 2006:56), a par da análise das representações de
género (Ross, 2010; Silveirinha, 2004) e do papel das/os profissionais dos
média na perpetuação de assimetrias sociais (Mendes & Carter, 2008:1701).
Desde a década de 1980, a investigação feminista tem procurado estudar a
receção de conteúdos veiculados por diferentes média, tais como a televisão
(Ross, 1995; Kim, 2006; Ferin-Cunha, 2007; Lobo & Cabecinhas, 2010) e as
revistas femininas (Winship, 1987; Mota-Ribeiro, 2010). Recentemente, os
videojogos (Walkerdine, 2006), as novas tecnologias móveis e a Internet (Kim,
2007; Cerqueira, Ribeiro & Cabecinhas, 2009) têm emergido como novos campos
de análise.
Embora se encontrem em crescente afirmação nas academias ocidentais (Watkins
& Emerson, 2000:156), os estudos de receção têm dedicado uma atenção
reduzida ao modo como os públicos negoceiam e se apropriam dos conteúdos
noticiosos, descurando o papel importante que os média informativos (impressos)
adquirem na (re)construção de significados e na manutenção da ideologia
(tradicional) de género (van Zoonen, 1994:125).
Reconhecendo a margem de autonomia e independência dos indivíduos em relação às
mensagens mediáticas (Hall, 1980; Van Dijk, 2005), propõe-se neste estudo
analisar as práticas de receção de conteúdos veiculados por newsmagazines
portuguesas. Em particular, pretende-se explorar o modo como os públicos jovens
compreendem, interpretam e se posicionam em relação às representações de
mulheres que exercem cargos políticos, auscultando a influência das suas
concetualizações de género na produção discursiva. Neste sentido, realizou-se
uma sequência de onze grupos focais com 101 estudantes universitárias/os, cujos
dados textuais e respetivas inscrições ideológicas foram problematizados no
quadro da Análise Temática (Braun & Clarke, 2006) a partir de uma
perspetiva feminista.
Ao longo das últimas décadas, os média informativos têm constituído uma arena
privilegiada para a (re)configuração do espaço político e a mediação da relação
da classe política com o eleitorado (Croteau, Hoynes & Milan, 2012:221).
Embora diferentes tipos de média produzam efeitos distintos, inúmeros estudos
mostram que a imprensa está mais fortemente relacionada com a aquisição e a
retenção da informação política (Ross, 2003:108). Em particular, abordando
preferencialmente os apelidados "hard issues" (Cardoso, 2009:4342),
as newsmagazines encerram um papel crucial na edificação dos modelos cognitivos
e na formação de opinião pública sobre assuntos políticos (Neuman, Just &
Crigler, 1992:78). Além disso, mediando "quem" adquire importância,
"como" se expressa e representa publicamente, e "o que"
é aceite, naturalizado ou contestado, este tipo de medium colabora na
(re)construção dos lugares de expressão pública e intercâmbio imaterial,
podendo influir no exercício da cidadania e na configuração das relações de
género no campo político.
Em Portugal, a proibição da discriminação com base no sexo (na esfera política)
ficou consagrada, em 1976, no artigo 13º da Constituição da República
Portuguesa. Mais tarde, impulsionado pela ratificação da Convenção
Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as
Mulheres (CEDAW)1, em 1980, o Estado Português reconheceu na IV revisão
constitucional de 1997 a importância das medidas de ação positiva como uma
resposta sociopolítica à prevalência de desigualdades de género em diferentes
áreas de atividade humana. A introdução deste tipo de medidas no campo político
aconteceu com a adoção da Lei da Paridade (Lei Orgânica nº. 3/2006)2, em 2006,
a qual se refletiu numa maior visibilização das mulheres que já integravam os
aparelhos partidários, especialmente no caso dos partidos de direita (Santos
& Amâncio, 2012:87).
Não obstante o aumento da participação política das mulheres na última década3,
a investigação científica tem demostrado que os média (informativos) apoiam uma
mediação de género na cobertura de assuntos políticos, que poderá afetar as
perceções dos públicos/eleitorado em relação à performance política das
mulheres, contribuindo para a reificação da política como um espaço masculino
(Ross, Evans, Harrison, Shears & Wadia, 2013:7); a ameaça à manutenção
eficiente do sistema democrático (Adcock, 2010:151); e a perpetuação de
assimetrias sociais (Gallego, 2009:45).
Deste modo, importa analisar a capacidade de agência dos públicos face às
assunções de género veiculadas pelos média informativos, pensar os eventuais
impactos das representações mediáticas ao nível da (re)configuração do espaço
político/público, bem como ancorar um conjunto de medidas necessárias para
potenciar a literacia mediática e o exercício pleno da cidadania (política). O
presente estudo erige-se, assim, da necessidade de se estabelecer no âmbito da
crítica feminista uma articulação entre os públicos, as mulheres e a política,
procurando colmatar a escassez de estudos de receção - quer a nível
nacional, quer a nível internacional - que transcendem os
"women's media/genres" e incidem sobre os média informativos
(impressos).
2. Newsmagazines, género e práticas de receção
Não obstante a maior presença das mulheres nas empresas de comunicação -
incluindo nas redações das newsmagazines portuguesas -, vários estudos
têm identificado a existência de uma mediação de género nos processos de
produção noticiosa (Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996; Gidengil &
Everitt, 2003a), que tende a consagrar a política como o espaço
"natural" dos homens e o de exceção para as mulheres (Ross et al.,
2013:7).
À semelhança de outros meios de comunicação social (van Zoonen, 1994; Gallego,
2009; Gill, 2007; Martins, 2013), as newsmagazines sustentam o predomínio da
"narrativa do masculino", fomentando a masculinização da atividade
política através da manutenção de um jargão específico, da menor visibilidade
das mulheres políticas nos média, da transmissão de representações de género
essencialistas, e da genderização dos contextos temáticos.
A imbricação "globalizada" das assunções de género nos média
informativos (Ross, 2010:118) pode promover junto dos públicos a apropriação de
significados apologéticos de relações de poder desiguais e de assimetrias
sociais. Intervindo em consonância com os interesses dos grupos sociais
dominantes (Mendes & Carter, 2008:1705), as indústrias mediáticas promovem
representações que têm maiores probabilidades de serem aceites e pensadas como
"espelhos da realidade" (Carter & Steiner, 2004:20).
Com efeito, os média informativos - como as newsmagazines - possuem
um incomensurável poder simbólico e persuasivo, detendo a capacidade de
influenciar as cognições sociais dos públicos (Van Dijk, 2005:73) e determinar
os limites do conhecimento da realidade social (Ross & Sreberny-Mohammadi,
1997:106). Não encerrando neutralidade - particularmente no que diz
respeito às questões de género (Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996:112)
-, os média influem no modo como os públicos percecionam o universo
político, avaliam os acontecimentos e efetuam as suas escolhas eleitorais (Kahn
& Goldenberg, 1991:105; Kahn, 1994:154). Uma vez que a maioria dos
indivíduos não tem experiência direta com a política, a sua opinião sobre este
domínio é significativamente formada a partir dos produtos mediáticos (Kahn,
1994:154; Ross, 2003:97). Os públicos podem, por conseguinte, assimilar os
conteúdos veiculados pelos média sem perceberem a influência que estes poderão
exercer na modelagem dos acontecimentos (políticos): "o texto e a fala
persuasivos passam a não ser vistos como ideológicos, mas como verdades
autoevidentes" (Van Dijk, 2005:82).
No entanto, importa sublinhar que os indivíduos não são marionetas ou agentes
passivos (Hall, 1980; Kimmel, 2000; Van Dijk, 2005). Corroborando as teorias
desenvolvidas a partir da década de 1980 - as quais privilegiam a análise
do modo como os públicos usam os média e exploram a sua capacidade de agência
(Hall, 1980; Ross, 2003:76) -, sustenta-se que as/os leitoras/es apenas
se deixam influenciar pelos conteúdos mediáticos até certa medida (Croteau et
al., 2012:22).
Embora as ideologias dominantes tendam a constituir a leitura preferida (Hall,
1980; Van Zoonen, 1994:42; Mendes & Carter, 2008:1705), os públicos podem
envolver-se - de forma ativa, autónoma e independente - na
utilização dos produtos mediáticos e na (re)construção dos seus significado(s):
negociando, contestando e/ou resistindo (Van Dijk, 2005:74). A receção
constitui, de resto, uma prática genderizada que pode ser "enabling
rather than constracting, empowering rather than oppressive, and active rather
than passive" (Watckins & Emerson, 2000:158). Além disso, influindo
na (re)configuração das dinâmicas políticas (Hall, 1980:28), os média podem
desempenhar um papel muito positivo na manutenção da democracia nas sociedades
contemporâneas "by empowering publics to take up their rights to
political participation" (Ross, 2003:119).
A variabilidade nas práticas de receção de conteúdos mediáticos -
nomeadamente daqueles de âmago político (Ross, 2003:118) - tem relação
direta com fatores estruturais, socioculturais e individuais (Croteau et al.,
2012:284; van Zoonen, 1994:41), tais como o contexto no qual o/a receptor/a se
encontra, o sexo, a idade, o estatuto social e as suas experiências anteriores
(Gamson, Croteau, Hoynes & Sasson, 1992; Ross, 2003). Por isso, a realidade
construída pelos média pode ser aceite ou refutada, podendo ou não influenciar,
de forma determinante, a sua interpretação acerca de determinado acontecimento
(Hall, 1980; Gamson et al.,1992:388).
Em suma, concordando com Silveirinha (1998:9), é necessário auscultar o
"papel da comunicação na vida política e do espaço em que se trocam os
discursos discrepantes dos atores que, em democracia, têm oportunidade de se
expressar publicamente". Por outro lado, importa apurar os mecanismos
através dos quais os públicos compreendem as assunções de género imbricadas nos
conteúdos sobre figuras políticas. Investigações neste âmbito permitirão
destrinçar o papel dos média na constituição de mulheres e homens enquanto
sujeitos políticos, interrogando eventuais diferenças, impactos, mudanças e
desafios.
3. Metodologia
O presente estudo qualitativo foi conduzido durante o mês de outubro de 2012
com o objetivo de analisar as práticas de receção de conteúdos veiculados pelas
newsmagazines portuguesas com maior tiragem no contexto nacional (Marktest,
2009): as revistas Visão e Sábado. Em particular, procurou-se explorar as
interpretações e os posicionamentos dos públicos (jovens) face às
representações mediáticas de mulheres que exercem cargos políticos.
Em termos metodológicos, optou-se pela realização de grupos focais, já que
estes comportam inúmeras vantagens para a investigação feminista, constituindo,
aliás, um método recorrente no âmbito dos estudos de receção (Mendes &
Carter, 2008:1705). No conjunto das suas principais potencialidades, destacam-
se a mitigação dos problemas éticos relacionados com o poder exercido pelo/
a investigador/a aquando da recolha de dados, e a possibilidade de analisar as
co-construções do significado nas práticas de interação social (Wilkinson,
1998).
Nos grupos focais realizados, que decorreram nas instalações da Universidade do
Minho, participaram 101 estudantes universitárias/os, dos quais 77 elementos
eram do sexo feminino (76,2%) e 24 do sexo masculino (23,8%), com uma média de
idades de 20 anos. As/os participantes foram distribuídas/os por onze grupos
focais: três grupos com estudantes do sexo feminino, um grupo com elementos do
sexo masculino, e sete grupos mistos.
O guião foi desenvolvido de acordo com questões semiestruturadas, previamente
elaboradas, que se centraram em dois temas principais: a) usos sociais das
newsmagazines (nacionais e estrangeiras); b) perceções acerca das
representações de género nas newsmagazines portuguesas.
Numa fase intermédia da prossecução dos grupos focais, foram distribuídas
pelas/os participantes como material-estímulo duas reportagens remissivas para
questões políticas, a saber: "As rebeldias da protegida de Portas",
publicada na revista Sábado (n.º 372, 16 de junho de 2011), e "Agora é
que são elas", publicada na revista Visão (n.º 957, 7 de julho de 2011).
Posteriormente, foi solicitado às/aos participantes que analisassem ambos os
trabalhos jornalísticos, tendo em conta as representações de mulheres e homens
com intervenção na esfera política/pública.
O material obtido através da realização dos grupos focais foi, num momento
subsequente, tratado com recurso ao software NVivo 8.0. Aquando da auscultação
do material, a análise temática (Braun & Clarke, 2006) surgiu como a
abordagem mais adequada, já que permite "identificar, analisar e relatar
padrões (temas) nos dados", potenciando a compreensão dos significados
explícitos e implícitos associados a dados textuais (Guest, Macqueen &
Namey, 2012).
Sob a esteira da crítica feminista dos média, o presente estudo contemplou a
auscultação dos paradigmas representacionais identificados e as causas que lhes
foram atribuídas pelas/os participantes durante os grupos de discussão. A
análise destes requereu a constituição de narrativas temáticas que -
agregando os temas (in)diretamente relacionados - permitiram interpelar a
fluidez, as ambiguidades e as titubeações discursivas, numa recusa do
pensamento binário que obsta a compreensão da heterogeneidade das práticas de
receção.
Deste modo, recorrendo à analise temática (Braun & Clarke, 2006), a leitura
crítica do material inicia-se com a identificação dos paradigmas
representacionais, com vista a apurar as interpretações e os posicionamentos
das/os participantes, e, num momento posterior, centra-se na explanação das
causas atribuídas durante os grupos de discussão.
4. Análise e discussão
Nos grupos de discussão4, a maioria das/os participantes reconheceu que as
desigualdades de género continuam a existir em Portugal, nomeadamente na esfera
política. Contudo, não atribuiu particular relevância à sua dimensão,
manifestações e corolários políticos, económicos e socioculturais. Dando ênfase
às consecuções verificadas na arena dos direitos das mulheres nas últimas
décadas, as/os participantes enformaram as desigualdades de género sobretudo a
partir de um prisma otimista e não-problematizante.
"... Acho que agora já não há aquela discriminação mesmo
inicial das mulheres não poderem fazer mais nada". (Rita
Mendes, 18 anos)
Quando questionadas/os sobre as causas da manutenção das desigualdades de
género na esfera pública/política, as/os participantes apresentaram
principalmente aspetos de natureza histórica e sociocultural. Contudo, surgiram
ainda discursos que destacaram a possibilidade de as mulheres não possuírem as
características necessárias para a intervenção política.
"... Os géneros têm diferenças entre si, então talvez (a
capacidade de liderar e a idoneidade para exercer cargos políticos)
sejam características mais encontradas em homens do que em
mulheres...". (António Pereira, 25 anos)
Algumas/uns participantes atribuíram a responsabilidade às próprias mulheres,
tendo-lhes imputando conivência com práticas de desigualdade exercidas contra
si, assim como o desinteresse e o medo em relação à intervenção destas em áreas
convencionalmente dominadas por homens.
"... O problema também já é das mulheres que aceitam e que
levam a carga toda dos homens...". (Luciana Ventura, 35 anos)
"Eu acho que também antes, como antes eram privadas disso, se
calhar agora têm um bocado de medo de arriscar...". (Leonor
Pedrosa, 18 anos)
Enquanto a escassez de mulheres nas esferas de expressão pública foi mormente
atribuída às suas atitudes e comportamentos individuais - sem ter em
consideração a influência de fatores estruturais -, a sub-participação
dos homens na esfera privada (assumida como área convencionalmente associada às
mulheres) foi justificada como sendo consequência da atuação de agentes
ideológicos, como a família e a educação. Além disso, contrariamente aos das
mulheres, os esforços dos homens para igualar os papéis de género foram
significativamente valorizados.
Embora a maioria das/os participantes tenha apontado a prevalência de situações
de desigualdade de género na sociedade portuguesa, quando o foco da discussão
se dirigiu sobre as indústrias mediáticas, estes posicionamentos tenderam a
alterar-se. Na verdade, os discursos produzidos manifestaram uma certa
relutância em reconhecer a manutenção de assimetrias de género nos média
informativos, tendo favorecido a ideia de que a produção de conteúdos se pauta
exclusivamente por princípios de imparcialidade e de objetividade (Byerly &
Ross, 2006).
"Eu acho que apesar de haver alguma discriminação contra as
mulheres em Portugal, isso não se deve ao papel dos meios de
comunicação. Acho que eles tentam manter a imparcialidade que lhes é
exigida...". (Patrícia Castro, 18 anos)
Houve, porém, discursos pontuais que consideraram a discriminação com base no
sexo menos grave do que outras formas de discriminação, como aquela baseada na
etnia/"raça". Esta hierarquização de diferentes tipos de
discriminação - que, aliás, foi abordada em estudos anteriores (e.g.
Cabecinhas, 2007) - revela a escassez de conhecimento e a ausência de
consciência crítica sobre a amplitude das assimetrias simbólicas no contexto
mediático português.
"... Acho que se nota mais (discriminação nos média) em termos
de etnia e de raça do que propriamente em termos de sexo".
(César Pinto, 19 anos)
Em termos gerais, as assimetrias de género nos média foram eminentemente
assumidas como uma não-questão, não tendo sido consideradas como um possível
critério de avaliação da qualidade jornalística. Excetuando algumas observações
acerca das diferenças entre mulheres e homens ao nível da representação
qualitativa - as quais, de resto, podem ter sido influenciadas pelo
material-estímulo e pelos exemplos avançados pela equipa de investigação
aquando dos grupos de discussão -, as desigualdades de género não
constituíram objeto de especial interesse, preocupação e/ou reflexão crítica.
4.1. Paradigmas representacionais identificados
Numa dinâmica transversal aos grupos de discussão, as/os participantes
identificaram e exploraram os paradigmas nos quais as mulheres com incumbências
políticas são representadas nos média informativos, a saber: impreparação e
necessidade de mentoria (35,6%), vida privada e domesticidade (22,9%),
instrumentalização como trunfos políticos (13,4%), participação crescente na
esfera política (10,2%), conciliação família-trabalho (8,8%), excecionalidade
(7,0%) e fisicalidade (2,1%).
De seguida, analisam-se os modos de representação identificados pelas/os
participantes a partir da sua inclusão em três narrativas temáticas: a-
) participação das mulheres na política, b-) vida privada e domesticidade, e c-
) fisicalidade, corpo e aparência física.
a) Participação das mulheres na política
Inúmeras/os participantes consideraram que as mulheres que intervêm na esfera
política - na qualidade de chefes de Estado, membros do Governo,
deputadas da Assembleia da República, etc. - tendem a acolher
características como a incompetência profissional, a indefinição de interesses
e a ausência de convicções (políticas) independentes. São representadas como
indivíduos cuja atuação no espaço público/político se deve e depende da
mentoria dos seus congéneres homens.
Para a maioria das/os participantes, foi justamente esta a ideia que atravessou
uma das peças apresentadas para discussão em grupo, na qual a atual ministra da
Agricultura e do Mar, Assunção Cristas, e o presidente do CDS-PP, Paulo Portas,
figuravam como protagonistas (Visão, n.º 957). Enquanto a primeira surgiu como
desprovida da preparação necessária para exercer o cargo político que lhe fora
atribuído, o segundo emergiu como a figura que define o percurso da ministra,
assegura proteção e confere mentoria política.
" (...) Mais do que uma figura na qual ela (Assunção Cristas)
pode olhar-se, (Paulo Portas) é alguém que está por trás a mexer as
marionetas". (Joana Silva, 21 anos)
" (…) Dá a ideia de que ela (Assunção Cristas) é uma menina e que ele
(Paulo Portas) só está ali para a proteger porque coitadinha... Está ali um
bocadinho perdida". (Luís Fonseca, 19 anos)
Para além do texto, também os elementos visuais foram objeto de análise por
parte das/os participantes. A imagem da peça - na qual Assunção Cristas
aparece com a cabeça no ombro de Paulo Portas, que a acaricia - foi
tendencialmente interpretada como uma alusão a uma relação de pai e filha.
" (…) Ela (Assunção Cristas) parece a filha querida do
papá". (Miguel Ribeiro, 20 anos)
Embora não se baseie numa crítica sustentada, a posição das/os participantes
aponta, na linha dos estudos feministas, para a imbricação nos média
informativos de abordagens essencialistas (Gidengil & Everitt, 2003a; Ross,
2004; Gill, 2007) e do paternalismo protetivo/sexismo benevolente (Glick &
Fiske, 1996:493).
Não raras vezes, a autonomia e a idoneidade (política) das mulheres são
inquiridas e colocadas em causa, numa legitimação das relações hierárquicas: os
homens como mentores, as mulheres como mentoreadas. Enquanto os primeiros são
(a priori) considerados idóneos para o exercício de funções políticas/públicas,
as mulheres são colocadas sob perscrutação jornalística, tendo de empreender
esforços redobrados para legitimar o seu estatuto.
Historicamente, as mulheres têm permanecido como "cidadãs de segunda
classe": a (progressiva) conquista dos seus direitos de cidadania tem
sido acompanhada por processos rígidos de binarização e de alterização porque
são consideradas indivíduos com características divergentes das do modelo
'universal' de pessoa adulta: autónoma, racional e independente
(Amâncio, 1998) A redução da diversidade de subjetividades, identidades e
experiências a um único modelo de cidadania encerra, para Lister (1997), um
propósito principal: a reificação de valores androcêntricos nas estruturas
sociopolíticas, ou seja, a instituição como principais características do
indivíduo-cidadão de normas que são convencionalmente definidas como masculinas
(e.g. imparcialidade, independência, agência política, etc.). Estas
configurações ideológicas manifestam, de resto, a manutenção da "lógica
da identidade" que - radicada no âmago da retórica universalista
- reprime e anula a(s) diferença(s) (Young, 1990), favorecendo a
alterização e, por vezes, a exclusão das mulheres da esfera política. Por isso,
ainda hoje, uma mulher com responsabilidades políticas "is not simply a
politician (male norm) but a special kind of deviant professional, a woman
politician" (Ross & Sreberny-Mohammadi, 1997:104).
Intersetando e coexistindo com a representação das mulheres como impreparadas e
com necessidade de mentoria (política), várias/os participantes indicaram a
existência de um outro paradigma representacional: o das mulheres como trunfos
políticos. De forma assinalável, as/os participantes apontaram para o facto de
as newsmagazines portuguesas terem representado a entrada e a participação das
mulheres na política como uma estratégia dirigida ao fortalecimento da imagem
do partido junto do eleitorado, sobretudo em períodos eleitorais.
" (...) Ele (Paulo Portas) aposta nas mulheres e usa-as talvez
como um trunfo eleitoral para a posteridade". (João Almeida, 21
anos)
Para algumas/uns participantes, as mulheres emergiram especialmente como
manobras políticas que os partidos utilizam para granjear o apoio das mulheres
(eleitoras).
"Eles fazem dela (Assunção Cristas) como se fosse um esquema
para arranjar mais votos, sobretudo por parte das mulheres…".
(Margarida Oliveira, 20 anos)
Esta observação é, de resto, consonante com a investigação feminista
desenvolvida sobre as dinâmicas, as relações e as (inter)dependências que
caracterizam o campo político. Veja-se, por exemplo, o estudo de Heldman,
Oliver e Conroy (2009): analisando a cobertura mediática de Geraldine Ferraro e
Sarah Palin, as autoras concluíram que as mulheres candidatas a posições de
relevância política - como a vice-presidência - são escolhidas com
o objetivo primeiro de conquistar o apoio das mulheres (votantes) e, por
conseguinte, aumentar as hipóteses eleitorais dos respetivos partidos.
Numa exposição tendencialmente corroborante, um número considerável de
participantes destacou que a este paradigma representacional subjazem dois
postulados essenciais: o de que existe uma identificação de género, segundo a
qual as mulheres tenderão a votar em mulheres-candidatas; e o de que as
mulheres - enquanto grupo social - possuem um menor interesse em
relação à política e, nessa medida, necessitam de ser conquistadas.
" (...) Ao chamar tantas mulheres para colaborarem com ele,
(Paulo Portas) está a atingir a população feminina que, por norma,
está mais desligada do mundo da política". (Rute Santos, 19
anos)
Porém, há estudos que têm demonstrado que a identificação de género não
constitui per se um factor explicativo das preferências partidárias do
eleitorado, nomeadamente das mulheres (e.g. Dolan, 2004:103). Embora estas
manifestem uma maior propensão para votar em candidatas, esta correlação não é
linear nem aplicável a todas as circunstâncias eleitorais: intervêm,
igualmente, variáveis como a identificação com o partido político (Dolan, 2004:
105). Além disso, as intenções de voto podem ainda ser influenciadas por
estereótipos de género. Em regra, as eleitoras não reconhecem em candidatas a
capacidade de liderança política, pois não associam este traço de personalidade
às dimensões do estereótipo feminino (Amâncio, 1998:68).
Além disso, as mulheres figuram como indivíduos debutantes na esfera política:
a sua intervenção pertence ao tempo recente - ao de "agora".
É, justamente, este paradigma que várias/os participantes apontaram nas
newsmagazines portuguesas e - inclusive - corroboraram, reforçando
a invisibilidade histórica e política das mulheres.
" (...) O que dá mais para retirar é mesmo a subida das
mulheres para a política...". (Pedro Rodrigues, 20 anos)
" (...) Fala do facto de, agora, virem muitas mulheres para a
política...". (Rita Mendes, 18 anos)
Inúmeras/os académicas/os sustentam que a representação das mulheres como
"novidades" coloca os seus discursos e ações sob especial
escrutínio (e.g. Ross, 2004; Lobo & Cabecinhas, 2010). De forma recorrente,
a atribuição de um carácter debutante à participação das mulheres na política
decorre da manutenção do paradigma da "primeira mulher", que é
utilizado para descrever, por exemplo, a integração de mulheres (nas posições
cimeiras) de listas eleitorais, da apresentação de candidaturas a cargos de
relevância política, entre outros (Heldman, Oliver & Conroy, 2009). Este
tipo de abordagens poderá limitar as consecuções (eleitorais) das mulheres na
arena política e reificar imaginários androcêntricos (Gigengil & Everitt,
2003:228). Figurando eminentemente como indivíduos estreantes no campo
político, as mulheres tenderão a ser vistas como forças ocupantes num
território de "natural" pertença aos homens, e não como parte
integral do corpo político (Braden, 1996:2; Cabrera, Flores & Mata, 2012:
77).
Numa aparente corroboração da ideologia meritocrática, as/os participantes
mencionaram ainda o facto de as mulheres figurarem nas newsmagazines
portuguesas como indivíduos excecionais que, através de esforços pessoais,
conseguiram singrar num campo dominado tradicionalmente por homens - a
política.
"Eu acho que eles (jornalistas) querem dar a imagem de
supermulher...". (Eduarda Martins, 20 anos)
"Acho que é para mostrar que ela (Assunção Cristas) teve
coragem e fibra. E que assumiu um cargo que, se calhar, não era bem
aquilo que ela queria e aquilo que ela dominava, mas que o assumiu
com coragem...". (César Pinto, 19 anos)
Com efeito, os média informativos privilegiam, inúmeras vezes, o modelo de
mulheres-exceção (Cerqueira, 2012), que se estrutura frequentemente em
dissonância com as características atribuídas à feminilidade normativa. Nos
grupos de discussão - embora alguns discursos tenham apontado, de forma
esporádica, a fusão entre os traços de feminilidade e de masculinidade
(hegemónicas) -, várias/os participantes destacaram, justamente, o facto
de as mulheres terem sido caracterizadas com base em atributos associados ao
estereótipo masculino, tais como a capacidade de liderança, o controlo e a
supervisão (Amâncio, 1998:68).
"... Fala dela (Assunção Cristas) como um exemplo: "é
este o exemplo das pessoas que vão dirigir"". (Catarina
Lemos, 20 anos)
"A ideia que se tem de uma mulher quando está com um problema é a de que
fica por casa... Quem vai para o campo de batalha mesmo assim são,
supostamente, os homens... A bicicleta (com a qual Assunção Cristas aparece
numa fotografia) pressupõe um espírito aventureiro enquanto que a ideia do
feminino é o contrário...". (Jorge Peixoto, 22 anos)
Uma vez que as dimensões do estereótipo masculino coincidem, por convenção
histórica, com aquelas associadas ao paradigma universalista da cidadania
(política), a atribuição às mulheres de traços da masculinidade hegemónica pode
indiciar que estas apenas adquirem relevância (mediática) e excecionalidade
quando correspondem ao modelo masculino/normativo. Tais abordagens conferem
materialidade ao posicionamento de Young (1990): os grupos sociais cujos
atributos são considerados a priori como divergentes daqueles que foram
instituídos como norma são comummente objeto de estratégias de assimilação.
Esta coação assimilacionista tenderá a anular a diversidade de identidades,
favorecendo a universalização e a neutralização dos interesses, necessidades e
experiências dos grupos dominantes e a sua consagração como o referente
simbólico. Por outras palavras, redundará na legitimação de relações
hierárquicas, no exercício desigual do poder e, sobretudo, na reificação da
opressão social (dos membros) de determinados grupos sociais.
Além disso, descentrando a atenção das assimetrias que atravessam o campo
político para enfatizar as conquistas individuais das mulheres, os média
(informativos) tendem a perpetuar o "discurso essencialista-
individualista" (Nogueira, 2006:64). Como foi referido pontualmente
pelas/os participantes, as mulheres surgem como detentoras de um "token
status" (Kanter, 1977) que - não obstante os obstáculos de natureza
diversa e através do seu esforço individual - obtiveram sucesso nas suas
investidas profissionais/políticas.
"... Vemos a Assunção Cristas como uma espécie de supermulher,
que conseguiu chegar ao Governo, que fez um monte de coisas
importantes e foi bem-sucedida...". (Patrícia Castro, 18 anos)
Este tipo de paradigma representacional não só contribui para a manutenção das
categorias dicotómicas "feminino" e "masculino",
reforçando relações de poder desiguais, como também apoia uma retórica
individualista (Nogueira, 2006:70) que ofusca os obstáculos socioculturais e
institucionais que limitam a participação política das mulheres e fomentam
contextos de opressão e de injustiça social (Young, 1990).
b) Vida privada e domesticidade
Para além da participação das mulheres na política, a vida privada e a
domesticidade constituíram igualmente uma importante narrativa temática,
compilando assunções semânticas muito pertinentes do ponto de vista feminista.
À semelhança de estudos anteriores (e.g. Kahn & Goldenberg, 1991; Kahn,
1994; Norris, 1997; Ross, 2010), inúmeras/os participantes afirmaram que as
newsmagazines portuguesas tendem a explorar aspetos relacionados com a vida
privada das mulheres políticas - como as suas relações familiares e a
vivência da conjugalidade - e a remetê-las para o espaço doméstico,
esboçando frequentes menções ao exercício da maternidade e à prestação de
cuidados na família.
"... Aqui mostra uma mulher mais humanística, uma mulher que
vai à igreja, uma mulher que quer passar tempo com a família, uma
mulher que tem o horário de trabalho de x a x horas e, a partir daí,
vai ter com a família. O trabalho não é prioritário. Acho que dá a
ideia da mulher como dona de casa". (Carlos Neves, 18 anos)
Por outro lado, como foi mencionado durante os grupos de discussão, os homens
políticos não são, em regra, auscultados a respeito da sua atuação na vida
privada/doméstica - particularmente acerca do exercício da paternidade e
das suas relações de parentesco (Braden, 1996:6) -, bem como sobre o modo
como fazem a conciliação da vida familiar com as responsabilidades
profissionais.
" (...) Se fosse um homem, não estavam aqui a falar dos
filhos...". (Filipa Cunha, 20 anos)
" (…) Nunca se viu falarem da vida privada de um homem político, dizerem
que ele pediu para anteciparem as reuniões para o almoço porque tinha de jantar
com a família …". (Catarina Lemos, 20 anos)
A descredibilização das mulheres enquanto sujeitos de ação/intervenção política
- que é potenciada pela exploração da sua vida privada - reflete-se
especialmente na genderização dos contextos temáticos nos quais são
representadas pelos média (Kahn & Goldenberg, 1991; Kahn, 1994).
Independentemente da posição que ocupem no campo político (e.g. chefes de
Estado, membros do Governo, deputadas da Assembleia da República, etc.), as
mulheres tendem a surgir como fontes de informação em temáticas que estão
relacionadas ou constituem uma extensão das atividades ligadas
convencionalmente à esfera doméstica/privada. Em regra, aparecem nos média
informativos para opinar sobre as ditas "soft issues", tais como a
educação e o meio ambiente (Kahn & Goldenberg, 1991:110; Kahn, 1994:156), a
saúde (Gill, 2007:114) e as questões de género (Ross et al., 2013:3). Por outro
lado, os homens surgem representados predominantemente em áreas como a economia
e finanças, a defesa nacional, a diplomacia, entre outros (Kahn, 1994:156). E,
emergindo como os atores "naturais" nestas esferas, são-lhes
atribuídos traços de personalidade relevantes no contexto profissional,
incluindo a exigência, a seriedade, o espírito crítico e o dinamismo (Ross
& Sreberny-Mohammadi, 1997; Gidengil & Everitt, 2003a).
Decorrendo da atuação da ideologia de género e da manutenção da assimetria
simbólica (Amâncio & Oliveira, 2006:38) - que radica na cultura
jornalística e nas indústrias mediáticas -, a ênfase na vida privada/
doméstica das mulheres (políticas) reforça a não-pertença destas ao espaço
público e a sua inabilidade para o exercício sério de funções políticas (Kahn
& Goldenberg, 1991; Ross, 2010), bem como garante e valida os papéis
tradicionais de género (Braden, 1996), podendo afetar negativamente a sua
repercussão política junto do eleitorado.
c) Fisicalidade, corpo e aparência física
Numa convergência com a investigação feminista (e.g. Gallagher, 2001; Gidengil
& Everitt, 2003a; Ross, 2010), algumas/uns participantes sustentaram que as
mulheres políticas foram, de forma significativa, representadas a partir da sua
fisicalidade, corpo e aparência física nas newsmagazines portuguesas.
" (...) Na questão da imagem, a mulher é muito mais cobrada, a
ela é exigida muito mais do que aos homens...". (António
Pereira, 25 anos)
" (...) Eu lembro-me de quando a ... Ministra da Agricultura foi fazer
uma palestra com um vestido curto e houve logo espaço para muitas
discussões". (Carolina Torres, 18 anos)
Os média informativos tendem, de facto, a secundarizar o que as mulheres
"pensam" e "dizem", privilegiando, ao invés, aspetos
relacionados com a sua aparência física, indumentária, sentido de moda, etc.
Esta tónica na fisicalidade (que, não raras vezes, tangencia a sexualização)
aplica-se às mulheres enquanto grupo social, independentemente do seu
background, profissão e âmbitos de atuação (Ross, 2004:68).
Embora exerçam cargos de (assumida) relevância pública, as mulheres políticas
estão sujeitas, em igual grau e frequência que as demais, a processos de
sexualização/objetificação (Ross & Sreberny-Mohammadi, 1997:107). Desde o
uso da linguagem aos conteúdos fotográficos, os média recorrem a diferentes
estratégias para instituir a feminilidade normativa e constituir as mulheres
como heraldos da beleza ocidentalmente padronizada. Como refere Gill (2007:
117), as abordagens sexualizadoras das mulheres encerram objetivos específicos:
"they are part of the operation of power which trivializes women's
perspectives and keeps them 'in their place'".
Por outro lado, diferentemente das suas congéneres, os homens políticos
raramente aparecem referidos a partir dos seus atributos físicos. Para as/os
participantes, os homens surgiram sobretudo referenciados pelas suas opiniões,
ações e comportamentos, ainda que estes possam despoletar controvérsia.
" (...) A mulher tem muito mais obrigação de ser bonita do que
o homem... Retrataram o Lula porque ele gostava de beber cachaça.
Agora, no caso da Dilma, é porque ela é feia... Essa coisa de ser
feia acho que cai muito mais na mulher". (Paula Barbosa, 21
anos)
Secundando Baudrillard (1970/2010) e Wolf (1992), a correspondência aos padrões
de beleza constitui um imperativo apenas para as mulheres, não se impondo com
igual premência aos homens. Convergindo com as dimensões do estereótipo
feminino (Amâncio, 1998:64), este tipo de representação confirma, de resto, as
asserções de Gallego (2009:45): "Elas (as mulheres) são o objeto
observado, que não fazem parte do centro a partir do qual se observa e se
narra. Daí que as mulheres sejam apresentadas pelo que são, não pelo que
fazem". Pelo contrário, os "homens são o verbo, e o verbo é
ação": são os sujeitos que agem e protagonizam os acontecimentos, a
partir dos quais tudo é narrado.
A importância atribuída à aparência física das mulheres tem subjacente
assunções ideológicas (de género) mais amplamente instituídas, isto é, a
associação de padrões específicos de beleza à feminilidade normativa.
Encerrando a função de "coerção social", o mito da beleza constitui
per se a expressão última da dominação masculina: colabora na manutenção de
relações de poder desiguais, movido pelo propósito de "destruir
psicologicamente e às ocultas tudo de positivo que o feminismo proporcionou às
mulheres material e publicamente" (Wolf, 1992:13-15).
Estribada numa conotação valorativa diferenciada, onde o sexo masculino ocupa
uma posição dominante e o feminino surge numa posição subordinada (Amâncio,
1998:68), este tipo de paradigma representacional contribui para o descrédito
das opiniões, experiências e performances profissionais das mulheres, limitando
as suas potencialidades e consecuções na esfera política (Ross, 2010:98).
Numa abordagem global, as/os participantes identificaram nas newsmagazines
portuguesas paradigmas representacionais que são enquadráveis em três
narrativas temáticas, a saber: a-) participação das mulheres na política, b-
) vida privada e domesticidade, e c-) fisicalidade, corpo e aparência física.
Embora tenham surgido pontualmente posições críticas, a maioria das/os
participantes não questionou o caráter ideológico das representações mediáticas
das mulheres políticas, nomeadamente daquelas que as enformam como impreparadas
e com necessidade de mentoria (por parte dos seus congéneres homens), trunfos
partidários e indivíduos debutantes na esfera política. Além disso, apesar de
terem apontando o paradigma que atribuiu excecionalidade às mulheres, as/os
participantes tenderam a secundar a retórica individualista que -
sustentada pela ideologia meritocrática - ofusca os obstáculos
institucionais e socioculturais à participação política das mulheres. Parte
significativa das/os participantes não auscultou, de forma aprofundada, as
assunções que estão implícitas aos paradigmas representacionais identificados,
isto é, a descredibilização da idoneidade política e da autonomia profissional
das mulheres, o paternalismo protetivo/sexismo benevolente, bem como a
legitimação social de relações hierárquicas na esfera política.
Importa, contudo, relevar a existência de discursos contestatórios das
referências que as newsmagazines portuguesas endereçaram à vida privada e a
aspetos da esfera doméstica das mulheres políticas, bem como à sua
fisicalidade, corpo e aparência física. Inúmeras/os participantes destacaram, a
esse respeito, a prevalência de diferenças entre mulheres e homens no que
concerne às representações mediáticas, sublinhando que - contrariamente
aos seus congéneres -, as mulheres políticas são perscrutadas ao nível da
prestação de cuidados a outrem, exercício da maternidade, conjugação da família
com as responsabilidades profissionais, indumentária, entre outros.
Em conclusão, não obstante a coexistência esporádica de posições
tranquilizadoras com outras mais críticas, a maioria das/os participantes não
problematizou, de forma sustentada, o papel dos média informativos na
(re)construção (genderizada) da realidade social, manifestando uma propensão
para reiterar discursos hegemónicos (acerca das mulheres que exercem cargos
políticos).
4.2. Causas atribuídas aos paradigmas representacionais
Procurando atribuir as (eventuais) causas dos paradigmas representacionais
identificados, as/os participantes apresentaram os seguintes tópicos: sexo da/
o jornalista (24,6%), estereótipos de género (19,5%), pertença partidária
(15,2%), preferências dos públicos (14,4%), iniciativa da/o entrevistada/o
(10,2%), fatores históricos e socioculturais (6,8%), política editorial (5,9%)
e não-conformidade com as normas de género (3,4%). No presente estudo, as
causas atribuídas foram enquadradas em duas narrativas principais: a-) produção
e receção: dinâmicas e relações nas/das indústrias mediáticas e b-) género,
estereótipos e sociedade.
a) Produção e receção: dinâmicas e relações nas/das indústrias mediáticas
A maioria das/os participantes apresentou causas relacionadas com a produção e
a receção de conteúdos noticiosos, não desenvolvendo, porém, uma auscultação
crítica dos aspetos económicos, institucionais e políticos que influem nas
configurações das/nas indústrias mediáticas.
De forma assinalável, as/os participantes consideraram que o sexo da/
o jornalista influencia e enforma - de forma direta, imediata e estática
- a performance profissional. Para além da genderização do exercício do
jornalismo (a qual será analisada no próximo tópico), os discursos produzidos
tiveram subjacente a ideia de que os profissionais do jornalismo detêm
autonomia suficiente para implementar as suas próprias estratégias e métodos de
trabalho.
Enquanto detentoras/es do monopólio sobre os instrumentos de produção e de
difusão a grande escala da informação (Bourdieu, 1997:48), as/os jornalistas
possuem, com efeito, a capacidade de controlar a (re)construção do conhecimento
e de representar grupos sociais (Van Dijk, 2005:61). Contudo, embora possam
efetuar escolhas individuais passíveis de promover novas representações de
género e quebrar convenções estereotipadas (Gallagher, 2001:172), a sua
autonomia para enquadrar os acontecimentos é limitada devido a constrangimentos
inerentes à orgânica das indústrias mediáticas (Harrison, 2006:100; van Zoonen,
1994:64-65). Uma vez que são submetidos/as a um processo de socialização
profissional - através do qual conhecem, apreendem e aceitam os valores
profissionais, as políticas editoriais e as rotinas organizacionais (Harrison,
2006:107) -, as/os jornalistas adotam as regras da empresa de comunicação
para a qual trabalham (Harrison, 2006:118), reiterando as assunções da cultura
dominante (Gill, 2007:126). Podem manifestar os seus interesses e preocupações
sociais, desde que estes correspondam aos interesses das indústrias mediáticas
e se inscrevam nos valores (androcêntricos) que definem a cultura jornalística
(Gallego, 2009:52).
Inúmeras/os participantes atribuíram, igualmente, uma relação de causalidade
entre as preferências dos públicos mediáticos e os paradigmas
representacionais, nomeadamente aqueles que enformam as mulheres políticas no
âmbito da sua vida privada.
" (...) As pessoas gostam de saber que estas pessoas fazem o
mesmo que nós, que a sociedade". (Tiago Moreira, 18 anos)
A assunção primordial de que os conteúdos mediáticos refletem as preferências
dos públicos - às quais as/os jornalistas se limitam a responder passiva
e meramente - encerra dois problemas essenciais: a-) oblitera e ofusca os
interesses económicos, institucionais e políticos das indústrias mediáticas; b-
) assume a irrelevância/inexistência entre os públicos de posições críticas dos
conteúdos veiculados pelos média (informativos).
No sentido de empreender uma auscultação da significância dos produtos
mediáticos, importa, ao invés, relacionar os conteúdos veiculados não só com as
preferências dos públicos (que tendem a ser situadas geográfica e
cronologicamente), mas também com os espaços/processos de produção (que
(re)produzem desigualdades sociais, como o sexismo, o racismo, o ageísmo e o
heterossexismo), os modelos de propriedade dos média (que determinam a
diversidade temática, o exercício do poder e o acesso aos média), o contexto
sociocultural (no qual prevalecem relações de poder desiguais), e os efeitos
dos média sobre os públicos (que são determinados por eixos de identidade
social vários). Os média (informativos) e o mundo social estabelecem, assim,
uma relação dinâmica e complexa: se, por um lado, os primeiros podem
influenciar a compreensão dos indivíduos acerca do mundo social; o segundo, por
outro, poderá exercer influência sobre as/os produtores e os produtos
mediáticos (Croteau et al., 2012:215).
Os discursos das/os participantes sustentaram, igualmente, que a pertença
partidária das fontes de informação pode constituir uma causa para justificar
os paradigmas representacionais explorados no tópico anterior. Para algumas/uns
participantes, os média informativos tendem a dar mais destaque a espetos da
vida privada das mulheres de fações de direita:
" (…) Como o CDS é um partido de direita, eles (jornalistas)
exploram muito essa parte pessoal dela (de Assunção Cristas)".
(Margarida Oliveira, 20 anos)
"... Seria (diferente) a representação de mulheres no Bloco de Esquerda e
nos Verdes, são os partidos onde se veem mais mulheres e vê-se que são pessoas
mais liberais...". (João Almeida, 21 anos)
Todavia, a auscultação da vida privada aplica-se às mulheres enquanto grupo
social, independentemente da sua pertença partidária. Esta mostra-se, ao invés,
relacionada com as dinâmicas socioeconómicas que têm lugar nas empresas de
comunicação (Ross, 2002).
Num estudo sobre a cobertura televisiva das eleições federais de 1993 e 1997,
no Canadá, Gidengil e Everitt (2003b) mostraram que os discursos produzidos por
Kim Campbell (Progressive Conservative Party), Audrey McLaughlin e Alexa
McDonough (New Democratic Party) foram sujeitos a uma maior interpretação por
parte dos média (informativos) e relatados através de uma linguagem negativa e
agressiva. Esta investigação comprovou que - independentemente das
ideologias políticas que perfilham e das estruturas partidárias a que pertencem
- as mulheres foram, de forma recorrente, representadas a partir de
abordagens essencialistas resultantes da "mediação de género"
(Sreberny-Mohammadi & Ross, 1996).
Além disso, na análise da cobertura mediática das candidatas à vice-presidência
dos Estados Unidos entre 1984 e 2008, Heldman, Oliver e Conroy (2009) retiraram
ilações semelhantes, tendo identificado menções assíduas à indumentária e às
relações de parentesco de Geraldine Ferraro (Democratic Party) e de Sarah Palin
(Republican Party). Embora pertencessem a partidos políticos diferentes, ambas
as candidatas foram objeto de enquadramentos sexistas nos média informativos
estado-unidenses, que as colocaram em desvantagem nos processos eleitorais.
A pertença partidária pode, pois, afetar a cobertura mediática das mulheres
políticas em termos quantitativos - já que aquelas que pertencem a
partidos mais pequenos têm menos probabilidades de despertar a atenção dos
média -, mas não é (substancialmente) impactante no que concerne à
dimensão qualitativa (Ross, 2004).
A iniciativa da/o entrevistada/o foi também apontada como uma causa explicativa
dos paradigmas representacionais nos quais as mulheres com incumbências
políticas aparecem nas newsmagazines portuguesas. De acordo com as/os
participantes, as mulheres tendem a destacar aquando das entrevistas aspetos da
sua vida privada e da esfera doméstica, pelo que é expectável a incidência
jornalística nestas questões.
" (...) A Cecília Meireles também não fala muito dela e, por
isso, desconhece-se o lado (pessoal) dela ... Portanto, as outras
(mulheres políticas) devem falar". (Susana Gonçalves, 18 anos)
"Aqui também não fala disso (da vida privada) das outras mulheres. Está a
falar desta porque esta exigiu, eles (jornalistas) estão a dar um exemplo. São
casos específicos". (Artur Guimarães, 22 anos)
A investigação feminista tem, porém, demonstrado a existência de dinâmicas
diferentes na relação entre as mulheres políticas, as/os jornalistas e as
indústrias mediáticas. Por exemplo, num estudo transnacional - que
envolveu parlamentares da África do Sul, Austrália, Irlanda do Norte e Reino
Unido -, Ross (2002) mostrou que as mulheres políticas surgem,
primordialmente, na esfera de interesse das/os jornalista enquanto "seres
genderizados" (Ross, 2003:7). Na opinião das próprias mulheres, o
discurso jornalístico encerra assunções de género que se manifestam na
cobertura de eventos políticos, em períodos eleitorais e/ou em episódios do
quotidiano. Ainda que as mulheres não abordem aspetos atinentes à sua vida
privada e fisicalidade, os média tenderão a fazê-lo (Braden, 1996:63).
Reconhecendo a importância de cultivar relações próximas com a classe
jornalística, as mulheres que exercem cargos políticos têm adquirido
competências várias a fim de controlar, com maior eficiência, as suas
crescentes interações com os média (Ross, 2003:10).
Embora as/os participantes não tenham tendencialmente auscultado os fatores
económicos, institucionais e políticos que influenciam as configurações das/nas
indústrias mediáticas, verificou-se, porém, uma exceção: a atribuição causal da
política editorial aos paradigmas representacionais nos quais as mulheres
políticas aparecem nas newsmagazines portuguesas.
" (...) Tem que ver com a política da própria revista ou do
próprio jornal". (Maria Barros, 18 anos)
Esta perspetiva é, de resto, secundada pela crítica feminista dos média (e.g.
van Zoonen, 1994; Gallego, 2009; Silveirinha, 2004b): a produção noticiosa é
influenciada por variáveis como as idiossincrasias pessoais das/os jornalistas,
a cultura jornalística, os constrangimentos organizacionais, o contexto
regulatório, os modelos de propriedade dos meios de comunicação social, entre
outros (Carter & Steiner, 2004:16).
b) Género, estereótipos e sociedade
Durante os grupos de discussão, as/os participantes mencionaram também causas
relacionadas com as questões de género e outras de natureza societal, não
inquirindo, contudo, as interseções e a conivência das ideologias hegemónicas
com as práticas e os discursos que têm lugar nas indústrias mediáticas.
Para a maioria das/os participantes, o sexo da/o jornalista poderá explicar as
representações mediáticas (genderizadas), nomeadamente o enfoque na vida
privada. Às mulheres atribuíram eminentemente traços de expectatividade (e.g.
sensibilidade, emotividade, pormenorização, maternalidade, etc.). Os homens
surgiram, por outro lado, caracterizados como indivíduos que possuem mais
rigor, objetividade e "rudeza" no exercício da atividade
jornalística.
"Mas acho que a mulher também vai mais ao pormenor, tenta
sempre... Tenta mais procurar...". (Leonor Pedrosa, 18 anos)
"Um homem cinge-se mais aos factos, enquanto que uma mulher... Tem mais
aquele lado maternal e tudo o mais". (Artur Guimarães, 22 anos)
"... Quando e´ um homem a escrever, há uma sensibilidade diferente. Nota-
se que ali não foi escrito por uma mulher, foi por um homem. Há mais rudeza, se
me é permitida a expressão, na escrita (do homem) do que na da mulher, do
que... na da mulher. É diferente." (Cristina Novais, 50 anos)
De acordo com investigações anteriores, o sexo da/o jornalista não determina as
dinâmicas, performance e práticas profissionais. Excetuando as escolhas das
fontes de informação e a relação com os públicos, não se encontram diferenças
assinaláveis entre mulheres e homens no exercício da atividade jornalística
(van Zoonen, 1998; Cerqueira, 2012).
Para além da presunção de que as/os jornalistas detêm autonomia suficiente nas
redações (como fora já contestado anteriormente), os discursos das/os
participantes assumiram que as mulheres constituem um grupo homogéneo,
partilham perspetivas, abordagens e estilos profissionais semelhantes, e se
distinguem especialmente dos seus congéneres homens pela feminilidade (van
Zoonen, 1994:63; Gill, 2007:125). Estas perspetivas - que se encontram em
estudos como o de Christmas (1997) - tendem, de resto, a promover/
consolidar a ideia de que a maior presença das mulheres no campo jornalístico
poderá beneficiar a criação de um "projeto feminista ou
emancipatório" (van Zoonen, 1994:63). Têm subjacente uma concetualização
dicotómica e essencialista, segundo a qual o género constitui uma propriedade
estática, imutável e previsível em todos os contextos sociais, incluindo no
mercado de trabalho (van Zoonen, 1994:64). Estabelecendo fronteiras indeléveis
entre as categorias feminino/masculino e mulher/homem, o pensamento binário
corrobora, pois, a divisão sexual do trabalho e a genderização das profissões.
Numa dissidência assumida com o determinismo biológico, a crítica feminista
sustenta que o género não constitui uma "expression of biology, nor a
fixed dichotomy in human life and character" (Connell, 2009:10). É, ao
invés, uma estrutura social, fluída e dinâmica (Connell, 2009:10).
(Re)constrói-se nas/pelas relações de poder, instituições, práticas e discursos
(Connell, 2009:11; Kimmel, 2000:290), interagindo com outros eixos de
identidade social, como a etnia, classe, idade, orientação sexual,
nacionalidade, entre outros (Van Zoonen, 1994:33; Dow & Condit, 2005:449).
Os média (informativos) surgem, por conseguinte, como espaços onde o género e
os seus significados são (re)construídos, (re)negociados e (re)contestados (Van
Zoonen, 1994:43).
Há também participantes que remeteram a existência de determinados paradigmas
representacionais (nomeadamente daqueles que encerram um caráter depreciativo)
para a influência de fatores históricos e socioculturais, tais como os
resquícios ideológicos do Estado Novo, preconceitos, o conservadorismo
sociopolítico e a prematuridade da democracia portuguesa. Todavia, enfatizando
a crescente participação das mulheres nas indústrias mediáticas, os discursos
produzidos encerraram um cariz eminentemente desculpabilizador e não-
problematizante (e.g. Lobo & Cabecinhas, 2010):
"E isso quer dizer que ainda somos um país de muitas tradições
e costumes". (Carla Pinto, 19 anos)
"... É uma questão do próprio povo, é uma questão cultural...".
(Elisabete Ponte, 18 anos)
A esta posição subjaz, com frequência, uma renitência na aceitação de medidas
de ação positiva, mormente a aplicação de quotas baseadas no sexo na esfera
política. Não obstante as potencialidades que estas possam comportar -
e.g. a redefinição dos conceitos de cidadania, representação e igualdade
(Meier, 2008), a alteração das relações de género no espaço público (Meier
& Lombardo, 2013), e a mitigação dos obstáculos institucionais e formais
que impedem a autodeterminação e o autodesenvolvimento de determinados grupos
(Young, 1990) -, as quotas destinadas ao empoderamento das mulheres no
campo político suscitam comummente controvérsia e opiniões detratoras.
A crítica aventada com mais frequência - nomeadamente pela maioria das/os
participantes - é a de que as quotas violam o princípio meritocrático,
privilegiando a seleção com base nas características sociodemográficas e não
nas competências pessoais (Crosby, Iyer & Sincharoen, 2006:593). Secundando
Santos e Amâncio (2010:45-48), tais posições são consequência da existência de
um conhecimento limitado acerca da importância das medidas de ação positiva, da
subvalorização de práticas discriminatórias, da influência da ideologia de
género, bem como da pressuposição da (falsa) neutralidade do mérito.
Encontraram-se, ainda, discursos que constituíram - ainda que de uma
forma pouco fundamentada - os estereótipos de género como uma causa
explicativa das representações das mulheres com responsabilidades políticas.
Para inúmeras/os participantes, as newsmagazines portuguesas tenderam a
associá-las às dimensões do estereótipo feminino (Amâncio, 1998),
particularmente a ideias de vulnerabilidade (física), sensibilidade e
incapacidade de autossuficiência.
"Este homem (jornalista) estava a associar a fraqueza a
ela". (Susana Gonçalves, 18 anos)
"Há um bocado o estereótipo e é (...) subjugar as mulheres às mãos dos
homens, à proteção deles". (Catarina Lemos, 20 anos)
Inscritos nas indústrias mediáticas e nos processos de produção noticiosa
(Gallego, 2009; Ross, 2010), os estereótipos de género influenciam e subjazem
às diferenças representacionais entre mulheres e homens nos média informativos
(Khan, 1994:155; Braden, 1996; Van Zoonen, 1998; Ross, 2002), podendo
influenciar - até certa medida - o eleitorado no que concerne às
habilitações profissionais, idoneidade política, capacidade de tomada de
decisão e áreas de intervenção das mulheres/candidatas na política. De forma
indelével, a manutenção de abordagens estereotipadas expressa, reforça e
legitima o "imperialismo cultural", invisibilizando a
"diferença" e reprimindo o potencial emancipatório desta no fomento
da diversidade (Young, 1990).
Refira-se, por fim, que algumas/uns participantes consideraram, de forma
telegráfica, a não-conformidade com as normas de género (i.e. a ausência de
correspondência aos traços e papéis convencionados como "femininos"
e "masculinos") como um aspeto que poderá influir e determinar as
representações das mulheres políticas nos média (informativos).
De facto, quando as mulheres no campo político invertem, misturam ou contestam
os traços e os papéis sociais que a ideologia (tradicional) de género
estabelece e naturaliza, o interesse dos média aumenta de forma exponencial
(Gidengil & Everitt, 2003a:562). Corroborando Gallego (2009:47), tudo o que
"inverte o estereótipo ou vai contra a norma converte-se em
significativo, informativamente falando". Todavia, a maior cobertura
noticiosa não corresponde a um necessário empoderamento político das mulheres:
tais abordagens são comummente depreciativas, relevando, de resto, o
"media's opprobrium against women who transgress the orthodox
boundaries of what 'real' women are and what 'real'
women do" (Ross, 2004:67).
"A (Angela) Merkel, por exemplo, é gozada por todos os cantos,
não é? Por ser uma mulher de pulso rijo. Um homem já não era ... Já
era visto com outros olhos". (Rui Teixeira, 19 anos)
"(Assunção Cristas) É rebelde por não entrar no critério de
mulher". (Patrícia Castro, 18 anos)
Num estudo que incidiu sobre os debates de líderes políticos realizados aquando
das eleições federais de 1993, no Canadá, Gidengil e Everitt (1999:62)
mostraram, justamente, que a conotação atribuída aos traços de personalidade
varia consoante o sexo do sujeito político: "what is perceived -
positively - to be combative in a man may be judged - negatively
- to be aggressive in a woman". A representação mediática das
mulheres políticas é, pois, afetada indelevelmente. Por um lado, se as mulheres
adotam comportamentos combativos, os média tenderão a exagerar e a criticar
negativamente a sua (percebida) agressividade; por outro, se as mulheres não
atuam de acordo com as normas tradicionais (masculinas) que regem o campo
político, serão votadas à marginalização mediática (Gidengil & Everitt,
2003a:574).
Além disso, como as/os participantes assinalaram lacónica e vagamente, as
orientações sexuais não-normativas podem ser objeto de escrutínio jornalístico
que, não raras vezes, prejudica a imagem das mulheres políticas junto do
eleitorado.
" (…) No caso da Dilma (Rousseff), quando os media brincam que
ela é homossexual (não sei é brincadeira ou não)... Assume-se que as
pessoas que têm esse preconceito contra a homossexualidade já vão
estar contrárias à posição dela". (António Pereira, 25 anos)
Reportando-se ao estudo de Chang e Hitchon (1997), Gallagher (2001:82)
enfatiza, precisamente, a ideia de que os públicos/eleitorado manifestam uma
atitude mais positiva em relação a candidatas/os que obedeçam aos traços e aos
papéis tradicionais de género. Por outro lado, como refere Kimmel (2000:313),
as mulheres que se movem e obtêm sucesso em áreas profissionais dominadas
tradicionalmente por homens podem ser vistas - em particular, nos média
(informativos) - como "insufficiently feminine, have their
sexuality called into question, and risk not being taken seriously as women. If
they fail, they are seen as very feminine women, demonstrating that inequality
is really the result of difference, not its cause".
Numa visão geral, procurando atribuir e explicar as (eventuais) causas
subjacentes aos paradigmas representacionais identificados anteriormente, as/os
participantes tenderam a assumir posicionamentos tranquilizadores (e.g. Lobo
& Cabecinhas, 2010), que foram enquadrados em duas narrativas principais, a
saber: a-) produção e receção: dinâmicas e relações nas/das indústrias
mediáticas, e b-) género, estereótipos e sociedade.
Por um lado, a maioria das/os participantes referiu mormente causas
relacionadas com a produção e a receção de conteúdos noticiosos (i.e. sexo da/
o jornalista, preferências dos públicos mediáticos, pertença partidária das
fontes de informação e iniciativa da/o entrevistada/o).
O sexo da/o jornalista surgiu como um fator determinante da performance
profissional, na presunção de que os espaços/processos de produção noticiosa
conferem autonomia e liberdade suficientes para que as/os jornalistas
estabeleçam as suas estratégias laborais. A perscrutação jornalística sobre
aspetos que transcendem a participação política das mulheres (como a vida
privada) foi entendida como uma consequência direta da sua pertença partidária,
e não como um fenómeno globalizado. Os conteúdos mediáticos apareceram como
meros espelhos das preferências dos públicos, numa assunção de que o papel
primordial das/os jornalistas consiste em responder passivamente ao que as/os
recetoras/es estabelecem. A iniciativa da/o entrevistada/o emergiu, por fim,
como uma causa da maior incidência jornalística, por exemplo, nos aspetos da
vida privada e na fisicalidade das mulheres políticas, favorecendo-se a ideia
de que as representações essencialistas são localizadas e residuais. Embora a
maioria das/os participantes tenha reportado os paradigmas representacionais
para aspetos relacionados com a produção e a receção, importa relevar a
existência de discursos contestatórios de um atributo endógeno das indústrias
mediáticas: a política editorial. Algumas/uns participantes destacaram que os
interesses/exigências dos órgãos diretivos e os valores ideológicos das
empresas de comunicação poderão influir na produção dos conteúdos noticiosos.
Por outro lado, inúmeras/os participantes apresentaram causas relacionadas com
as questões de género e outras de natureza societal (i.e. sexo da/o jornalista,
fatores histórico e socioculturais, estereótipos de género e não-conformidade
com as normas de género).
Entendendo o género como uma categoria fixa, a maioria das/os participantes
atribuiu um caráter genderizado ao exercício da atividade jornalística, numa
aparente legitimação da divisão sexual do trabalho. Apesar de terem reconhecido
que os fatores históricos e socioculturais poderão influenciar a manutenção de
desigualdades de género nos média informativos, as/os participantes enformaram-
nos a partir de uma perspetiva exonerativa e não-problematizante. Além disso,
ainda que não tenham esboçado um crítica sustentada, alguns discursos
enfatizaram que a manutenção de estereótipos de género e a não-conformidade com
os traços e papéis convencionados como "femininos" e
"masculinos" poderão influir na produção noticiosa. Não
auscultaram, contudo, os impactos que os processos de estereotipização e o
binarismo de género podem provocar na participação política das mulheres, nos
média e na sociedade civil.
Em conclusão, as/os participantes não interrogaram, na sua generalidade, as
micro-meso-macro configurações das indústrias mediáticas que influem nas
representações mediáticas (das mulheres políticas), tais como as
idiossincrasias pessoais, a cultura jornalística, os constrangimentos
organizacionais, o contexto regulatório, os modelos de propriedade dos média,
etc. Além disso, manifestaram uma tendência para corroborar a manutenção da
ideologia tradicional de género, não inquirindo criticamente as suas
interseções e a conivência com as práticas e os discursos que têm lugar nas
indústrias mediáticas.
5. Considerações finais
Na linha do compromisso com a mudança sociopolítica e a promoção de uma
sociedade mais inclusiva, a auscultação das práticas de receção tem adquirido
uma crescente importância no âmbito dos Estudos Feministas dos Média (Mendes
& Carter, 2008:1701). Para além de comprovar a variabilidade interpretativa
dos públicos em relação aos produtos mediáticos, a crítica feminista da receção
tem contribuído para a desnaturalização das diferenças de género, mostrando o
seu caráter situado, mutável e dinâmico (Carter & Steiner, 2004:28).
No presente estudo, a análise temática do material resultante da realização de
onze grupos focais - que envolveram 101 estudantes universitárias/os
- permitiu inquirir as práticas de receção de conteúdos noticiosos. Em
particular, possibilitou a auscultação do modo como os públicos interpretam e
se posicionam face aos paradigmas representacionais nos quais as mulheres
políticas surgem nos média e às suas (eventuais) causas subjacentes.
No que concerne aos paradigmas representacionais, as/os participantes
identificaram a existência de três principais narrativas temáticas:
participação das mulheres na política; vida privada e domesticidade; e
fisicalidade, corpo e aparência física. Contudo, a maioria não problematizou,
de forma sustentada, o papel dos média informativos na (re)construção
(genderizada) da realidade social, manifestando uma propensão para reiterar e
apoiar a reificação das tríades masculino-político-público e feminino-pessoal-
privado.
Depois, procurando atribuir e explicar as causas subjacentes aos paradigmas
representacionais identificados, as/os participantes referiram sobretudo
aspetos relacionados com a produção e a receção de conteúdos noticiosos, a
partir de pressupostos como a autonomização do processo produtivo, a
partidarização e a essencialização das fontes de informação, bem como a
supremacia e a homogeneização dos públicos mediáticos. Além disso, apresentaram
causas relacionadas com as questões de género e outras de natureza societal que
tenderam a reiterar os postulados do determinismo biológico, da polarização de
género, e da exoneração histórica e sociocultural. Na sua generalidade, as/os
participantes não questionaram os fatores económicos, socioculturais e
políticos que influem na produção noticiosa, assim como tenderam corroborar a
manutenção da ideologia tradicional de género, não inquirindo, de forma
crítica, os seus mecanismos, discursos e corolários.
Em conclusão, os resultados mostram que a existência de assimetrias de género
nos média informativos, ao nível da representação qualitativa, não é
considerada pelos públicos (jovens) como uma questão relevante. Não obstante os
momentos pontuais de negociação, contestação e resistência em relação aos
significados veiculados pelos média, a maioria das/os participantes adotou
posicionamentos tranquilizadores que inibiram uma consciencialização
individual/social acerca das consequências da manutenção de relações de poder
desiguais nos média, na esfera política e na sociedade. Este estudo demonstra,
assim, que os públicos produzem sobretudo leituras congruentes com ideologias e
discursos hegemónicos, como os de género, as quais, de resto, tendem a ser as
abordagens privilegiadas pelos média informativos (e.g. Sreberny-Mohammadi
& Ross, 1996; Gidengil & Everitt, 2003; Ross, 2004; Lobo &
Cabecinhas, 2010).
Numa apreciação global, pode afirmar-se que o principal contributo deste estudo
consistiu em auscultar - com recurso à análise temática - as
(inter)relações entre os públicos, média informativos, género e representação
qualitativa, sublinhando a importância de se refletir sobre os eventuais
impactos que as representações mediáticas têm ao nível da (re)configuração do
espaço político/público e no exercício da cidadania.
Não obstante os contributos empreendidos neste estudo, importa ressaltar que os
resultados aqui apresentados não são extrapoláveis. Fornecem apenas indicações
preliminares acerca do modo como os públicos interpretam e se posicionam em
relação às representações mediáticas e, em particular, às assunções de género
veiculadas pelos média informativos. Uma investigação mais profunda exigirá o
envolvimento de um maior número de participantes e maior diversidade,
nomeadamente ao nível da idade, identidade de género, nível socioeconómico,
habilitações educacionais, áreas de formação profissional, etc. Além disso, é
necessário garantir uma maior variabilidade em termos de material-estímulo
- já que este poderá influenciar os discursos produzidos e a
fundamentação dos posicionamentos ideológicos -, bem como potenciar o
cruzamento de diferentes abordagens teórico-metodológicas. Será possível, deste
modo, avançar com maior propriedade para o estabelecimento de comparações,
semelhanças e divergências.
Em suma, impõe-se a necessidade de aprofundar a investigação científica sobre
práticas de receção com vista ao empoderamento semiótico dos públicos (jovens)
relativamente aos produtos mediáticos, aos contextos socioculturais, económicos
e políticos nos quais estes são criados (Hobbs, 2005), bem como ao impacto
destes na (re)construção da realidade social e aos mecanismos pelos quais os
conteúdos podem ser contestados e/ou modificados (Gallagher, 2001; Silverblatt,
2001). Partindo de uma intervenção concertada na produção e na receção
(Kellner, 1995), a educação feminista para os média encerra particular
importância para a desconstrução das assunções de género (Gallagher, 2001;
Teurlings, 2010). Através de iniciativas como a formação de profissionais dos
média para as questões da diversidade e a inclusão de perspetivas feministas
nos currículos universitários -, a literacia crítica mediática conferirá
às/aos produtoras/es e aos públicos uma compreensão mais abrangente dos
significados imbricados na tríade mulheres-política-públicos.